Eram apenas duas crianças quando tudo começou e estavam longe de imaginar que um dia chegariam tão longe. Muito menos à boleia de uma série que viria a tornar-se um sucesso numa plataforma de streaming. Nem se sabia o que isso era. Simplesmente não existia. É certo que a imaginação dos gémeos Duffer começou a fazê-los voar bem cedo (e que a máquina de filmar Hi8 que os pais lhes ofereceram quando estes andavam no terceiro ano deu uma ajuda), mas era impossível prever algo assim. De dois nomes completamente desconhecidos, os Duffer Brothers (nome com que têm vindo a assinar os seus trabalhos), passaram a ser estrelas cobiçadas no mundo da televisão. “Stranger Things” — série passada nos anos 80, sobre um grupo de miúdos em busca de um amigo desaparecido — é o lado mais visível de um trajeto que começou há alguns anos.
A paixão pelo vídeo e pela construção de histórias, com especial foco nas que fugissem ao comum, vem de longe, de uma Carolina do Norte que é deles e que em nada se assemelha à Los Angeles dos grandes estúdios. Viviam em Durham e passavam grande parte do tempo à procura de novos títulos no videoclube. O VisArt Video tornou-se uma segunda casa para os gémeos, com o Carolina Theatre a tornar-se o local de culto de uma fé diferente. Era o culto dos grandes filmes, que o pai os levava a ver. Foi por lá que se apaixonaram pela vida que hoje têm como deles, desde muito tenra idade.
“Acho que nos apaixonámos pelos filmes no jardim-escola ou na primeira classe, e foi como se nos tornássemos obcecados por eles”, admitiu Matt Duffer aquando do lançamento da série. O toque de Tim Burton foi a primeira paixão. Mal sonhavam que a musa dele, Winona Ryder, viria a participar num projeto dos dois. Hoje já não se livram da fama de génios e de criadores de um novo género de televisão. “É o presságio de uma nova voz cinematográfica”, arrisca o produtor e realizador Shawn Levy, que não tem dúvidas do que o futuro lhes reserva. “Em breve estaremos a falar dos irmãos Duffer como falávamos dos irmãos Coen no início da carreira.”
Apesar de todos os elogios, os Duffers sabem que ainda só estão no início. Mesmo que nos últimos tempos os tenham vindo a comparar a outras duplas fraternas de sucesso — os nomes Coen, Duplass, Hughes, Farrelly, Russo ou Safdie não passam despercebidos —, os gémeos de 33 anos sabem que têm um longo caminho pela frente. Agora seguirão com “Stranger Things”, mas até numa carreira tão curta existe um passado.
Tinham saído há pouco do Dodge College of Film And Media Arts da Chapman University, onde estudaram realização, quando decidiram que era tempo de avançar com uma carreira no mundo do cinema. De deixarem de lado o amadorismo da infância e da adolescência. A ternura e as memórias desses tempos haviam de ser guardadas para outra altura — que se vive agora, na Netflix e com “Stranger Things” —, até porque já tinham uma longa-metragem pensada.
“Escondidos” (sobre uma família que se mantém num abrigo 301 dias, depois de uma explosão que mudou o mundo) estava a ser disputado por vários nomes grandes do cinema e a Warner Bros. acabou por vencer, mas com uma condição. Matt e Ross queriam realizar o filme e foi assim que aconteceu. No entanto, nem tudo correu como previsto. O thriller de horror, protagonizado por Alexander Skarsgård, havia de permanecer sem estreia comercial e mantém-se fora dos serviços de streaming até agora. O Expresso sabe que a Netflix tentou negociar a compra do filme, de modo a aumentar a ligação dos dois criadores à plataforma, mas até ao momento não houve qualquer cedência do estúdio norte-americano. Os Duffers preferem nem falar muito disso, mas nem tudo são azares.
A verdade é que M. Night Shyamalan havia de entrar nas vidas deles pouco depois, com o responsável pelo aclamado filme “O Sexto Sentido” a mostrar-lhes quanto gostou do argumento. O cineasta indiano foi um dos que leram o guião de “Escondidos” e convidou-os para outro projeto. Os gémeos, que acabavam de fazer um filme que apelidavam de ‘shyamalanesco’ (achavam que estavam a copiar o estilo de Shyamalan), encontravam-se numa maré de sorte e integraram a equipa da série “Wayward Pines” (FOX) como argumentistas.
