Tem no dedo um anel de oiro com um pequeno brilhante, veste um casaco de malha claro sobre um vestido às ramagens azuis. E pequena, discreta, irónica. Mas usa a ironia com sagacidade, isto é, tanto pode ser cortante como afectuosa. Recebe-nos, ao fotógrafo e a mim, na sua salinha de trabalho com a porta aberta para um esplendoroso e insuspeito jardim de rosas e hortênsias onde os pássaros cantarão pela tarde fora. "Este jardim? Deve-se aos ingleses que foram os melhores colonizadores..." Chegou na véspera à noite de Paris. Viajou de camioneta durante trinta e seis horas. "Porquê? Ora porquê? Porque não queria gastar dinheiro, por que é que haveria de ser? Andei na camioneta dos imigrantes que vão e vêm ao sabor das colheitas..." Sobre a sua mesa, alguns catálogos de exposições que visitou. Monet e Manet, que nem a tocam nem a deslumbram. "Manet é uma borratice. Não gosto... A boa pintura são os flamengos, a Espanha, sim, Velasquez, um Góya. E a Renascença toda." Luís Fontes começa a disparar a máquina e o súbito brilho de uma defesa desconfiada passa no olhar dela. "Se sinto a máquina há algo que vem logo ao de cima em mim... e que não deve ser bom concerteza... (Tem um pequeno riso, fininho como uma lâmina): "Eu, quando era nova, tinha inveja das raparigas que ficavam bem nos retratos." Dias antes, telefonara-lhe. A leitura do seu último livro, "Os Meninos de Oiro", fascinara-me de tal modo que me parecia impossível, quase inverosímil não ter uma conversa com ela. Diz-me que sim, marcamos um encontro: "Sim, eu posso atender a essa hora." "Os Meninos de Oiro"? Essa saga fantástica da paixão, do poder, da morte? Agustina Bessa Luís tinha de escrever este livro. Ele impôs-se-lhe naturalmente, estava, como ela diz, "latente em si há muito..." "Era difícil não se ser tocado, inspirado por uma personalidade assim..." A personalidade é a de Francisco Sá Carneiro — no livro José Matildes —, um dos "Meninos de Oiro" de Agustina Bessa Luis. Falamos muitas horas (e tão poucas afinal), sobre este romance. E, por vezes, alguma melancolia tinge a tarde que vai passando. Falamos de outros livros, da sua escrita, daquelas suas personagens femininas tão particulares. E dela, também. Dois dias depois, recebo uma carta sua: "Da longa conversa que tivemos e que não foi suficiente para abordar tão profundos motivos, como a razão dos homens e os infortúnios que dela resultam, ficou-me uma certa melancolia. Os meus personagens são ficção pura porque me deixam a liberdade de os interpretar; as pessoas cívicas e físicas que eu conheço merecem-me outros sentimentos mais evasivos, mais discretos. Ë assim com a Arte e com a Vida. E não se podem confundir as coisas. Sá Carneiro foi uma realidade intocável como qualquer outro homem que vive e morre. Mesmo nas figuras de Plutarco se sente a ficção tomar ascendente sobre a presença que a inspira sobre o peso histórico das coisas. De facto não há Histórias; há viagens em torno do tempo, e o tempo é tudo o que nos habita..."
José Matildes, o homem que atravessa as páginas do seu último livro "Os Meninos de Oiro", é Francisco Sá Carneiro?
É.
Porquê ele?
...Talvez porque não pudesse deixar de ser. Estava latente... Era difícil não se ser inspirado por ele, era quase impossível para um contemporâneo de Sá Carneiro não ser influenciado por aquela vida meteórica. É difícil, na nossa sociedade aparentemente tão morna, não se ser afectado, não é?
Foi fácil escrever este livro? Este, em particular?
Não, foi muito difícil. Escrevi-o com muita emoção, sobretudo a parte final que está relacionada com o estado de angústia que o português especialmente detesta. Sim, a última parte foi o mais difícil... não só pela pessoa mas por todo o território de que fazemos parte. De resto, penso que os leitores devem ter sentido isso... procuram este livro como quem procura outra coisa, que está para lá da própria personagem.
É um livro incómodo?
