Cultura

Depois do embrutecimento

História de um combate corpo a corpo, a rondar a caricatura, entre dois corpos desiguais, “Dogman”, western urbano, fecha o ano a lutar contra um sórdido retrato da fragilidade humana

DR

Usar uma metáfora canina não vem a despropósito para entrarmos no novo filme de Matteo Garrone, “Dogman” — que é uma variação da história de David e Golias. Marcello, homem tímido, franzino, pai divorciado de uma menina adorável e bom vizinho, cabeleireiro de cães e dealer de coca quando a ocasião se proporciona naquele bairro de gente modesta, tem corpo de chihuahua. Já Simoncino, ex-presidiário que começa a aterrorizar toda a gente quando volta à liberdade, cruzamento de gangster cocainómano e de criança traumatizada, é uma massa de força bruta que leva tudo à frente: tem corpo de rottweiler. E se Marcello Fonte, que interpreta aquele Marcello, tem vindo a arrecadar prémios e mais prémios (justos, sublinhe-se) desde que Garrone mostrou esta obra em Cannes, note-se que o papel do ‘brutamontes’ Edoardo Pesce, ator conhecido dos ecrãs de TV italianos e que faz de Simoncino, não é menos complexo do que o primeiro.

Em “Dogman”, aonde estamos? E em que tempo? Não sabemos ao certo. Quer dizer: sabemos que Garrone voltou à Villaggio Coppola (onde já filmara parte de “Gomorra”), nos arrabaldes de Nápoles, estância balnear desenhada nos anos 60 e hoje em acentuadíssimo grau de decadência. Mas esse lugar aqui é só décor jamais referido. Sabemos que este filme vem de um fait divers macabro dos anos 80, crime não passado ali, mas em Roma (Garrone contou em Cannes que não teve autorização para o reconstituir em filme), e em que um certo cabeleireiro de cães, de facto, se vingou escandalosamente do seu algoz, olho por olho, dente por dente: foi o chihuahua a devolver o golpe ao rottweiler, a vítima a tornar-se monstro. Porém, o filme não faz especial referência nem a Nápoles nem aos anos 80 ou aos dias de hoje, e transfigura a história que o inspirou. E é precisamente por isso, a partir desta no man’s land forjada por Garrone em paisagem de western apocalíptico, que “Dogman” começa a crescer como fábula contemporânea. Outra questão que perturba aqui: qual é o verdadeiro ponto de vista do filme? O de Marcello? O de Simoncino? Não, o ponto de vista é o de todos aqueles cães enjaulados na loja de Marcello, loja essa que mais tarde se tornará câmara de tortura, como se os bichos — e foi Garrone quem o sublinhou — “assistissem e se tornassem testemunhas de uma explosão da bestialidade humana.”

“Dogman” não está isento de problemas, sobretudo na sua segunda metade, em que se nota que o argumento é demasiado curto para o que há a contar (e é muito curiosa esta ‘falta de corda’ porque, no filme anterior de Garrone, que também foi uma fábula, “O Conto dos Contos”, havia ‘corda a mais’: tudo se desmultiplicava sem medida em lendas e narrativas até à asfixia). No entanto, aquele Marcello de olhos tristes e doces é uma criatura extraordinária. Espelho da fragilidade humana, livra-se de uma existência de humilhações sucessivas por um caminho que o deixará irremediavelmente sozinho. Garrone segura-o, consegue resgatá-lo dessa crueldade. Está aqui uma das personagens mais fortes do ano.