Depois do fracasso cinematográfico, precisavam de alguém que acreditasse no talento deles e Shyamalan surgiu na altura certa. Foi esse empurrão que lhes deu força para avançarem com uma produção televisiva em nome próprio. Só não sabiam onde, porque estavam certos de que queriam dar vida a uma história centrada na década em que nasceram. Uma história que mostrasse os anos de 1980 em todo o seu esplendor e com todos os seus receios a contribuir para a narrativa. Até já tinham uma forma de a explicar aos produtores.
A CONSTRUÇÃO DE UM CLÁSSICO
Juntos desde sempre, os gémeos estão habituados a fazer o que querem com as ferramentas que têm ao seu dispor e desta vez não foi diferente. Se na adolescência criavam um filme todos os verões — “No início filmávamos tudo e mais alguma coisa”, lembrou Matt no último ano à imprensa, enquanto aproveitava para recordar como ele e o irmão rodavam um filme sempre que as férias grandes começavam —, agora foi preciso ir ainda mais atrás na forma de criar. Como se fossem duas crianças a brincar às colagens, Matt e Ross criaram um trailer para “Stranger Things”. Combinaram clips de mais de 25 longas-metragens, como “E.T.”, “Pesadelo em Elm Street”, “Super 8” ou “O Regresso do Mal” e apresentaram também uma espécie de livro de estilo, onde juntaram o que mais lhes agradava em cada película.
Shawn Levy lembra-se bem do dia em que recebeu o trabalho manual dos irmãos, que mais não era do que “uma combinação de palavras e imagens que evocavam o mundo da série como eles a imaginavam”. Tratava-se de algo feito à antiga, como há muito não se via numa indústria onde a tecnologia reina, e isso chamou a atenção do produtor. “Era o tipo de cena de que eu gosto, mas que não via há muito tempo.” Com um apoio de peso, ainda para mais responsável por uma saga cinematográfica de sucesso como “À Noite No Museu”, a sorte continuava do lado dos irmãos, pelo que era tempo de dar tudo pelo projeto.
Tudo aconteceu muito rápido, demasiado rápido para que os Duffers conseguissem processar a mudança que estava a acontecer também nas suas vidas. Foi numa questão de dias, em 2015, que o acordo foi alcançado. Dan Cohen, vice-presidente da 21 Laps Entertainment, deu a conhecer o projeto a Shawn Levy — “tens de ler este argumento, tens de conhecer estes rapazes”, disse-lhe — e o responsável da produtora não resistiu ao entusiasmo do colega. Ficou fã dos inexperientes irmãos nesse mesmo momento e decidiu que tinha de apresentar a série à Netflix. Na manhã seguinte ao pitch, os direitos da série estavam comprados, com o gigante do streaming a dar-lhes liberdade criativa total para desenvolverem o mundo de “Stranger Things”.
“Sentimos uma enorme nostalgia e amor pelos anos 80, e queríamos ver na TV algo que se assemelhasse ao estilo dos filmes clássicos com os quais crescemos”, expressou Matt, para quem as fitas de Spielberg e de John Carpenter, assim como os romances de Stephen King, sempre foram uma inspiração. “Quando assistíamos a esses filmes” — esses mesmos filmes que começaram a ver com o pai no Carolina Theatre ou que alugavam no videoclube de Durham — “ou líamos esses livros, era como se fôssemos transportados. De repente, a nossa vida tinha um potencial para a aventura. Talvez no dia seguinte encontrássemos um mapa do tesouro no sótão, ou talvez o meu irmão desaparecesse dentro de uma tela de TV.”
As declarações do criador de “Stranger Things” não deixam qualquer margem para dúvidas. Em parte, os gémeos eram tão nerds como as crianças que haviam de protagonizar a série, e também eles gostavam que algo de sobrenatural lhes acontecesse. “O que torna estas histórias [dos filmes e livros] tão maravilhosas e tão marcantes é o facto de todas explorarem aquele momento mágico em que o vulgar encontra o extraordinário”, considerou Matt Duffer em declarações enviadas ao Expresso. Durante a infância e adolescência, também eles passavam horas a jogar “Dungeons and Dragons”, como se do sucesso no RPG de tabuleiro dependessem as suas vidas. Estavam longe de imaginar que uma série sobre vidas parecidas com as suas se transformasse em tal sucesso.