Não, porque não é malicioso. Era preciso dizer certas coisas que tinham que ser ditas, tratei do meu comportamento em relação a determinada angústia que nos toca a todos. Há coisas muito profundas que nós não deliberamos mas que estão lá... há coisas que não se escrevem e quando se escrevem é de uma forma ilusória... Mas repito-lhe o que lhe disse há pouco: não tive a mais pequena ideia de fazer ou querer fazer uma biografia ou um retrato. Francisco Sá Carneiro foi o motivo... como não poderia deixar de ser. Parti do motivo e trabalhei-o em forma de romance, o que me permitiu ultrapassar certas dificuldades como as que se apresentam aos jornalistas por exemplo... Parti do motivo e fui talvez aquém... Não quis só ficar-me pelo líder mas conhecer eu própria o segredo profundo de um comportamento.
Conheceu bem Francisco Sá Carneiro?
Sim, conheci. Profundamente. Era um conhecimento que vinha de longe, de antes, de muito antes do 25 de Abril... Para mim, o que aconteceu foi uma forma de inspiração pura. Por mais aliciante que fosse uma história ou um acontecimento, eu nunca o contaria como ele na verdade aconteceu.
Este livro saiu discretamente, não se fala muito nele... Pelo menos, não se fala tanto como seria natural. Apareceu assim, como que de repente... Porquê?
O livro saiu numa data muito próxima à das últimas eleições, e eu não gostei nada disso. Desagradou-me a possível nota de sensacionalismo que isso pudesse envolver. Não gosto, não preciso... Olhe, uma vez retirei um livro meu, há muitos anos, do mercado. Chamava-se "Os Super-Homens" e quando apareceu gerou-se à sua roda uma certa polémica. Retirei-o logo, praticamente era toda a edição, para que se não pensasse que eu estava a gostar daquela polémica e quem sabe se mesmo a alimentá-la... Só 25 anos depois é que consenti que ele aparecesse de novo...
Mas "Os Meninos de Oiro" estão a ter ecos discretos...
Essa discrição envolve um acto de cortesia. Por outro lado, aqui no Porto não se fala muito dele, não. Há muita gente que esteve envolvida, comprometida com a vida passional de Sá Carneiro e acha que o livro toma posição neste aspecto. Em relação a este livro, mesmo os meus amigos fazem discretamente de conta que estão no estrangeiro... o desconhecimento da sua própria ficção.
Toma posição, diz você?
Um homem eminente pode ter todas as atitudes privadas mas não exigir um sancionamento. Eu não sou uma moralista, nem uma moralona (ri), sei que toda a criação humana depende de encontros e desencontros passionais... O homem eminente quase nunca é o homem de uma mulher só... mas não podemos ter confiança num homem que impõe as suas atitudes como uma regra de vida. Não se pode depender de uma visão e de um comportamento pessoal. O que havia de perigoso nele era o desconhecimento da sua própria ficção. O que lhe aconteceu foi no fundo uma cisão na personalidade. E isto é perigoso porque ele tinha urna posição dominante e poderia ter provocado uma infecção geral. Todo esse fenómeno acabou por contagiar, envolver as pessoas; e as circunstâncias em que ele se movia eram perigosas também.
Quem era Francisco Sá Carneiro?
Era um homem que esteve muito acima dos comparsas. Mesmo acima das mulheres que lhe couberam em sorte. Era também um pouco para lá da divisão entre duas mulheres, um homem de uma só mulher. Mas não é verdade que não se pode dizer isto numa sociedade (porque logo se cai numa espécie de ridículo)? Francisco Sá Carneiro era um homem com dimensão. Não falo na tragédia final porque essa é excessiva, possui urna dimensão grega numa sociedade que a não comporta. Ele possuía uma dimensão trágica...
...que o ultrapassava?
...que o ultrapassava. Era um solitário mesmo no meio dos amigos, mesmo quando era o líder, era um solitário. E era secreto. Acho que houve um determinado momento que desencadeou tudo o resto, momento que ocorreu certamente antes do 25 de Abril, mas o quê... isso eu não sei... Mas ninguém mais capaz de conhecer isso do que a sua própria mulher... Em estado de paixão.
O que o impressionava nele? Se é possível, numa personalidade tão complexa, decidir por este ou aquele traço de carácter...
