Cultura

De regresso ao frio

John le Carré volta ao fim da inocência. “Um Legado de Espiões” regressa a “O Espião Que Saiu do Frio”, sem deixar de refletir sobre a Europa de hoje. E chega às livrarias a 17

foto Tom Jamieson/The New York Times

Graham Greene chamou ao livro a maior história de espiões que tinha lido na vida. Ian McEwan disse do autor que é o mais importante romancista da segunda metade do século XX na Grã-Bretanha. “Ele terá desenhado o mapa do nosso declínio e gravado a natureza da nossa burocracia como ninguém fez. Está na primeira fila”. O livro é “O Espião que Saiu do Frio”, de 1963, e o autor de vasta obra é David Cornwell, nom de plume John le Carré. Um homem que será tudo menos quadrado. No ano em que o espião saiu do frio, o escritor entrou no panteão da literatura anglo-saxónica. Com um título tão óbvio que diz ao que vem, uma história de espionagem, seria previsível que ficasse acantonado num género considerado menor pelas belas letras. E limitado pela rigidez da fórmula e pela unidimensionalidade das personagens. Um livro de espiões é um livro de espiões é um livro de espiões, diria Gertrude Stein se escrevesse sobre livros de espiões, o que nunca faria por desconsideração. O que libertou Le Carré não foi o género, aliás usado com brio por Graham Greene ou Joseph Conrad, pais espirituais deste autor, foi a fórmula, que ele reinventou com uma originalidade que lhe pertence de direito e usando uma linguagem literária, com um ouvido para o diálogo e o jargão de personagens moralmente ambíguas, nunca superada por outro autor. Assim nasceram, como monumentos da história literária, o superespião George Smiley e o seu simétrico adversário, o superespião russo Karla. Smiley e Karla são a mancha de Rorschach. Ao interpretá-la, interpretá-los, aprendemos qualquer coisa sobre o nosso funcionamento psíquico. Tanto podemos ver uma flor, como um animal, como um monstro. A ideia é essa.

É com “O Espião que Saiu do Frio” que Smiley ganha densidade e que Karla, o chefe do centro de Moscovo, nos é apresentado como uma sombra ameaçadora. Uma insinuação. Estávamos em 1963 e na década de todos os perigos, os anos 60. O mundo saído do pós-guerra parecia caminhar com passos de gigante e firmeza petrificada na prosperidade das economias expansionistas para um mundo melhor. A Humanidade continua a acreditar num mundo melhor para não morrer de desespero. Assim, no princípio da década prodigiosa, parecia que as potências vencedoras dos massacres da II Guerra Mundial conseguiriam entender-se sobre o novo tratado de Tordesilhas que dividia primeiro a Alemanha e depois o mundo em dois blocos. Até ao dia em que o Muro, o Muro de Berlim, começou a ser construído pedra a pedra, a ser resguardado dos trânsfugas por arame farpado, e a ser guardado por soldados armados e prontos a matar. Onde se passava livremente de um lado para o outro, do lado oriental para o ocidental, da civilização democrática e americana do Ocidente para o comunismo estalinista a Oriente, dito de Leste para não ser confundido com as fantasias orientalistas (nesse tempo mais benignas), nasceu de repente, e rapidamente, um obstáculo intransponível construído de um dia para o outro pelos russos, ditos soviéticos porque a União Soviética era um império, não era uma nação. Na Casa Branca de Washington, J. F. Kennedy foi apanhado desprevenido. No Kremlin de Moscovo, as coisas não corriam bem para Khrushchov. Entre 1945 e 1960, cerca de 4,3 milhões de alemães tinham abandonado a República Democrática Alemã e renunciado aos amanhãs que cantam. Só em julho de 1961, 30 mil refugiados mudaram de bloco. Os americanos esperavam que os soviéticos fechassem a fronteira, não esperavam o Muro. Atrás dos alemães viriam os polacos e, quem sabe, os russos. Alguém tinha de estancar a hemorragia. À meia-noite do dia 13 de agosto de 1961, no silêncio das trevas, os russos dividiram Berlim e começaram a erguer a barreira que só seria despedaçada em 1989. Kennedy ainda pensou em utilizar os tanques americanos para deitar abaixo a barreira mas foi dissuadido, percebendo que os russos não ameaçavam Berlim Ocidental, protegiam Berlim Oriental. E mandar avançar os tanques significaria o começo de uma nova guerra mundial quando as ruínas da Europa ainda fumegavam. O Muro ergueu-se e dividiu a cidade e depois o continente e depois o planeta. Começava a Guerra Fria que se manteria até à perestroika de Gorbatchov e ao mandamento de Ronald Reagan, senhor Gorbatchov deite abaixo este Muro! Antes, já Kennedy dissera, em 1963, Ich bin ein Berliner! Quando o Muro caiu, o império soviético estava roído por dentro, assente em ferrugem e ficção. O urso estava moribundo. E foi assim e por causa disto que o Muro caiu.