É na cidade fictícia de Hawkins, no Indiana, que tudo acontece, com a história de um misterioso desaparecimento de uma criança a servir como ponto de partida para uma narrativa que se espera maior — e que vai crescer nos próximos anos. Durante a investigação, levada a cabo durante a primeira temporada, houve espaço para explorar várias temáticas, numa conspiração onde não faltam experiências secretas, segredos de Estado e fenómenos sobrenaturais. O segredo da recetividade do público à série estará também na forma inteligente como capta a atenção de diversas faixas etárias. Os criadores não desmentem a teoria.
Para Matt, cada geração estará num universo distinto dos anos 80 e exemplifica com referências cinematográficas para que todos percebam a sua visão. “Os adultos estão num filme de Spielberg, ao passo que os adolescentes estão num filme de terror tipo ‘O Regresso do Mal’ ou ‘Pesadelo em Elm Street’ e as crianças estão num romance tipo ‘Conta Comigo’ ou ‘It’.” O irmão Ross vai mais longe e define como objetivo que “todos assistam à série”. “Se tiveres 12 anos, podes identificar-te com as crianças. Se fores adolescente, podes identificar-te com Jonathan e Nancy. E se fores adulto, podes identificar-te com as personagens da Winona [Ryder] e do David [Harbour].” Para a Netflix, isso não é o que mais importa.
À conversa com o Expresso a propósito das séries do serviço de streaming, Cindy Holland explicou que a Netflix não pretende encontrar um produto televisivo ou cinematográfico que sirva a todos de igual forma. “Não estamos à procura de um programa que apele a cada um dos cem milhões de assinantes”, afirma, expressando que essa não é uma preocupação para a empresa. “Estamos à procura das melhores histórias dos melhores contadores de histórias, e quando temos uma série que agrada a uma audiência específica, tentamos fazer dela o melhor programa para essa determinada população”, considerou a vice-presidente para as séries originais. “Depois pode acabar por interessar a um grupo mais vasto de utilizadores. Foi o que aconteceu, por exemplo, com ‘Stranger Things’. Foi criado originalmente para jovens adultos, mas rapidamente percebemos que podia ir muito além disso.”
Para Cindy Holland, a criação dos irmãos Duffer (da qual é também produtora-executiva) foi amor à primeira vista. “É verdade que se tornou muito mais popular do que pensámos no início, mas gostámos da história desde a primeira vez que ouvimos falar dela”, confessa. “Assim que vimos este grupo de crianças a trabalhar em conjunto era difícil não nos apaixonarmos. O mesmo aconteceu com a audiência.” O fascínio pelo elenco infantil não ficou encerrado nos headquarters da Netflix e os jovens atores rapidamente conquistaram o público.
O MEDO DA PALAVRA SEQUELA
O sucesso da primeira temporada, que transportou muitos adultos de hoje para a infância que viveram nos anos 80, levou a que a Netflix apostasse numa segunda temporada. Não era essa a ideia dos gémeos Duffer. Tomados pelo espírito revivalista, queriam que a sua primeira série ganhasse antes uma sequela. A decisão de chamar “Stranger Things 2” aos novos episódios não agradou ao serviço de streaming — a memória coletiva não guarda grandes recordações da maior parte das sequelas —, mas não conseguiram demover os criadores da sua ideia.
O serviço de streaming acabou por ceder e tomar a escolha dos responsáveis como sua. A visão de uma série de televisão que funcione como um filme de longa duração sempre lhes agradou e publicitar “Stranger Things” como se de cinema se tratasse não era algo descabido. Agora, com o sucesso dos primeiros oito episódios junto de uma comunidade alargada de telespectadores, a responsabilidade é ainda maior e os Duffers sabem disso.
Com um conjunto de novos capítulos (que se esperam mais dramáticos, negros e com segmentos mais assustadores) estreados na sexta-feira, as expectativas quanto ao rumo que a série vai seguir são cada vez maiores. E o secretismo em torno da produção mantém-se elevado, mesmo para a imprensa. Para já, parece seguro afirmar que haverá uma nova entidade monstruosa e sombria a povoar “Stranger Things” nos nove episódios da segunda temporada. Depois de Demogorgon, Will Byers (o miúdo desaparecido da primeira temporada e que terá um papel maior nos próximos capítulos) passa a ver a nova criatura pendurada sempre que regressa ao Mundo Invertido.
