Cultura

“Malmkrog” é um grande filme, não uma peça do Ikea

E ao primeiro dia do Festival de Cinema de Berlim, Cristi Puiu coloca Berlim onde Berlim quer estar: ao mais alto nível

Nicolai (Frédéric Schulz-Richard) em “Malmkrog”: o século XIX a olhar para o século XXI

O novo filme de Cristi Puiu, figura de proa do novo cinema romeno desde o inesquecível “A Morte do Sr. Lazarescu” (2005), parte do livro “Os Três Diálogos e o Relato do Anticristo”, de Vladimir Soloviov, considerado o fundador da filosofia moderna na Rússia. Não há tradução portuguesa do livro, mas existe uma em espanhol. Não é propriamente uma adaptação porque o filme está dividido em capítulos que o livro não tem, capítulos esses nomeados por personagens que Soloviov chamou por outros nomes. Os seus protagonistas são russos: um general, um político, três senhoras aristocratas e um filósofo que é uma representação do próprio Soloviov que o autor batizou de “senhor Z” - no filme, ele chama-se Nikolai.

Malmkrog (Mălâncrav em romeno), por sua vez, é um lugar de origem alemã na região da Transilvânia onde se situa a mansão senhorial em que Puiu rodou. O filme passa-se entre a Guerra Russo-Turca de 1877-1878 e a Exposição Universal de 1900 de Paris (que um diálogo do filme a uma certa altura anuncia), ou seja, estamos definitivamente muito próximo do fim, mas ainda no século XIX. No termo de uma era. E num filme poliglota, ainda que maioritariamente falado em francês, língua que toda a aristocracia, noblesse oblige, falava então. O elenco é franco-romeno, composto sobretudo por atores de teatro, no trabalho mais cerebral e palavroso de Puiu até à data – e é também o primeiro dele que parte de um texto de um autor. “Malmkrog” é a sua sexta longa-metragem em vinte anos. Cada filme do romeno tem sido recebido sem exceção com uma aura de acontecimento.

Cristi Puiu: “É incrível como nós, seres humanos, alimentamos o ódio”

UM FILME FALADO

E de que falam as personagens de Puiu, de que falam os sempre formais Nikolai, Ingrida, Edouard, Madeleine e Olga, naquela mansão atentamente servida pelo mordomo István (que também tem direito a um capítulo) e restante criadagem, rodeada de neve, em época natalícia? Puiu foca-se nos primeiros sem contudo perder de vista os movimentos e os rituais do trabalho doméstico dos segundos. Os senhores falam da guerra e da ciência, da ética e da moral, do progressismo tolstoiano e da sua ideia de cristianismo (que Soloviov recusou). Falam da luta eterna entre o Bem e o Mal, da existência de Deus e do Diabo, são questões sem solução. Do Anticristo, ideia com a qual Soloviov terminava o seu livro. Da morte inexorável, tema a que todos os filmes de Puiu vão dar.

E neste filme de filosofias e filosofices, as personagens falam também de conflitos entre Ocidente e Oriente, e da Europa, em considerações que foram publicadas há mais de 120 anos mas que soam estranhamente atuais quando as ouvimos agora: a história repete-se, repete os mesmos erros e paradoxos. É um 'filme falado' em que as palavras se escutam e se saboreiam pelos seus diferentes sotaques, mas palavras que talvez já tenham perdido o seu sentido.

Depois, vem aquele momento em que as personagens chegam a uma “ópera cómica” (a expressão é deles) e acontece um cataclismo dentro daquelas paredes – uma consequência natural para as personagens de Puiu, que até então mais não fizeram do que contemplar a catástrofe com sobranceria. Mas não é um ponto final para o filme. “Malmkrog” está cortado em duas partes, como uma laranja cortada ao meio. É um filme de paradoxos, como “Demónios”, de Dostoievski. Uma reflexão do romeno Puiu sobre o estado do mundo a partir de um texto com a insolência de uma profecia.

“Quando as personagens começam a teorizar, esquecem-se da sua vida pessoal”, contou-nos Puiu em entrevista. “E isso é grave, porque a vida pessoal conta. Receio que o homem esteja condenado a refazer os mesmos erros. Ele comporta-se como se o céu fosse o limite. E está disposto a matar o seu próximo de um dia para o outro sem sequer refletir. É incrível como nós, seres humanos, alimentamos o ódio. Cada vez mais. Não compreendo porquê. É por isso que faço filmes.” (…) “Acho que estamos mais próximos da verdade quando a esquerda e a direita nos odeiam. Incomodamos toda a gente e ficamos num estado de suspensão. Só que o Ocidente tem dificuldade em aceitar a suspensão. Não gosta do que é misterioso. Mas Deus é misterioso. Como o Big Bang.”