Quem assiste às beligerâncias em versão Twitter de um rei louco americano e de um ditador anedótico norte-coreano, tenderá a rir-se mais do que a ficar assustado. Se alguma coisa a construção noturna e rápida do Muro nos ensina é que a vida muda em 24 horas. E muda para sempre, ou por muito tempo. Os berlinenses acordaram separados uns dos outros, atormentados pela incompreensão daquela barreira sem anúncio nem previsão. E aquela barreira tornou-se o símbolo de uma guerra de blocos, fria é certo, mas aquecida por ameaças histriónicas, corrida ao armamento nuclear, mísseis apontados, guerra das estrelas e o que se designou por política de mútua dissuasão, que se pode traduzir por eu tenho mais mísseis do que tu e sou maior e mais forte. Entre a bravata americana e a soviética jazia uma Europa à sombra do cogumelo ou submetida à bota cardada de Moscovo. Os que ficaram do lado de cá viviam amedrontados, sobretudo nas zonas de proximidade e fronteira com o bloco soviético, os que viviam do lado de lá viviam no temor da retaliação e do esmagamento da dissidência. A sombra do gulag. O que isto representou em sofrimento humano, e repressão física e intelectual, é dificilmente compreensível para a sociedade egotista e narcisista em que vivemos, que se acha com direitos adquiridos sobre os recursos do planeta e o triunfo do capitalismo global. O sofrimento dos russos que queriam ser livres, dos polacos, dos checos, dos húngaros, de todos os espíritos insubmissos da URSS, o terror dos finlandeses e dos suecos, os tanques de Praga e de Budapeste (repetidos em Tiananmen), e a fissura atómica entre as duas Alemanhas, ainda explicam e patrocinam o mundo em que vivemos e a Europa que construímos e em que prosperamos.

Os políticos, infelizmente, deixaram de ler livros. Os súbditos da tecnologia e das correntes sociais também. E o rei louco nem os livros com a cara dele na capa consegue ler. Um dia, poderemos acordar e descobrir que o nosso mundo mudou irremediavelmente e que não há felicidade que dure sempre. E se o nosso mundo mudar irremediavelmente, o mundo dos outros, os que dependem de nós, mudará também. De Luanda a Phnom Penh, de Pyongyang a Tashkent, de Pequim a Kiev, o mundo apresenta o tecido cicatricial da Guerra Fria e do fim da Guerra Fria, do abismo entre os Aliados, a gente “civilizada”, e os “incivilizados” comunistas, os filhos do czarismo e do estalinismo. A incompreensão da brutalidade e astúcia de Putin resulta disto. Putin é, de certo modo, o Karla do século XXI.

Os políticos não leem livros mas poderiam ao menos ler John le Carré. Aprenderiam muito com a sua inteligência, lucidez e compreensão das guerras secretas, as que travamos contra o terrorismo ou o putinismo. Numa conversa recente publicada no “NY Times”, “Spies Like Us”, entre Le Carré e um perito em história da espionagem, o britânico Ben Macyntire, podemos ler toda a história da relação entre Putin e Trump, e descodificar a investigação do FBI e os comportamentos subversivos da Rússia.