O que impressionou todas as mulheres e se traduziu num luto geral que elas lhe dedicaram. Elas reconheciam nele o traço que apreciam nos homens e que é a seriedade... Como hei-de dizer...? Não a seriedade no sentido burguês, mas... seriedade em relação às próprias paixões... E é curioso que ele, de modo geral, era considerado pelos outros homens como inexperiente e ignorante das paixões, logo capaz de lhes ceder com mais facilidade. Por exemplo: o burguês bem prevenido e instalado acha que deve ter uma amante como antídoto para as paixões. Ele não se poderia enquadrar nisto, levava demasiado a sério os próprios sentimentos. As pessoas nascem apaixonadas, em estado amoroso, depois, há determinadas condições que captam esse estado pré-existente. A paixão pela sua própria projecção, pela sua condição de ser humano. Ele fazia tudo, tenho a impressão, num estado de paixão. E talvez o 25 de Abril fosse importante porque veio criar um terreno propício ao desenvolvimento disso mesmo... A guerra, por exemplo, cria, legitima essa libertação. Ele fazia a guerra.
Há pouco disse-me que ninguém mais capaz do que a sua mulher para conhecer o mistério da sua personalidade...
Sim. E o que faz de Isabel Sá Carneiro um personagem histórico é conhecer todos os pormenores do marido. É uma mulher a quem lhe dá na tragédia essa espécie de despreocupação... Ela comporta-se sempre, face à tragédia, com despreocupação porque conhece todos os factores. Não, não é só um traço do seu carácter, é mais do que isso... Nos momentos mais graves — que os próximos consideram de graves consequências — ela não os vê como tal. Possivelmente, porque tem um conhecimento que nos falta. Sabe, eu nunca quis grande proximidade nem intimidade, justamente porque escrevendo eu um personagem que se pode identificar como sendo Francisco Sá Carneiro, eu não queria que sobre ela pesasse a suspeita de ter sido menos discreta. Assim, tudo são construções, por vezes apoiadas em informações acidentais mas que nunca chegaram a ter a dimensão de revelações.
Que tipo de investigação fez para chegar a certos meandros da história?
Nenhuma, nenhuma. Foi só de ouvir falar... as coisas vieram ter comigo naturalmente. A vida das pessoas é plana e elas estão sempre prontas a efabular e a contar, a contar... No momento próprio eu utilizo isso.
Conhecia também a mulher de Francisco Sá Carneiro?
Só tive acesso a ela bastante mais tarde. Conheci-o a ele muito primeiro. Os meus personagens não são da minha intimidade. Há como que uma espécie de pudor e recuso-me por vezes a conhecê-los melhor para melhor poder escrever sobre eles. O que eu quis supor na mulher de Sá Carneiro foi uma determinada violência, foi um tipo de mulher muito comum no Norte. Penso que encontrei também uma espécie de afinidade com a Carlota Joaquina, o que tem a ver com defeitos e qualidades que há no Douro, relacionados com uma penetração e com uma consanguinidade com a Espanha. Nas grandes casas dourienses havia nobres espanhóis imigrados que foram favorecidos pelos reis portugueses.
A mulher de Sá Carneiro — no livro, Rosamaria — é ou não o principal personagem? Você diz isso a dado passo mas não penso que assim seja. Ou será... afinal?
Sim... o personagem central na medida em que eu sou o personagem central de todos os meus livros. A Rosamaria tem muito de meu. A "Sibila" era alguém que conheci e havia aí uma transfusão da minha própria natureza. Há sempre uma parte de nós que interfere. A Rosamaria tem muitos pontos comuns comigo. Não podia ousar fazer a história da Isabel Sá Carneiro, não a conheço bem, há quando muito entre nós relações protocolares. Mas ela é como a escrevi, na medida em que posso imaginar que ela será um pouco assim...
Mas não é por acaso que Rosamaria sobressai, que a sua personalidade se agiganta, se fortalece e prevalece ao pé de outras mulheres. Marina Torrão, por exemplo, Andreusa. Hipólita... Só Ana de Cales é como que uma asa que cobre as outras mulheres com a sua força, o exemplo, a teimosia... Rosamaria é ou não intencionalmente a mulher forte deste livro?
Sim, é. Porque todo o comportamento de Francisco Sá Carneiro na sua expressão emotiva de que todo o país participou, é ambíguo se não atendermos, se não tivermos em conta que ele está a actuar perante alguém. É como se estivesse a desempenhar um papel num teatro, para um único espectador sentado na plateia. O que torna importante esse espectador é que ele tem o conhecimento exacto de toda a trama. E isso é que o torna fascinante, mesmo para o próprio personagem teatral... Aquilo que eu penso, os dados com que criei estes personagens, eram acessíveis a toda a sociedade portuguesa. O próprio Sá Carneiro não os recusou...