PATOLOGIAS NA COMPETIÇÃO


“Malmkrog” é um enorme filme para lá das suas 3h20 de duração, não poderia ser melhor cartão de visita para a recém-criada secção Encounters. Escusado será dizer que se notou com estrondo a ausência do filme de Puiu da competição pelo Urso de Ouro, até porque os dois primeiros que se apresentaram ao concurso são claramente inferiores.

Antes deles, um parágrafo para “My Salinger Year”, de Philippe Falardeau, filme de abertura, fora de competição, em torno de Joanna Rakoff, uma jovem californiana que, na Nova Iorque de 1995, arranja emprego numa agência literária. Margaret, a diretora da agência que Sigourney Weaver interpreta, dá-lhe missão bem mais trabalhosa do que parece: responder (ainda que com cartas-modelo) à correspondência endereçada a J. D. Salinger, algo que o autor de “Uma Agulha no Palheiro” deixara de fazer em 1963. Com esse trabalho, entrará Joanna na idade adulta. Ela contou em livro a experiência que Falardeau agora adapta ao grande ecrã. “My Salinger Year” vive da graça da jovem atriz Margaret Qualley, que ainda há pouco vimos no último filme de Tarantino (é a Pussycat que seduz Brad Pitt nos cruzamentos) e que podemos ver por estes dias em “Seberg”. Mas é um filme convencional, até com clichés desnecessários: aquela mania de representar Salinger sempre de costas ou de esguelha para que a sua cara jamais possa ser vista - sublinhando a reclusão de um escritor que evitou ao máximo expor-se em público - é um erro grosseiro.

Elio Germano em “Volevo Nascondermi”, de Giorgio Diritti

No concurso, surgiram dois filmes de doidos. “Volevo Nascondermi”, do italiano Giorgio Diritti, é um biopic com flashbacks em estrutura gasta, com tudo preparado para enquadrar um homem triste desde a infância que é também um caso clínico de psiquiatria: Antonio Ligabue (1899-1965), suíço-alemão filho de italianos, portador de doença mental, mas também pintor tardiamente reconhecido como expoente do género naïf a partir dos anos 60. Há um problema de ritmo na forma como os flashbacks se encavalitam, e outro problema de duração porque o filme não tem ou não quer ter matéria para alimentar duas horas. Tal como o vimos, foi montado como um recipiente para evidenciar a performance visceral e até exagerada do ator Elio Germano. Diritti já fez melhor em “Il vento fa il suo giro”. Este novo filme foi também a primeira deceção da Berlinale: não conseguimos enquadrá-lo na nova linha de um festival em mutação com vontade de defender o que faz a diferença no cinema contemporâneo.

Érica Rivas em “El Prófugo”, de Natalia Meta

O caso do argentino “El Prófugo”, assina a cineasta Natalia Meta, é mais estimulante porque é um assumido filme de género (de terror paranormal) num país em que a psiquiatria e a psicanálise têm uma forte implementação na sociedade. É a história de uma cantora lírica que, depois do suicídio inesperado do namorado, que é um ciumento compulsivo, fica com um prófugo dentro dela, isto é, com um invasor, espécie de parasita que só pode ser eliminado se a personagem de Érica Rivas (atriz a ter em conta) conseguir entrar nos seus próprios sonhos e exorcizar os seus demónios. Não menos sugestiva é a relação da estranha doença insinuada por Natalia Meta com o próprio cinema, já que Inés, assim se chama a heroína, tem um segundo emprego a fazer dobragens de filmes e é pela gravação de som que o problema é descoberto. Inés tinha um namorado neurótico, começa a desafinar após a morte deste, e as cenas que se passam em torno do órgão da sala em que ela ensaia são enigmáticas porque anda por ali um ambíguo afinador de pianos (Nahuel Pérez Biscayart) que tanto pode ser futura cara-metade como fantasma. “El Prófugo” tem as suas fragilidades de ritmo e de gestão de tensão, falta-lhe contundência e crueldade para que se veja aqui um herdeiro de Argento ou de Cronenberg, mas é genuino nas suas qualidades e nos seus defeitos. Está desalinhado de modas. Justifica-se a sua presença no concurso.

Entretanto, já passaram “Le sel des larmes”, de Philippe Garrel, que não sabe fazer filmes maus, e o sublime “First Cow”, de Kelly Reichardt, a melhor cineasta americana da sua geração. Depois de “Malmkrog”, é com eles que esta Berlinale começa verdadeiramente.