Além do talento literário, que finalmente tem a consagração que merece nos 85 anos do autor, este conhece os mecanismos anímicos e as duplicidades dos serviços secretos, as zonas cinzentas das suas incursões físicas e metafísicas. Le Carré foi, na juventude, espião. Considerou que era uma carreira adequada a uma natureza evasiva e emocionalmente reservada devido a um pai imperfeito, complexidades que a biografia de Adam Sisman ou a autobiografia “O Túnel dos Pombos” não chegam a desvendar completamente. E desse caminho de fracassos do qual a literatura o resgatou, reteve um desprezo pelas guerras psicológicas e pelos atores principais e secundários dos teatros da ambiguidade e da duplicidade que povoam os serviços secretos e as respetivas mitologias pseudo-heroicas. A impressão geral que se retira dos livros é a de que todos os espiões são aleijados morais. Alec Leamas, o espião de Berlim, diz a Liz, a amante: “O que pensas tu que são os espiões: padres, santos e mártires? São uma procissão patética de vácuos tolos, traidores também, sim; bichas, sádicos e bêbados, gente que brinca aos índios e aos cowboys para alegrar as suas vidas podres. Pensas que estão sentados em Londres a equilibrar o certo e o errado? Eu teria assassinado Mundt se pudesse, odeio aquela tromba; mas agora não. Eles precisam dele. Precisam dele para que a grande massa de idiotas que tanto admiras possa dormir descansada à noite na cama. Precisam dele para a segurança de gente desgraçada e vulgar como tu e eu”.

foto Tom Jamieson/The New York Times

Eis os espiões como uma tribo implacável que obedece a mestres sem outra legitimidade que não a que eles mesmos construíram através das ficções das guerras frias ou quentes. Uma tribo que sacrifica os peões por um xeque-mate inútil num tabuleiro invisível. Toda a relação entre Smiley e Karla é um longo jogo de xadrez consubstanciado na trilogia “The Quest for Karla”, de que fazem parte “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” (“A Toupeira”), “The Honourable Schoolboy” (“O Ilustre Colegial”), e “Smiley’s People” (“A Gente de Smiley”). São os melhores romances que Le Carré escreveu, insuperáveis a não ser por um livrinho que os antecedeu e que mudou a história do género: “O Espião que Saiu do Frio”. No cinema, a personagem deste espião sacrificado aos desígnios de Smiley e Karla tem a cara de Richard Burton. E na televisão, Smiley está imortalizado na impassibilidade facial de Alec Guinness na série da BBC. As adaptações de Le Carré tiveram sempre as melhores caras e corpos da profissão teatral. Os génios da arte.

E não se pode dizer que o autor morra de amores pelas suas personagens, ou melhor, pelo trade, o comércio das suas personagens. Os chefes menores e maiores da espionagem inspiram-lhe uma repugnância que só o desprezo maior pelos políticos consegue diluir. O cumprimento é retribuído. No SIS, Secret Intelligence Service, vulgo MI6, ninguém aprecia Le Carré. No sulfúrico círculo do inferno estão a gente de Whitehall, a de Downing Street, a do Departamento de Estado, da Casa Branca e do Capitólio. E a “relação especial” entre os britânicos e os “primos”, os operacionais da CIA no jargão do género, só tem de especial o nome. De resto, os britânicos, no seu declínio e melancolia pós-imperial, limitam-se a vergar a espinha perante os primos de Langley. Nesta ‘Le Carréland’, distinta da ‘Greeneland’, os heróis são habitualmente inocentes apanhados nas maquinações superiores, sugados pelos servidores da liturgia fria, o que significa que estes heróis nem sempre se distinguem das vítimas. Alec Leamas, chefe da estação de Berlim do MI6, é um deles. Hoje, a indiscreta sede do MI6, “Trabalhamos no estrangeiro para ajudar a fazer do Reino Unido um lugar mais seguro e próspero”, é em Vauxhall, uma fortaleza a que Le Carré, inventor de um vocabulário, chama The River House nos livros contemporâneos.

No antigamente não havia fortaleza. As sedes e santuários secretos dos espiões estavam espalhadas por uma Londres saída de Dickens e por edifícios tão decrépitos ou desconfortáveis como a máscara de Control, o chefe do Circus e de Smiley, a alma danada que monta a operação mais secreta de todas as operações secretas para preservar um agente duplo “Ao Serviço de Sua Majestade” e de caminho, com a posterior astúcia de Smiley, dar cabo da toupeira de Moscovo ocultada no grupo dos mandachuvas da espionagem britânica. Tudo gente do establishment e da classe social certa, com os tiques de linguagem certos, preferencialmente do eixo Eton/Oxbridge e do clube dos old boys onde as mulheres servem de secretárias, governantas ou sedutoras. Le Carré reproduz o lugar-comum e as suas mulheres são chamas pálidas. Em matéria de agentes secretos, a democratização e mobilidade social só chegariam com o Labour de Tony Blair e parece que não foram uma boa ideia, tal como a mania da transparência e da accountability, a responsabilização ou a supervisão parlamentar para casos endiabrados. Kim Philby, o traidor-mor, o homem que foi morrer a Moscovo, era o protótipo do espião perfeito. Mas não foi queen and country, mais for the Reds e a nomenklatura.

