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“O Irlandês”: aquela réstia de perdão

Épico melancólico de um cão danado, reflexo da violência bruta de três quartos de século da América, “O Irlandês” é também um espelho retrovisor de toda a obra de Scorsese. O filme está disponível desde esta quinta-feira na Netflix

“O Irlandês” estreia esta quinta-feira, 28 de novembro, na Netflix
DR

Três horas e meia após o início de “O Irlandês”, filme monumental em todos os sentidos, da produção à duração, do desempenho dos seus atores àquilo que o próprio filme significa à luz da obra de Scorsese e do cinema americano (mas tal não bastou para a Netflix o dar a ver entre nós nas salas de cinema), há um silêncio ensurdecedor que toma conta de nós. No genérico de início, já os The Five Satins cantaram “I’ll remember (…) I’ll hope and I pray...” em ‘In the Still of the Night’. Já vimos como as noites de Frank Sheeran (1920-2003), encarnado pelo melhor De Niro em décadas, foram tudo menos noites de quietude desde que o soldado veterano da II Guerra Mundial vendeu a alma (ao Diabo) e se tornou assassino a soldo de Russell Bufalino, o chefe mafioso daquela família (e que grande é Joe Pesci, a deixar-nos, e ao cinema, provavelmente para sempre, com um “I go to the church...”).

Também já sabemos que “ele pintava casas” — e foi com sangue nas paredes que Sheeran as pintou — desde aquele primeiro “Man shot dead on the side walk” que fez parangona. Charles Brandt documentou-se, investigou e escreveu tudo isto e muito mais em “I Heard You Paint Houses”, o livro em que, alegadamente, Sheeran confessou todos os não ditos de uma farta vida de killer (Sheeran jamais seria apanhado pela polícia pelos seus crimes a sangue-frio e sobreviveu a todos os seus pares, terminando os dias na casa de repouso em que o filme começa), nomeadamente o assassínio às suas mãos do histórico líder sindicalista dos Teamsters, Jimmy Hoffa/Al Pacino (“tão famoso como os Beatles nos anos 60...”), cujo desaparecimento e morte, em 1975, jamais foram comprovados (mesmo depois de Sheeran ter revelado a Brandt que foi ele quem o matou com dois tiros na cabeça). Acontece que “O Irlandês” não seria o filme que é sem a intervenção do argumentista Steven Zaillian (que também escreveu “Gangues de Nova Iorque”): Zaillian sabe a priori a matéria especulativa que lhe foi parar às mãos (foi Sheeran, tal e qual, o homem que o filme mostra?). Por outro lado, também Scorsese, ele que continua a ser um implacável cronista da história do seu país, se defende desta ‘armadilha’. Como? Projetando a lenda de Sheeran na história da América, entrosando o que pode ou não pode ter sido verdade na verdade insofismável da realidade histórica (a chegada de Fidel Castro ao poder em Cuba, a crise dos mísseis naquele país, o assassínio de Kennedy, etc.) e nos óbitos confirmados (com oráculos no ecrã) de tanta gente ligada ao crime. Este processo é deveras admirável porque “O Irlandês”, a nível narrativo, é de uma complexidade e de uma mestria notáveis. Sheeran começa por contar-nos a sua vida naquela cadeira de rodas na casa de repouso, vida essa que, depois, se centrará numa certa viagem de três dias de carro que ele faz com Bufalino e as respetivas esposas (a culminar com o abate de Hoffa). Por sua vez, é a partir da dita viagem que a ação se desdobra em ene flashbacks — e nenhum deles é igual na verve, no ritmo ou na duração. A pluma de Zaillian é incisiva, é fraterna, é cruel, explode também em momentos inspirados de humor que vão pautando o guião (note-se um dos últimos, o daquele carro com o banco de trás molhado por um peixe em jeito de MacGuffin).

“O Irlandês” apresenta-se como uma boneca russa sem tempo, contudo capaz de congregar todos os tempos de um certo período histórico da América. Este não é apenas o filme de um cão danado que agiu brutalmente e sem discernimento entre o Bem e o Mal ao longo de cinco décadas, salvando-se milagrosamente do “com quem ferro mata com ferro morre”. Não é apenas o conflito moral de um bom pai de família com quatro filhas e que, em simultâneo, foi um abismo a nível humano, capaz de, com um certo anel no dedo, abater pelas costas o homem que mais próximo esteve de tornar-se o seu melhor amigo. O que está em jogo em “O Irlandês” não é só isso, mas sim uma história de violência que edificou um país inteiro. E a imparável máquina de Poder que o alimenta. É por aqui que Scorsese chega ao épico. Neste ponto, “O Irlandês”, que é um filme de oldfellas recauchutados pela tecnologia (e isso nota-se...), é muito mais pessimista que os “Goodfellas” que Scorsese fixou em 1990. Mas voltemos ao silêncio ensurdecedor do início do texto. E a uma possível réstia de perdão de um homem que, ao contrário dos soldados nazis que ele despachou na II Guerra Mundial, cavou bem fundo a sua própria sepultura mas não chegou a cair nela — assim quis o destino. Isto é matéria de uma enorme riqueza emocional, assunto scorsesiano por excelência, e só um grande cineasta de formação católica como ele a tem poderia chegar aonde “O Irlandês” vai chegar. Pois estou disposto a defender: tudo o que vemos ao longo de 3h20 de filme culmina sem piedade e sem remorsos no que sucede nos últimos 10 minutos, a partir do momento em que Sheeran, naquela sequência indescritível, vai à agência funerária e faz o que faz para acertar contas consigo próprio. Scorsese não julga Sheeran. Está bem ciente da fronteira que não pode transgredir. Também não nos pede misericórdia por Sheeran — nem a temos.

Fica tudo na grande diferença entre o “feel sorry” e o “be sorry” da confissão ao padre, a mesma que Scorsese não se permite ouvir nem vai deixar que ouçamos. O silêncio ensurdecedor não é o de Scorsese nem o de Sheeran, mas sim o de uma personagem que passou o filme todo na sombra, aterrorizada desde pequenina, escondida atrás de portas, intrigada em cima das escadas quando o pai saía de casa fora de horas para mais um serviço. A mesma personagem que, por fim, lhe nega a palavra quando ele desabafa “I just wanna talk”: é a filha Peggy (Luccy Gallina em criança, Anna Paquin em adulta). Aquela que, outrora, ouviu a adivinha que levou Deus a fazer o céu tão alto. A única que tudo percebeu desde o início e que tudo reprovou sem dizer palavra. A que se lembra, como na letra da canção dos The Five Satins. Peggy é a prova mais dura que Sheeran não consegue ultrapassar. A maior dor de alma de um desalmado. A heroína invisível que absorve todas as forças trágicas e que, contas feitas, vai deixar a porta do quarto entreaberta, como as crianças pedem quando têm medo do escuro antes de adormecerem.