Uns meses antes, a recém-criada Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello (um portuense de 23 anos que chegara a Lisboa com fama de excêntrico diseur de poesia), lançara a primeira de muitas pedradas no charco do mundo literário português: uma edição do “Kama Sutra”, logo proibida. Enquanto gesto provocatório, funcionou às mil maravilhas. Mas foi com o livro seguinte, lançado em vésperas do Natal de 1965, que a Afrodite testou verdadeiramente a rigidez do establishment e o funcionamento da Censura. Natália Correia, que já vira os seus livros de poesia e teatro proibidos, organizou uma monumental “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica — Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade”, com 552 páginas, abrangendo sete séculos e meio de versos do mais puro vernáculo. Das cantigas de escárnio e maldizer aos experimentalismos de E. M. de Melo e Castro, passando por Nicolau Tolentino, Bocage, Guerra Junqueiro, vários anónimos, Mário Cesariny, Jorge de Sena, Herberto Helder ou a própria Natália, cabia tudo. Na cinta promocional, não se fazia a coisa por menos: “Finalmente num único livro: a poesia maldita dos nossos poetas; as cantigas satíricas medievais em linguagem atualizada; dezenas de inéditos; a revelação do erotismo em Fernando Pessoa”.
Lesta a agir, a comissão de Censura do Secretariado Nacional de Informação entregou o calhamaço a um dos seus “leitores” (Joaquim Palhares) que passados três dias entregou o respetivo relatório, sugerindo enfaticamente a “proibição rigorosa deste livro” dado o seu “carácter pornográfico”. Já prevendo este desfecho, Ribeiro de Mello contou com a cumplicidade do livreiro Luís Alves Dias para lançar rapidamente uma edição pirata, sem a chancela da Afrodite (e sem as ilustrações hors texte de Cruzeiro Seixas que embelezavam a edição original), uma tiragem de três mil exemplares que se venderam num ápice, fora dos circuitos oficiais.
O caso, porém, não se ficou por aqui. Em janeiro de 1966, Natália prestou declarações na Polícia Judiciária, nas quais explicou a génese do projeto. Estando a realizar um estudo para a Fundação Gulbenkian sobre o erotismo e a sátira na poesia medieval portuguesa, decidiu organizar uma compilação que alargava o foco daquela pesquisa ao todo da literatura nacional. Embora tivesse recorrido aos seus conhecimentos pessoais para angariar autores contemporâneos, que em muitos casos lhe facultaram textos inéditos, partira no essencial de trabalhos feitos por académicos reconhecidos, como Carolina Michaëlis de Vasconcelos e Rodrigues Lapa. Se muitos dos poemas obscenos da antologia já se encontravam em coletâneas vendidas nas livrarias, qual o sentido de a acusarem de um “agravo à moral pública”?
Indiferentes à lógica inatacável de Natália, as autoridades preferiram deduzir uma acusação por “abuso de liberdade de imprensa”. Tinha assim início um longo processo que se arrastaria por seis anos e meio, até junho de 1973. Num dos textos introdutórios da presente edição da “Antologia”, Francisco Topa descreve pormenorizadamente os meandros do julgamento em que foram arguidos, além de Natália e Ribeiro de Mello, o também editor Luiz Pacheco (incluído no livro, apesar de só escrever prosa) e os poetas Mário Cesariny, Ary dos Santos e E. M. de Melo e Castro. Porquê só estes e não outros dos colaboradores ainda vivos? Em carta para Natália, Luiz Pacheco responde: “Dedução fácil: estamos perante um processo político camuflado de literário.”
O certo é que os réus foram defendidos por alguns dos melhores advogados da época (Manuel João da Palma Carlos, Fernando Luso Soares, José Vera Jardim, Francisco Salgado Zenha), com estratégias argumentativas por vezes brilhantes, mas nem assim escaparam ao castigo da Justiça salazarista (mesmo se já no consulado de Marcello Caetano). Acabaram todos condenados por “consciente e pública ofensa do pudor, da decência e da moralidade pública”. E se os dias de prisão foram convertidos em multas, o julgamento acabou mesmo com a simbólica destruição pelo fogo de 38 dos exemplares apreendidos. Não seria, de resto, exemplo único da mão firme do regime contra quaisquer indícios de liberdade sexual. Ainda em 1966, os colaboradores da primeira edição portuguesa de “A Filosofia na Alcova”, do Marquês de Sade, também foram condenados. E as três Marias, autoras das “Novas Cartas Portuguesas”, só escaparam a igual sorte, em 1974, porque entretanto aconteceu o 25 de Abril.
Vladimiro Nunes, editor da Ponto de Fuga, admite que sempre esteve no seu horizonte reeditar a “Antologia da Poesia Erótica e Satírica”, não apenas pela importância histórica do livro, mas também pela sua força literária: “Continua a ser um trabalho de grande qualidade e erudição. Ela partiu de uma base sólida, a recolha feita nos anos 30 pelo jornalista e bibliófilo Manuel Cardoso Marta, mas depois acrescentou as suas ideias, nomeadamente no prefácio, que é excelente. Hoje, creio que a antologia continua válida e representativa, apesar de uma certa sobrerrepresentação dos seus contemporâneos. Eu diria que 80% dos poemas são intocáveis. Há depois 10% que poderiam mudar e 10% substituíveis por poemas escritos nos últimos 50 anos.”
Tal como na edição feita no final dos anos 90 pela Antígona e pela Frenesi, Vladimiro Nunes optou por não introduzir quaisquer alterações no corpus da antologia, nem sequer para corrigir as atribuições erróneas de certos poemas a Bocage ou António Botto. “Contextualizámos esses erros e acrescentámos as datas da morte dos autores entretanto falecidos, mas não mexemos em mais nada.” Por baixo da sobrecapa que respeita o grafismo da Ponto de Fuga, a capa verdadeira é uma cópia fiel da original. Além do texto de Francisco Topa sobre o julgamento e da “crónica de um livro proibido” assinada pelo editor, a nova versão da “Antologia…” recupera ainda as magníficas ilustrações de Cruzeiro Seixas.
Mais de meio século após o escândalo, os poemas continuam a deslumbrar os espíritos abertos e a fazer confusão a quem lida mal com o sexo e a sátira. “É engraçado, porque o Facebook barrou-nos os materiais sobre o livro, por suspeita de pornografia”, diz Vladimiro Nunes. Serão os algoritmos os novos equivalentes aos “leitores” da Censura? “Temo bem que sim. Se calhar, é a ‘evolução na continuidade’ de que falava Marcello Caetano…”