Imagina-se quão tortuosa é uma intriga que contém, como as bonecas russas, matrioskas dentro de matrioskas em escala sucessiva de grandeza. Um agente duplo é uma complicação a recrutar e manter, a montar e desmontar, exatamente como a complicação de um relógio suíço que tem de estar sempre certo e sempre com a corda dada. Um bom agente duplo é um bem valiosíssimo, uma toupeira que, de tão enredada na dupla fidelidade, acaba por servir a dois amos sem saber qual serve melhor. A especialidade de Smiley, e dos seus peões, era a deteção das vulnerabilidades humanas que permitiriam apurar um bom agente duplo. Em “O Espião que Saiu do Frio”, o desencantado Leamas e a sua amante, a comunista judia Liz Gold, espécime raro da classe baixa inglesa, são sacrificados à preservação de um duplo, o imundo nazi reciclado Mundt, posto ao serviço de Londres em detrimento de Moscovo por um golpe de génio de Smiley que na sequela, “A Legacy of Spies” (“Um Legado de Espiões”), se desvenda. Dois judeus idealistas, Liz, inglesa, e Findler, alemão oriental, crentes na virtude coletivista, acabam assassinados. Liz é apanhada junto ao Muro, na fuga final, e Leamas, que poderia ter escapado para o outro lado do arame farpado, volta para trás e cai ao lado dela, dois corpos trespassados pelas balas. Mundt sobrevive, como Control, o chefe máximo do Circus, planeou. Hans-Dieter Mundt, ao serviço do Abteilung, os serviços secretos da Alemanha de Leste, é uma personagem que nasce em “Call for the Dead”, o primeiro romance de Le Carré, de 61, sem a maturação dos livros seguintes. Nascem com ele George Smiley e Peter Guillam, o seu lugar-tenente, que ficarão com os leitores até “Um Legado de Espiões”. Por cima, como um morcego adejando as asas na caverna, paira Control. Leamas percebe, tardiamente, que foi traído e enganado pelos serviços que serve, e que a morte da insignificante Liz é por culpa sua. Leamas, o espião que saiu do frio, é transformado pelo Circus em agente duplo, destinado a enganar Moscovo e Karla e convencê-lo de que Mundt é um espião dos britânicos, numa manobra de jogo de espelhos em que o único que percebe a traição de Mundt, Fiedler, acaba terminado. Assim tem de ser. A intriga é rocambolesca e labiríntica e só a mestria da linguagem, expressa nas vozes amarguradas de Leamas, Liz e Fiedler, ou nos silêncios de Smiley, permite caracterizar uma realidade existencial nimbada de tons grisalhos, coberta de brumas e triste como uma paisagem de inverno.

Le Carré, que fala e lê alemão, é um devoto da literatura alemã clássica e em particular do romantismo e do esteticismo germânicos e descobre-se nestas descrições literárias de um sentimento ou um lugar, um amor a Schiller e Goethe, uma admiração pelas silhuetas contemplativas e as desolações de Caspar David Friedrich. Dito isto, “O Espião que Saiu do Frio” é uma obra-prima que constituiu a reputação literária do seu inventor. Dar a uma obra-prima uma sequela pode ser uma péssima ideia, embora vivamos na idade das repetições. Não pode ser pior do que dar uma sequela a “Blade Runner”. Dar uma sequela quando o autor tem 85 anos pode ser um risco de morte.