E qual foi o seu papel? Ordená-los, emoldurá-los, fortalecê-los, romanceá-los...? O que fez com eles?
Eu limitei-me a pô-los em ordem na medida do possível. Porque continuo a pensar que há um dado que nos escapa a todos e que seria a chave...
...chave?
...de todo o mistério que envolveu e ainda envolve Francisco Sá Carneiro.
Ana de Cales é mais uma vez aquele retrato de mulher tantas vezes criado por si. Aquela mulher do norte, o grande modelo matriarcal ao qual você regressa sempre. Desde a "Sibila"...
Sim, sim. Aqui inspirei-me na lenda da Ferreirinha, uma célebre dama da Finança do Douro e do Porto, que viveu no século passado, e que foi antepassada da Isabel Sá Carneiro. E para o personagem da Hipólita, inspirei-me numa bisavó minha que casou em segundas núpcias com um primo da Ferreirinha. Tudo gente da mesma região. Há um conhecimento de um mesmo espírito familiar que se repete e identifica e uma determinada região impregnada deste espírito. Essa Ferreirinha acabou por dar um tipo da região. Se reparar, nos meus livros aparece muitas vezes esse tipo...
...que a fascina?
Porque o conheço. Embora o interprete de muitas maneiras e com muitas "nuances". Conheço muitas pessoas da região que se identificam com esse tipo. Sim, é um pouco o modelo matriarcal... mas Ana de Cales vai além. E a grande administradora o que aliás de certa maneira, não é tão comum como isso na sociedade portuguesa.
E Marina Torrão (que no livro é a segunda mulher de José Matildes)?
Foi uma comparsa. E foi sobretudo muito mais uma vítima das circunstâncias e de um jogo que ela não dominava.
E Andreusa?
É uma personagem decorativa. Andreusa não tomou a lugar da secretária nem sequer eu própria pensei na secretária de Sá Carneiro. Ouvi vagamente dizer que ela tinha importância... A figura de Andreusa está baseada numa generalidade que é quando há figuras principais, duas, três, de um caso extremo, limite, há também as figuras parasitas desse caso. É fatal isso existir. A Andreusa é figura parasitária de um caso limite. (É a hora de chá. Diante da bandeja, Agustina dispõe as chícaras, serve-as, pergunta se não quero o chá com leite. Oferece-me uma torrada, bolinhos, biscoitos. E depois, olhando para o cão, o Lemy, diz com uma alegria irónica: "Sabe para que serve este cão? Para eu não engordar:.. Não vê que ele come sempre a metade da minha torrada e as bolachas...?" Pergunto-lhe como se chama o gato que neste momento se empoleira no braço da sua cadeira: "Chama-se , Fu... como o gato...", responde-me a rir enquanto se serve de novo de chá.
Deixemos agora as mulheres. Francisco Farinha, ou Farina como você parece preferir, não é outro senão o escritor Ruben A. Com quem violenta, impiedosa! Ou deverei dizer: cruel?
Farinha é Ruben A. Conheci-o pessoalmente, mal e pouco. Conheci-o melhor através de contactos indirectos, era amigo de amigos meus. Era alguém muito inteligente mas que aplicava a inteligência na mundanidade. Tinha capacidade de intrigar de ser uma eminência parda mas apenas a nível emocional. Escreveu um romance, que não lhe perdoei: é um livro notável mas no fundo... (ri), não gostei que ele fosse tão inteligente!
Porque foi tão violenta com ele? Porque sentiu essa necessidade?
Eugénio de Andrade também empregou essa palavra...: violência. Também me disse que eu fora violenta. Mas a minha atitude vai-se modificando. No final, há uma atenção que é já uma redenção da minha primeira escolha. Mas repare que eu faço-lhe mais justiça, afinal... A violência é uma homenagem maior!
No seu livro, descreve Farina/Ruben A. como tendo sido determinante de um ponto de vista cultural junto de José Matildes/Sá Carneiro: pela sua acção, pela influência, pelas palavras, pelas ideias até. No seu livro, Farina foi quem mais influenciou José Matildes. Na vida real isso não aconteceu.
Pois não, pois não... Não existia essa influência de Ruben A. em Sá Carneiro. O que existia era a influência desse escritor junto de um outro político... Não, não lhe digo. Você de vez em quando diz assim uma palavra aqui, outra acolá, vai fazendo as perguntas de uma certa maneira, mas ainda não reparou que eu só digo o que quero? Sou arisca... é o meu lado infantil... é como quando saio em dias de chuva, gosto de andar à chuva. O meu marido, assim que vê um dia desses sabe logo que fico feliz e que vou sair para andar à chuva...