Finn Wolfhard, Caleb McLaughlin, Gaten Matarazzo e Noah Schnapp, aos quais se junta Millie Bobby Brown (que dá vida à enigmática Eleven), podem ter ganho o carinho do público pela inocência da infância, mas a entrada na adolescência pode trazer novos desafios à produção. A Netflix sabe disso e quis acelerar a produção dos próximos episódios, mas Matt e Ross não gostaram da ideia. Se havia quem defendesse que a melhor opção seria filmar as temporadas (ou sequelas) 3 e 4 em simultâneo, os produtores-executivos Shawn Levy e Dan Cohen (ambos da 21 Laps) apoiaram os criadores e convenceram o serviço de streaming a recuar.
A estratégia vai passar por pôr a série a crescer ao ritmo dos seus protagonistas, em vez de obrigar os atores a manterem-se na pele de uma personagem mais nova. O mais certo é que nos próximos anos se assista à chegada das personagens ao ensino secundário. A ideia dos Duffers passava por pôr termo à série no final da quarta temporada, mas é possível que “Stranger Things” tenha uma duração ligeiramente maior. É essa a vontade do gigante do streaming, que viu a série ser nomeada para 18 Emmys e vencer cinco prémios, sem que tenha sido anunciado qualquer acordo fechado que garanta uma quinta temporada.
Enquanto não surgem novas informações oficiais, Shawn Levy já veio descansar os fãs e a própria Netflix. De acordo com as declarações prestadas à imprensa pelo produtor-executivo, a possibilidade de “Stranger Things” chegar a uma quinta leva de episódios é muito elevada. No entanto, o responsável pela 21 Laps Entertainment é categórico quando expressa ser muito pouco provável que se vá além disso. Nunca foi intenção dos criadores que a série tivesse uma vida demasiado longa. Para Matt Duffer, seria impensável que a história centrada na povoação de Hawkins tivesse sete temporadas, até porque a narrativa não foi estruturada tendo em conta um arco temporal tão vasto.
“Stranger Things” é o único projeto que os Duffer Brothers têm em mãos no momento — “descobrimos que somos muito maus com multitasking”, já admitiram —, mas isso não evita que os gémeos tenham outras ideias para o futuro. A verdade é que enquanto tratam de dar continuidade à sua primeira série, acompanhando cada fase da produção com toda a atenção, Matt e Ross já sonham com um projeto diferente. Depois de darem o trabalho por terminado, poderá estar a caminho um blockbuster de ficção científica, cuja história mantêm em segredo.
O que já não é segredo para ninguém é que o género que tomou o cinema nos anos 80 está de regresso e que ganhou novos argumentos na televisão. O formato mais longo permite aos argumentistas explorar os temas de uma forma mais aprofundada, mas é do lado dos grandes grupos e estúdios que o jogo parece estar ao rubro. A televisão de hoje é como um tabuleiro de “Dungeons & Dragons” e ainda é difícil descortinar se não estaremos no Mundo Invertido. Falta-nos a Eleven (Millie Bobby Brown), para virar o tabuleiro e explicar o que está em causa, mas a verdade é que as peças estão a mexer.
Se a Netflix terá a série “Dark” — sobre o desaparecimento de duas crianças e também com uma componente sobrenatural — a estrear já a 1 de dezembro, esta não é a única peça em jogo. A série alemã, cuja produção começou antes da estreia de “Stranger Things”, é só a primeira jogada. A concorrência está atenta e a Amazon já garantiu um nome forte na sua ofensiva contra a Netflix. Justin Doble, argumentista e produtor de “Stranger Things” (com créditos também em “Fringe”, “The Path” e “Into the Badlands”), assinou pelo grupo controlado por Jeff Bezos e terá agora exclusividade com a Amazon Studios, onde dará forma a novas produções para o serviço Amazon Prime Video. A nostalgia dos anos 80 continua a vender, mas o tempo da televisão é outro. Tal como os miúdos de “Stranger Things”, os gémeos Duffer podem pegar nas suas bicicletas e chegar onde quiserem. Não estão sozinhos.