O que surpreende em “Um Legado de Espiões”, que fica muito aquém do livro-matriz e mais ainda da trilogia de Karla, e sobretudo de “Tinker, Tailor...” e “The Honourable Schoolboy”, é o facto de Le Carré torcer a narrativa de modo a fazê-la viajar para trás no tempo, demonstrando o fio da intriga, a nascente do rio. A razão pela qual Leamas acabou caído e exangue aos pés do Muro. E fazê-lo sem cometer um erro, proeza difícil de executar por alguém menos entrado em anos, fazendo prova do intacto virtuosismo do autor. Regressar ao passado para explicar o presente é um projeto condenado. A personagem de que ele se serve não é, evidentemente, Smiley. Smiley permanece inacessível, uma presença tutelar que não se sabe onde está e se está. Se é vivo ou morto. O regresso anunciado de Smiley é o catch do livro, o que atiça a curiosidade dos leitores e faz andar as máquinas promocionais das editoras. Smiley não chega bem a regressar. Ou regressa através de uma personagem menor, o fiel Peter Guillam, ao qual nunca prestámos muita atenção. Guillam, mulherengo inveterado, que por um erro de paralaxe é homossexual no filme “A Toupeira”, em que é corporizado por Benedict Cumberbatch (e Smiley por Gary Oldman, e Bill Haydon, a toupeira do Circus, por Colin Firth), vive retirado numa quinta da família materna, francesa, num canto da Bretanha. Aí o vão desassossegar os novos, transparentes e responsáveis serviços secretos, convocando-o para uma reunião em Vauxhall onde o informam que o filho de Alec Leamas e a filha de Liz Gold processaram os espiões por causa da morte dos pais. Na democracia parlamentar do século XXI, estas coisas saídas do frio já não se fazem nem se podem fazer, e sobre a névoa do passado desce a ameaça de um inquérito parlamentar com os públicos políticos da atualidade, que desconhecem e ignoram a Guerra Fria e os artifícios e artefactos da Guerra Fria. Os perigos da Cortina de Ferro e do Pacto de Varsóvia. Vauxhall prepara-se para deitar Guillam à fogueira inquisitorial, na velha tradição do sacrifício dos peões. Ou dos bispos. E Guillam, que sente que nem vale a pena dialogar com tal gente, acaba por recorrer aos serviços de uma advogada perspicaz, antes de empreender a fuga na direção de Smiley. Smiley, retirado, ainda às voltas com a infiel Ann (uma sugestão apenas, neste livro), surge como um fantasma na parte final. Smiley nada explica, dissolve ou resolve. O mundo mudou, Karla acabou-lhe nos braços, vencido, e nada disto parece hoje explicável ou resolúvel. Muito menos redutível a um caso judicial ou a uma indemnização financeira. Smiley, que não chega a ter densidade dramática ou a ganhar força na economia narrativa, oferece a solidariedade a Guillam para o safar de sarilhos. E nesta capitulação, na aceitação e submissão aos interrogatórios dos oportunistas de Londres, servos de um poder político obtuso em modo brexiter e antieuropeu, deixa de ser Smiley. É como se todo o mundo do Circus, que alimentou gerações de espiões nados e criados no frio, ruísse num instante.

Os melhores momentos do livro são as trocas em modo epistolar, as trocas de documentos secretos que permitem reproduzir o passado sem o deixar manchar pela liquidez do presente. Aí reencontramos o universo de “O Espião que Saiu do Frio”, agora reforçado pelos monólogos de Peter Guillam. Quando Le Carré sai do passado e reentra no presente usa a ironia e os tiques dos diálogos, a sua especialidade, para demonstrar a inutilidade futura das guerras existenciais do presente. É como se Le Carré quisesse dizer que foi em vão, foi tudo em vão, os mortos, os assassinados, os torturados, os sacrificados, os segredos e degredos, porque o tempo tudo devora e reduz a pó. As grandes guerras são afinal as guerras íntimas, as da consciência, as da moral, e as outras não passam de vocações para o mal, a ganância e a cizânia. A ignorância do presente reduz o passado, e assim a história do passado, a grande história, a historietas e anedotas. A ignorância não compreende a essência do que não controla e o que controla, ou quer controlar, é apenas a imagem, não a ideia mas o spinning da ideia. Assim vivemos no barulho das luzes.

Encontrar esta lucidez num autor é perceber o que ele pensa sobre o mundo. Sabemos que não é o passado que é inútil por si, é o presente que o torna, por já não poder ser presente, inútil. A falta de memória é o pecado maior e as guerras de Smiley e Karla tornam-se guerrilhas que serviram para destruir vidas. Em todo o livro, a personagem mais interessante é a do filho de Alec Leamas, que reproduz os dilemas morais do pai e atesta a intensidade dramática da narrativa da destituição. O filho é um destroço interessado em fazer dinheiro com a morte do pai, um aparente mercenário dos sentimentos. E é mais do que isso. Num enfrentamento entre Guillam e ele, breve e lacónico, físico, revemos a tragédia de Alec Leamas, o homem que não sabia demais.