"Os Meninos de Oiro" é assim a constante interpenetração da realidade na ficção, o permanente e fascinante balançar entre o que já sabemos e o seu olhar propositadamente "armadilhado" sobre o que já sabemos...
Sim, como em todos os livros há a interpenetração do real e da ficção. Aqui, a realidade já tinha todas as coordenadas daquilo que chamamos a ficção. Não sou em geral uma escritora que me inspire na primeira página, no sensacional. Aqui houve muitas condições que me conduziram, que me favoreciam o impulso para isso.
Este seu último livro é também e ainda o privilegiar de urma determinada zona do país. É uma espécie de homenagem, de elegia, de descrição exaustiva, de escolha: finalmente, de uma zona cultural e social que é o Douro à qual você, tal como com Ana de Cales, regressa sempre. Porque é a sua terra?
Sim, privilegio-a de certa maneira. As pessoas que se consideram daqui talvez pensem que eu as atraiçoo, há sempre ou uma forma de dizer as coisas que é minha... e pode haver um carola que pode achar pouco ou mal descrito. As melhores páginas do "Marquês" são as do Douro. Mas, sabe, há sempre um lado onde caricaturo certas coisas. Um escritor que se considera mais romântico faz prevalecer esse lado. O romântico altera a verdade visível... ela é dada de forma excessiva.
Você é uma romântica?
Os românticos alemães deslumbraram-me. Régio dizia que eu não era uma clássica mas urna romântica com uma dimensão do excessivo. Mas o Douro... bem, gostava de sublinhar que não o descrevo por ser mais digno ou superior mas por ser mais conhecido por mim. Quando traduzo o contacto com uma experiência ela tem que ser a minha. Conheço bem o Douro desde a minha infância. Os tempos mais marcantes dessa infância e mesmo da adolescência foram lá passados. Entre os meus 15 e 19 anos, no tempo da formação da minha personalidade, da cultura, do contacto com os livros, o Douro era onde eu vivia. Esses quatro anos foram definitivos... tão importantes que me levaram depois a privilegiar esta região.
Há uma coisa que me confunde nos seus livros: ninguém fala da maneira geralmente utilizada pelas suas personagens. Ninguém, em nenhum estrato social, em nenhum sítio do mundo, em nenhuma raça, utiliza aquele extraordinário modo de falar...
Você podia dizer isso ao Shakespeare. Como é que o Otelo tem aquela conversa com a Desdémona? Acho que na criação nos permitimos a teatralidade, a exacerbação do concreto. Imagine que Hamlet aparece em cena, encontra um amigo e diz: — "Imagina o que me acontece! À minha mãe deu-lhe para dormir com um tipo que eu detesto! E isto é uma chatice porque não sei o que hei-de fazer..." E a verdade é que ele depois se decide, em grande, a saber o que há-de fazer! E a verdade também é que a maior parte das pessoas deste mundo são "Hamlets" que não encontram o seu ponto de decisão. Felizmente, se não, acabava tudo muito mal... (ri) Bem, mas penso que não é só isso, sabe? A palavra, redundante, harmoniosa, com todo o peso da teatralidade, evita a simplificação dos nossos actos. O que impede que o Hamlet consuma a sua vingança durante todos os actos é de facto a importância que ele dá à palavra: e o reflexo, é todo um estado cauteloso, estudioso. No fundo, a palavra é que faz a lei não é? Senão, a sociedade era muito mais imediata. A palavra, a pompa, a cerimónia, tudo aquilo de que estamos a privar a sociedade...
Já não há cerimoniais hoje?
Há simulacros. Porque são tão contestados que não resistem. Repare, perante uma parada militar, as pessoas riem! Um "Te Deum"? Hoje já não tem, já não pode ter a mesma força... o que há hoje é uma cópia de uma cópia...
Isso provoca-lhe alguma nostalgia.
Tenho o meu próprio cerimonial. Uma sociedade pode sobreviver se cada um tiver o seu. Parece-me que as pessoas confundem a falta de cerimonial com a sociedade permissiva. Não tem nada que ver. A abolição do cerimonial pressupõe a existência, a prática de um cerimonial interior. A verdade é que se a pessoa mantém interiormente uma certa elegância, isso determina a sua relação com os outros.
É uma mulher pessimista?
