A Berlinale vai continuar a ser o festival de cinema mais popular do mundo a nível de espectadores (vende para cima de 400 mil bilhetes em dez dias) mas quando se olha para a grelha da edição que começa esta quinta-feira, percebe-se que o programa das festas se alterou substancialmente. A alemã Mariette Rissenbaek e o italiano Carlo Chatrian (que deixou um Festival de Locarno em alta em 2018) tomam agora as rédeas de Berlim numa direção bipartida, após 19 anos de Dieter Kosslick na liderança. Kosslick, de resto, deixou o festival sob um coro de críticas em carta aberta assinada por 79 realizadores do país, por uma série de escolhas de programação demasiado anódinas, sem chama, e em que Berlim perdeu claramente para a concorrência, isto é: para Cannes e Veneza.
Chatrian, responsável pelos novos destinos artísticos de Berlim, quer inverter esta tendência e não colocou de lado o cinema mainstream. Não é isso que se pode dizer de um festival que, afinal, convidou “Onward” (em português vai chamar-se “'Bora Lá”), a ultima produção animada da Pixar; “Pinóquio”, versão do conto de Carlo Collodi por Matteo Garrone, com Roberto Benigni no papel de Geppetto; “Minamata”, de Andrew Levitas, com Johnny Depp na pele do fotojornalista W. Eugene Smith. O filme que inaugura o festival esta noite é “My Salinger Year”, baseado no livro de memórias que detalhou os encontros entre Joanna Rakoff e o secretíssimo escritor J. D. Salinger, com Margaret Qualley e Sigourney Weaver no elenco.
E, no entanto, esta Berlinale teve a ousadia, isso sim, de afastar aquele cinema mainstream do concurso pelo Urso de Ouro, estendendo de caras a passadeira da sua secção máxima a um cinema muito mais exigente e radical do que era hábito. Um cinema que, de resto, é vincadamente de autor e onde encontramos cineastas que se seguem há muito: os americanos Abel Ferrara (“Siberia”) e Kelly Reichardt (“First Cow”), a inglesa Sally Potter (“The Roads Not Taken”, com Javier Bardem, Elle Fanning, Salma Hayek e Laura Linney), Philippe Garrel (“Le sel des larmes”) assim como a dupla também francesa Benoît Delépine/Gustave Kervern (“Delete History”), o alemão Christian Petzold (“Undine”), um habitué do festival, e também os filmes asiáticos “Irradiated”, de Rithy Panh (Cambodja), “Days”, de Tsai Ming Liang (Taiwan) e “The Woman Who Ran”, de Hong Sang-soo (Coreia do Sul), enormes cineastas com reputação em nada inferior à dos supracitados.
Isso não impediu contudo que o quase desconhecido Burhan Qurbani, cineasta alemão de origem afegã, entrasse também nesta corrida e com argumentos, de resto, que são muito lá de casa: o seu novo filme chama-se “Berlin Alexanderplatz” e é, nem mais nem menos, uma adaptação aos nossos dias do celebérrimo romance homónimo de Alfred Döblin, o mesmo que - como muitos sabem - também Fassbinder adaptou e moldou a uma série de televisão.
E o que dizer de “DAU”, do russo Ilya Khrzhanovskiy, senão que é um dos projetos mais ambiciosos e delirantes da história do cinema recente? A sua produção foi uma quimera de dez anos de rodagem, resultou em 700 horas de material. Khrzhanovskiy recriou a Moscovo dos anos 50/início dos anos 60, teve ao seu dispôr 50 atores que filmaram continuamente durante dois anos. E aquilo que à partida tinha começado por ser um filme biográfico sobre o cientista soviético Lev Landau, vencedor de um Nobel, cresceu ao ponto de se transformar em 14 (catorze!) longas-metragens, três séries, assim como em várias video-performances. Grande parte deste material foi exibido ao público numa instalação multimédia que fez data em Paris, em 2019. “DAU” (o título refere-se a um instituto científico em Kharkiv, Ucrânia) chega agora à competição de Berlim pelo episódio “DAU. Natasha” (coassinado por Jekaterina Oertel), de 145 minutos, e pela série de 6 horas “DAU. Degeneration”, que será exibida na secção Special Gala. O júri presidido por Jeremy Irons terá 18 obras para avaliar e premiar, 16 delas em estreia mundial – o festival corre até 1 de março. A atriz Helen Mirren vai ser homenageada.
Mas esta Berlinale de bitola exigente não se fica por aqui. A equipa de Chatrian criou uma nova secção que aposta em obras ainda mais arriscadas e “que querem ser um espelho do século XXI” – Encounters – e logo a abrir a dita descobre-se “Malmkrog”, novo filme de Cristi Puiu (“A Morte do Sr. Lazarescu”), baseado num livro do filósofo russo Vladimir Soloviov, contemporâneo de Dostoievski. Recorde-se que o filme anterior de Puiu, “Sieranevada” (2016), competiu em Cannes pela Palma de Ouro. “Trois exercices d'interprétation”, de 2013, já se baseara em textos de Soloviov. É também na secção Encounters, que traz novas obras do veterano Alexander Kluge (em parceria com o filipino Khavn De La Cruz) de Josephine Decker e de Matias Piñeiro, que se encontra “A Metamorfose dos Pássaros”, estreia na longa-metragem de Catarina Vasconcelos (com produção da Primeira Idade) e um dos muito poucos filmes portugueses presentes em Berlim este ano. “Quantum Creole”, uma vídeo instalação de 40 minutos de Filipa César, artista portuguesa há muito radicada em Berlim, passa no Forum Expanded.
50 ANOS DE FÓRUM
Num ano em que Berlim vai retrospetivar toda a obra de King Vidor (e há quem venha à capital alemã só para seguir esse ciclo), numa edição em que a Panorama, habitualmente ligada a temáticas de género, foi reduzida a um bloco mais denso, impressiona a quantidade de bons cineastas que se se descobrem em secções paralelas. A Berlinale Special apresenta hoje à imprensa “Swimming Out Till The Sea Turns Blue”, documentário de Jia Zhang-ke sobre as transformações de Fenyang, a sua cidade natal. É também neste grupo que passa “Hillary”, de Nanette Burstein, documentário biográfico com mais de quatro horas sobre Hillary Clinton, ou “As Noites Loucas do Dr. Jerryll” (1963) em cópia restaurada – homenagem a Jerry Lewis. E na secção Generation, o japonês Nobuhiro Suwa mostra o seu novo trabalho, “Voices in the Wind”.
E depois há o Fórum, que também chega este ano a uma edição de número redondo: a 50ª. Traz novos filmes de Radu Jude, James Benning, Jonathan Perel, Edgardo Cozarinsky, Paula Gaitán, Lois Patiño, Gustavo Vinagre... Ou seja, é um festival dentro do festival. Este ano, o Fórum vai exibir uma primeira longa-metragem de Raul Ruiz realizada há mais de 50 anos e que o cineasta chileno nunca terminou, “El Tango del viudo y su espejo deformante”. O material foi agora remontado pela realizadora e viúva de Ruiz, Valeria Sarmiento.
Cristina Nord, crítica de cinema alemã, assumiu pela primeira vez a direção desta lendária secção berlinense e montou também um fabuloso programa comemorativo para assinalar a efeméride, recuperando parte da grelha da edição original, em 1971. E aqui estão filmes de Straub/Huillet (“Othon”), Kluge, Oshima, Chris Marker, Alain Tanner ou Dusan Makavejev (o célebre “Os Mistérios do Organismo”, também em cópia restaurada).