Leamas, em “O Espião que Saiu do Frio”, é uma personagem inesquecível e irrepetível. Única no corpus da obra de Le Carré. Única porque demasiado perdida, demasiado indiferente, demasiado competente, demasiado consciente, demasiado inocente. Depois de Leamas, Le Carré não voltou a usar tais características juntas. Talvez porque o livro foi escrito quando era um jovem inquieto, inseguro e zangado, nos começos de uma carreira que não podia imaginar tão literariamente bem-sucedida. O jovem Le Carré era inocente como o seu espião, e revoltado como ele. Hoje é uma vedeta global, coberto de honras e multimilionário. Não é Sir porque recusou. O cinema disputa-lhe as adaptações. A inocência deu lugar à experiência e é essa experiência, servida por uma oficina impecável, que lhe permite uma sequela sem danos reputacionais, como se diz por aí.

Lê-se com prazer, tanto mais que a ameaça nuclear não desapareceu do nosso mundo civilizado e castamente poluto. Ao contrário dos romances sobre terrorismo, Le Carré recupera a melhor forma quando recupera a Guerra Fria e a paisagem alemã do pós-guerra, centro da disputa ideológica. O Muro, e as infâmias do Muro e de Checkpoint Charlie, you are leaving the American Sector, são o território ideal para as tensões e paixões humanas. O vento gelado de outubro é o que John le Carré respira, não o vento escaldante do desertos do Médio Oriente.

Crianças a acenar alegremente

texto Cristina Margato

FOTO CameraPress-Contacto

Alec Leamas deixou de ver. No alto do muro, o agente britânico segurava a mão da amante comunista, Liz Gold, para a içar. Numa fração de segundos a escuridão que os protegia fora destruída por potentes holofotes. “Uma louca confusão de cores a bailar-lhe diante dos olhos.” Liz estremeceu. “Tiros isolados, três ou quatro.” Do lado ocidental do muro de Berlim, uma voz familiar chamou-o: “Salte, Alec! Salte, homem!” Alec virou-se no sentido contrário. Liz estava estendida no solo. Hesitante, o agente acabou por descer, agarrando-se aos espigões cravados no muro que a amante acabara de largar. Derrubado por um tiro, que alguém disparou de forma pouco convicta, o espião tombou ao lado daquela que fora sua amante. Nesse momento, conta o narrador omnisciente que John le Carré criou para “O Espião Que Saiu do Frio”, “Leamas viu um pequeno carro esmagado entre dois grandes camiões e as crianças a acenarem alegremente à janela”. A mesma visão febril que o agente começara a ter quando descobrira que, de algum modo, se considerava um condenado à morte. Foi com esta imagem que John le Carré fechou o seu terceiro romance — aquele que o tornou famoso. Poderia ter escolhido outra imagem. Por alguma razão não o fez.

Inspirado pela construção do Muro de Berlim, “símbolo da monstruosidade de uma ideologia enlouquecida”, a que o próprio Le Carré assistira, “O Espião...” encerrava com uma afirmação que estava longe de ser apenas romântica. Podia parecer que ao fazer cair Leamas para o lado oriental do Muro de Berlim, o escritor quisesse dar a entender que o amor vencera, nem que seja porque nos romances o amor vence sempre e para sempre. Não é caso, porém, para encerrar o assunto aqui. Nem que seja pela conversa que os amantes trocam minutos antes, quando uma Liz bem-intencionada descobre um mundo às avessas. “Que julgas tu que os espiões são? Sacerdotes, santos, mártires? São um deplorável cortejo de tolos vaidosos, e também traidores (...) gente que brinca aos índios e aos cowboys (…) para que as grandes massas idiotas que tu admiras possam dormir tranquilamente à noite nas suas camas”, dispara um cínico Leamas. Ao que Liz, num momento de epifania, lhe responde: “O que eles estão a fazer é muito mais terrível: descobrir a humanidade nas pessoas (...) para fazer dela uma arma nas suas mãos e utilizá-la para ferir e matar...”