Não sou. Para mim é difícil exprimir os motivos de um relativo optimismo. Mas tenho alguma satisfação comigo mesma. Não, não estou desiludida. Utilizo os dons com que fui dotada, utilizo-os na medida de todo o meu trabalho e desenvolvo-os. Não haverá nunca em mim nenhum momento de desistência, até ao último minuto terei que utilizar esses dons e deixar a prova que eles existiram... Isso dá-me uma certa tranquilidade que depois se reflecte no meu contacto com os outros. Sabe o que me dá a sensação de maior plenitude da vida? É o tornar-me indiferenciável. Diferenciar na medida em que sendo uma escritora procuro ser a melhor possível mas o que não suporto é que isso seja transposto para o meu contacto com a comunidade. Só sou diferente enquanto escrevo, porque fui dotada e cumpro para com esses dons. Mas numa sociedade que se equilibra, nesse aspecto não gosto de me diferenciar. E é por isso que no meu comportamento com a sociedade o que predomina é um estado afectuoso que pode não aparecer naquilo que escrevo...
Porquê?
Tenho a responsabilidade da exactidão, da crítica, de ir aprofundando... Só somos afectuosos com o inevitável. Com a morte, há um cerimonial afectuoso porque estamos perante o inevitável. E o único cerimonial que ainda existe...
Escrever é a necessidade ou o gosto?
Gosto de escrever. E nesse sentimento confunde-se o gosto e a necessidade. O meu humor é mais incomodativo, é implicante mesmo para os próximos, quando não escrevo. Escrevo sempre de manhã, por vezes à tarde. Saio muito pouco... a não ser em dias de chuva (ri)... Vou ali ao jardim, isso obriga-me a mexer-me.
O poder... o que é? O poder fascina-a por exemplo?
O poder? Fascínio? Não, não tenho fascínio. Tenho sim um fascínio pelo desprendimento do poder. Se fosse poderosa tinha imensa vergonha. O que não quer dizer que não me fascine a responsabilidade. As situações de dificuldade essas, fascinam-me. A facilidade é o caminho errado. Historicamente... todos os nossos erros históricos provêm dessa nossa tendência... O português não gosta da dificuldade na medida em que ele evita relacionar-se com as situações de glória e poder porque inevitavelmente sabe que encontraria a dificuldade.
E a política?
Não me interessa muito especialmente. Quando me querem ver como política, normalmente não me vêem correctamente. Eu é que posso ver a política como uma contínua acção romanesca, na medida em que interfiro na política e na medida em que interfiro nos meus livros. A minha atitude política está sempre ligada, por coerência, ao espírito britânico... Não é sem razão que temos há séculos uma aliança britânica... há algo que compreendemos neles: o respeito, um certo equilíbrio, a habilidade de contacto, de convívio... Se eu tivesse de me exprimir politicamente era fleumática e incisiva, mas não antes do momento exacto.
Já se tem exprimido politicamente...
Olhe, por exemplo, agora, recentemente, não clamei por novas eleições... A repetição da responsabilidade cria a irresponsabilidade.
Mais livros seus no horizonte?
Acabei uma coisa chamada "Adivinhas de Pedro e de Inês de Castro" e... pela primeira vez escrevi uma história infantil. Pediram-me para escrever como o fizeram a Yourcenar, o Kafka... Chama-se "Dentes de Rato", e são quatro histórias de quatro irmãos, o que permite uma visão escalonada, da infância à juventude.
Gosta dos seus livros?
Nenhum deles me satisfaz. Não os releio nunca, sou uma péssima leitora dos meus livros. A "Fanny Owen", gostei, não é escrito por mim, não fui eu que procurei o tema, parece uma obra de outro... Procurei simplificar... Como era um tema difícil procurei simplificar as situações e além disso era dirigido a outra pessoa que não era já o leitor abstrato mas o realizador do filme. (Cá fora, o dia começa a morrer devagarinho. Com o mesmo sentido pragmático das matriarcas dos seus livros, Agustina chama um táxi, dá as informações necessárias à difícil descoberta daquele sítio, fala em viadutos, explica que o portão está em reparação de pintura. Saímos para o jardim. Passamos entre as rosas e as hortênsias e digo-lhe, à despedida, que me espantou uma alegria que eu não adivinhava. "Sou alegre e perigosa. Como os grandes `gangsters...' Esta alegria minha é feita da gratidão e da reverência pelo discurso da vida que me é dado decifrar sem que eu seja atingida e de certo modo retida pela força da terra...").