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O tempo da rainha Mary Stuart era mais louco que o nosso? Isabelle Huppert, outra rainha, acha que “infelizmente não”

Aos 66 anos, já ninguém se confronta com Isabelle Huppert. É considerada a maior atriz francesa e sabe como representar esse papel. Extraordinária em cima do palco, leva a Lisboa a história de Mary Stuart, rainha da Escócia. O Expresso falou com ela a seguir a uma noite de sonho

Nos dias 12 e 13 de julho, Isabelle Huppert vai estar em Lisboa para dois espetáculos no grande auditório do Centro Cultural de Belém. Traz consigo “Mary Said What She Said”, um monólogo com encenação de Robert Wilson e que chega no âmbito do Festival de Almada. Em antecipação, o Expresso viu o espetáculo em Paris, no Théâtre de la Ville, de Emmanuel Demarcy-Mota, numa noite quente de um verão inesperado. A atriz teve um momento de ouro, brilhou e encantou, contando a história de Mary Stuart (1542-1587), rainha da Escócia, que viveu o exílio e acabou morta por ordem da irmã, a rainha Elizabeth. Minimal, a peça desvenda uma capacidade incomum de representar. Irreal, Huppert dá vida a uma hora e meia de pura degustação teatral, onde tudo se conjuga no sentido da perfeição: argumento, encenação, representação, iluminação, maquilhagem e guarda-roupa. O encontro, porém, estava marcado para o dia seguinte ao meio-dia, no hotel onde habitualmente pede aos jornalistas que a esperem antes de qualquer entrevista. Hotel de L’Abbey, mesmo ao lado da Igreja de Saint-Sulpice, no centro do 6º bairro, onde vive também com o marido de uma vida e onde criou os seus três filhos. Chegou de cara limpa, cabelo apanhado, uma T-shirt, calças de ganga e umas sabrinas nos pés. Vinha atrasada 15 minutos. Blasée, deixou-se escorregar pelo sofá de uma salinha reservada e foi respondendo às questões entre toques de telemóvel, carregadores e a necessidade de sair em pouco tempo. Acabou por se abandonar às respostas.

Fui ontem à noite ver “Mary Said What She Said”. No final, veio agradecer ao público umas sete ou oito vezes. Contei-as. A sensação que tive foi a de que as pessoas que ali estavam não foram ao teatro ver a rainha da Escócia, foram ao teatro ver a rainha Huppert. O que acha?
É verdade que no fim do espetáculo há um grande calor do público. É muito agradável. Mesmo assim, acho que as pessoas aprendem qualquer coisa sobre a vida de Mary Stuart. E isso dá-me muito prazer. Pelo menos, é isso que me dizem. Há qualquer coisa que sobressai da beleza e da aventura extraordinária que foi toda a sua vida. Uma aventura incrível que acaba por ser trágica. Acho que as pessoas me vão ver, mas saem contentes por aprender. É uma história muito bonita.

Sente que tem um estatuto à parte?
Não, o que sinto é que este espetáculo tem um estatuto à parte. Eu não sei se tenho. Segundo aquilo que me dizem e segundo o que oiço, penso que é o espetáculo que provoca emoções muito fortes. No público, há muita gente que, a priori, admira muito o trabalho de Bob Wilson e que aqui encontra algo completamente encarnado, muito vivo, e tudo isso resulta de um trabalho que só o Bob Wilson consegue pôr em cena. A contenção do gesto e a contenção do movimento são muito importantes... Quer dizer, para mim nem se trata propriamente de contenção, é quase o contrário, é, sim, algo de muito formal.

Muito rígido?
Não considero rígido. É, sim, formal, como estava a dizer. Ele é um formalista, um homem da plasticidade, um artista plástico. No entanto, no interior de tudo isso, há muita vida. Para mim, há, sobretudo, a possibilidade de me desdobrar em expressões... A peça percorre o caminho completo da vida de Mary Stuart, da sua infância à sua morte.

Já conhecia a história dela?
Sim. Já tinha feito a Mary Stuart no Teatro Nacional, em Londres. Há muito tempo. E dessa vez foi a peça de Schiller que apresentei. A peça de Schiller, como sabe, ou não sabe, não sei, imagina o reencontro entre Mary e Elizabeth, que nunca teve lugar. Nesta versão de Darryl Pinckney, digo claramente que Elizabeth nunca mais quis ver a irmã.

Tem medo da loucura? Durante o espetáculo vemos uma rainha que já está quase louca...
Sim. Porém, para mim não é uma loucura completa. O que o espetáculo transmite é uma forma de selvajaria, de exuberância, também, de alegria, sim. Talvez a peça ultrapasse mesmo o contexto da vida de Mary Stuart, a peça leva-nos a revisitar todas as vidas através dos momentos de felicidade de que ela fala, dos momentos de alegria, mas também dos episódios de desespero e de violência. Há a impressão, talvez, de que o que o espetáculo percorre são todas as nossas vidas também. Bom, nós não temos a cabeça a prémio, não terminamos como ela, felizmente. Mas em todas as vidas há esta panóplia, esta diversidade de sentimentos.

Quer dizer que não tem medo da loucura?
Um ator nunca pensa que está a representar a loucura. Representa sentimentos extremos, sentimentos... Não creio que Mary Stuart estivesse ou fosse louca, ou então, era a época que era louca. Mas, no fundo, será que esse tempo era mais louco do que aquele que estamos a atravessar? Infelizmente, não acredito. A loucura é quando, de um momento para o outro, nos inclinamos ou tombamos sobre qualquer coisa de inominável, indizível e inqualificável. Ou nos debruçamos sobre uma violência que é o contrário da humanidade. Mas isso, acho, também era a época que propiciava essas coisas.

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