Tanto Leamas, agente britânico, como Liz, rapariga inglesa atraída pelo comunismo, haviam sido reduzidos ao pequeno papel de marionetas. Ele menos descartável do que ela, como se viu no momento em que subiam o muro. Mas ainda assim títeres, e apenas títeres, bem manietados pelos serviços secretos britânicos que não olharam a meios para obter o que queriam, ao ponto de utilizarem em seu benefício um nazi, Mundt (criminoso de guerra transformado em exemplar comunista da nova RDA), ao mesmo tempo que aniquilavam um judeu, Fiedler (cujos pais morreram num campo de concentração), por este estar na posse de uma verdade inconveniente.

A visão das crianças a acenar alegremente entre dois camiões serviu a Le Carré de subtil metáfora, na qual se reuniam todos os inocentes que haveriam de tombar, esmagados pelas duas ideologias que dominaram o século XX e que levaram à construção desse muro que vimos cair em 1989.

Quando “O Espião Que Saiu do Frio” foi lançado, em 1963, John le Carré já publicara dois outros romances. Foi este que lhe mudou a vida. Num prefácio de 1989, ano em que caiu o muro, o escritor inglês dizia que a partir deste romance se sentiu como um homem de um livro só: “‘O Espião’ fora um tremendo bambúrrio e tudo mais eram cuidados continuados.” Nessa altura, ainda a revista “Time” não o tinha considerado como um dos cem melhores romances de todos os tempos, o que veio a acontecer em 2005. O livro que se lhe seguiu seria alvo de más críticas, mas Le Carré sobreviveu bem, e de várias maneiras, depois de agitar o género literário e de lhe cunhar as suas regras. Obteve outros sucessos, que não apagaram o impacto de “O Espião...”, adaptado ao cinema, em 1965, com Richard Burton no papel de Leamas.

Não é de estranhar que, tanto tempo passado, Le Carré volte a esse momento, à morte daqueles dois seres humanos, e resolva contar outras mortes que lhes antecederam, numa operação que curiosamente recebeu o nome de código ‘Bambúrrio’. Em 2013, quando o entrevistei na sua casa de Hampstead, não resisti a fazer-lhe a mesma pergunta que Liz faz a Leamas: “Em que acredita?” David Cornwell, o verdadeiro nome de John le Carré, usou toda a cordialidade que mostrou ao longo da conversa para responder com as mesmas palavras que colocou na boca de Leamas, ainda que na sua voz não houvesse qualquer sinal do cinismo que eu sempre imaginara no tom do espião: “Acredito que o autocarro número nove me leva a Hammersmith.”

“Um Legado de Espiões”, o seu último livro, é um dilema de baú. Mas é também um confronto com o presente. Afinal, o que resta da Guerra Fria? Ou do que a Europa tentou construir para fugir às trevas? Mesmo sem o nomear, o romance regressa a “O Espião Que Saiu do Frio”, à morte de Leamas e Liz. O escritor revisita, num formato de prequela e sequela, o livro que marca o fim da sua inocência, como o próprio chegou a admitir em 1989.

“Um Legado de Espiões” passa-se nos dias de hoje. Os filhos de Leamas e de Liz querem justiça, ameaçam o Estado inglês com um processo judicial e um inquérito parlamentar. Como Le Carré coloca na boca de uma das suas personagens, “estamos perante a premissa shakespeariana em que os fantasmas de duas vítimas de uma satânica intriga do Circus [nome que dá aos Serviços Secretos ingleses] se levantam para nos acusar sob a forma da sua descendência”.

Há que reconstruir a história e criar uma justificação que ilibe o Estado britânico das suas (ir)responsabilidades. Há que escavar e traçar o percurso que os levou até aos acontecimentos que tiveram lugar em “O Espião Que Saiu do Frio”. O último romance torna-se, por isso, a continuação de um trabalho de um homem que se achou no lugar de “escritor de um só livro”, como chegou a dizer, ainda que depois dele tenha publicado 21 romances e uma espécie de autobiografia (“O Túnel de Pombos”, 2016).

Para que não haja dúvidas, “Um Legado de Espiões” começa assim: “O que se segue é um relato verídico, tanto quanto me é possível fazê-lo, do meu papel na operação de embuste britânica que teve o nome de código Bambúrrio, montada contra o serviço de informações da Alemanha de Leste (Stasi), em finais da década de 50 e princípios da de 1960 e da qual resultou a morte do melhor agente secreto britânico com quem alguma vez trabalhei e da mulher inocente pela qual deu a vida.” Quem fala é Peter Guillam, ou Pierre, agente com dupla nacionalidade, inglesa e francesa, companheiro de Alec Leamas, de Jim Prideaux, e da dupla George Smiley e Controlo (“os grandes mestres do embuste... tortuosos e ilustrados intelectos que concretizaram o triunfo da angústia que foi a operação Bambúrrio”).

Peter tem de regressar à operação para prestar contas ao Circus, agora instalado junto ao rio Tamisa, sem o barulho dos telefones nem o matraquear das máquinas de escrever. É um oficial de informações que “não é mais imune aos sentimentos humanos do que o resto da humanidade”, mesmo que os tenha sabido reprimir, restringindo-os aos seus piores pesadelos, ao longo dos últimos 50 anos.

“Diz-se que os condenados à morte estão sujeitos a súbitos momentos de exaltação, como se, à semelhança de borboletas atraídas pelo fogo, o fim da vida coincidisse com a realização”, escreve Le Carré em “O Espião Que Saiu do Frio”. Todos nós estamos condenados à morte, podemos morrer amanhã, daqui a um minuto, a uma hora. Podemos morrer mais novos, mais velhos, mas há aquele momento em que sabemos que a idade está contra nós. John le Carré completa 86 anos a 19 de outubro. Tudo o que fizer soará a despedida, ainda que possa vir a escrever outros romances. Alcançou aquela idade em que se torna urgente ajustar contas com a vida.

Tendo sido espião durante a Guerra Fria, Le Carré terá tido oportunidade de testemunhar esse jogo sujo que atira Leamas e Liz primeiro para o inferno, depois para a morte, apenas porque é preciso atingir objetivos maiores, que nos deixarão dormir descansados, massas idiotas descansadas, miseráveis “como tu e eu”, como diz o agente britânico à comunista.

Como também aconteceu noutros romances que escreveu — nos quais a espionagem se foi apresentando como um território de combate desorientado, uma atividade cada vez mais sujeita às leis do capitalismo, e à sua ineficácia, como provam todos os atentados terroristas que não se evitaram e em que morreram inocentes (“crianças a acenar alegremente”) —, Le Carré mostra-nos essa máquina, uma geringonça complexa, muitas vezes incompreensível, que na realidade poderá mesmo imitar a ficção, tal é a força da sua escrita. Mas está também a lidar com a sua própria consciência, quando coloca Peter a perguntar a Smiley: “Você, George, propôs-se conscientemente suprimir a humanidade que há em mim, ou também fui um dano colateral?”

Acredito que, como pessoa sensível que é, se desiluda, e pense que as massas idiotas são mesmo idiotas, e por isso votam no ‘Brexit’, para no dia a seguir irem ao Google pesquisar o significado do “Brexit”, e que, por muitas outras razões, diga “que não sabe onde encontrar a esperança”. Mas, quando escreve, não é como idiotas que nos trata, antes como leitores inteligentes que vão perceber onde ele quer chegar, em que mundo estamos metidos, que poucas saídas temos face às teias de corrupção que se perpetuam atrás de uma cortina, ainda que já não seja a de ferro. Que poucas saídas ainda têm, também, os ingleses, vítimas dessa doença incurável que ele lhes atribuiu: ter de jogar o jogo do mundo quando já não são jogadores maiores.

“Terá sido tudo pela Inglaterra? Mas a Inglaterra de quem? Qual Inglaterra?”, pergunta Smiley, um europeu, à semelhança de John le Carré. “Se eu era desumano, era desumano pela Europa”, continua. O escritor parece recuperar a esperança e coloca-a na boca do agente: “Se tinha um ideal inatingível, era o de conduzir a Europa das suas trevas a uma nova era da razão. Ainda a tenho.” Não sei se acredita nisso quando se confronta com o ‘Brexit’, Trump, Putin, Kim Jong-un... a Catalunha. A convicção de Smiley será mais um grito dirigido aos que ainda podem mudar o curso dos eventos? É que há outra frase, no prefácio do “O Espião...”, de 1989, que me parece mais apropriada a Le Carré: “Para onde pode alguém ser evacuado quando o mundo estás prestes a acabar?”

Sem querer estragar a leitura de “Um Legado de Espiões” — ainda que tenha acreditado que começar pelo fim de “O Espião…” era um mal absolutamente necessário —, Peter acaba por ser, na mão do Circus, mais uma criança a acenar alegremente. Como nós.