Cultura

Quando os bons livros dão ainda melhores séries de TV

Adaptar livros à televisão é a última tendência. Em breve obras de Elena Ferrante, F. Scott Fitzgerald, Edward St. Aubyn ou Jonathan Franzen serão transformados em séries. Há melhor prova do que a estreia, recente, da sétima temporada de “A Guerra dos Tronos”?

Pedro Boucherie Mendes

O Frank Underwood original do livro “House of Cards” chamava-se Urquhart e não quebrava a quarta parede falando para nós, olhando diretamente para a câmara e era muito menos decidido e determinado quando estava sozinho. Pior, nessa primeira versão a sua mulher era um personagem bastante secundário, longíssimo da Claire Underwood/Robin Wright que luta com Frank/Kevin Spacey, um casal que habita o panteão da grande televisão dos últimos anos. Talvez esta menorização da mulher de Frank possa ir buscar uma aclaração qualquer num dos motivos que levou o político conservador Michael Dobbs a escrever o livro em primeiro lugar: ele estava furioso com Thatcher e farto do modo de funcionamento da política. No livro de Dobbs, Francis Urquhart até morria no fim, suicidando-se. Fosse como fosse, o impacto do livro foi suficiente para que a BBC o adaptasse numa minissérie para televisão em 1990, com assinalável sucesso de público e de crítica. Estas e outras adaptações eram (e são) uma prática relativamente comum na televisão pública britânica, um canal que em todo o mundo serve como referência da televisão de qualidade. A BBC não tem publicidade e é sustentada por uma espécie de taxa compulsória de 147 libras por ano, embora quem declare possuir um televisor a preto e branco pague apenas cerca de 50, havendo alguns ingleses que ainda mantêm esse hábito ou optam por mentir para pagar menos. Com muitos mais méritos que deméritos, à BBC associa-se a adaptação de obras literárias do cânone (e não só do inglês, veja-se a recente versão de “Guerra e Paz”, já emitida na nossa RTP) ou de romances, novelas e personagens de livros, numa prática muito mais europeia quando comparado com o que se passa nos EUA. Podemos mesmo dizer que na televisão inglesa e francesa essa tradição existe até como forma de as televisões exibirem a sua força criativa e a sua influência. Ainda no ano passado a BBC impressionou com a adaptação que Andrew Davies (o mesmo argumentista que adaptou “House of Cards”) fez de “Guerra e Paz” de Tolstoi, e que causou furor pelas cenas de sexo e nudez que incluía e que Tolstoi não escreveu.

Nos Estados Unidos, a mania de adaptar livros não existe. Quando a versão americana de “House of Cards” se estreou em 2013 como a primeira série original da plataforma Netflix, lançando os treze episódios todos em simultâneo e tornando-se um marco na história da televisão, só alguns se aperceberam de que se tratava de uma versão de uma série britânica adequada à realidade americana. Essas versões nem são incomuns, por exemplo a série “Homeland” é israelita de origem, “The Killing” dinamarquesa, “Ídolos” ou “MasterChef” britânicos. O que ainda menos gente notou ou sequer quis saber é que a série era baseada num universo criado em livro. Um problema para o ego do autor? Talvez não. Quando a série migrou para os EUA, Michael Dobbs não teve problemas em alterar a sua obra e reescrever partes da história para assegurar que os livros entretanto relançados ficassem fiéis à série e assim o seu Urquhart/Underwood passou de suicida a homicida e a história, obviamente, continua como tem continuado: a quinta temporada está neste momento em exibição no nosso país, no canal TV Series. Se já todos tínhamos percebido a força da ficção na televisão contemporânea, pelos vistos é tanto assim que até a sacralidade dos livros não tem problemas em se subjugar se necessário, o que talvez possa ajudar a explicar porque é que a televisão americana também anda a fazer séries a partir de livros e a verdade é que em 2017 estes dois mundos, tantas vezes vistos como extremos do maniqueísmo ‘aquilo que é que é bom/aquilo que é mau’, talvez nunca tenham estado numa relação tão intensa e dinâmica. E “House of Cards” não é o único livro a fazer concessões. No texto original “The Handmaid’s Tale”, uma favorita dos Emmys e uma das melhores séries do ano, feita a partir do livro de 1985 de Margaret Atwood, numa sociedade distópica só de brancos as mulheres são reduzidas a seres reprodutores, com todas as outras raças a serem exiladas para campos de concentração. Mas na versão televisiva, esta ausência de diversidade pareceu inviável e os produtores incluíram personagens de outras raças, esquecendo por completo a questão da limpeza étnica, numa alteração substancial ao livro feita com autorização expressa e aplauso da autora. Onde antigamente se reivindicaria a intocabilidade da obra original, hoje os escritores são os primeiros a mudar o que for preciso porque entendem que as audiências são importantes para que o seu trabalho seja filmado e mostrado a um público muitíssimo mais vasto e os seus livros possam ser mais vendidos, lidos e conhecidos.

É um truísmo afirmar que nem todos os livros são bons ou que nem toda a televisão é má, mas durante toda uma vida se disséssemos que ficámos em casa a ler teríamos sempre mais admiração do que se admitíssemos ter ficado a ver o novo episódio de uma série, porque, por tradição, o valor cultural e social que atribuímos à ideia de livro é sempre superior à ideia de televisão. A diferença do tempo que vivemos, porém, é que a alta qualidade da ficção em televisão tem sido de tal modo frequente e constante que não só se pode falar livremente de quanto gostamos de séries, como escritores e intelectuais que teriam desdenhado o meio há pouco tempo, hoje querem tanto lá estar que alteram os seus originais se for o caso. Isto acontece porque a televisão tem os meios, o talento e o dinheiro para que as histórias sejam contadas de uma forma fulgurante, mas sobretudo porque a ficção em televisão dos últimos anos tem tido tanta qualidade continuamente e tornou-se aceitável gostar de lá trabalhar, como sucede e sucedia com o cinema, o teatro ou o bailado.

Depois de cerca de década e meia de dezenas de excelentes séries originalmente escritas para televisão, este tem sido o ano da afirmação das adaptações de livros. “13 Reasons Why” (Netflix), “Big Little Lies” (HBO), “The Handmaid’s Tale” (Hulu), “American Gods” (Hulu), “Apple Tree Yard” (BBC) são tudo adaptações que se estrearam em televisão há poucos meses com assinalável sucesso de crítica e público e que contaram com o decisivo acolhimento favorável de milhares de fãs das obras originais na internet. Para o que resta de 2017 estão previstas as estreias de “Cormoran Strike”, escrita por J. K. Rowling (com o pseudónimo Robert Galbraith), “Sharp Objects”, da autora de “Gone Girl”, Gillian Flynn, “Alias Grace” (também de um livro de M. Atwood), “Mr. Mercedes” (de Stephen King), “The Last Tycoon”, baseado na obra de F. Scott Fitzgerald, ou “Philip K. Dick’s Electric Dreams”, a partir de contos do mesmo autor, entre várias outras séries de autores de fantasia e de livros do segmento ‘Young Adult’. Confirmadas em 2018 teremos a tetralogia de Elena Ferrante adaptada para a RAI e HBO; “Purity”, de Jonathan Franzen (com Daniel Craig, de 007, como protagonista), também para a HBO; a pentalogia “Melrose”, com Benedict Cumberbatch a liderar uma minissérie baseada na obra de Edward St. Aubyn, no canal Showtime.

Finalmente, a BBC promete novas e luxuosas versões de obras já adaptadas como “Mulherzinhas”, “A Guerra dos Mundos” ou “Howards End”, com algumas versões a serem feitas por escritores contemporâneos. No ano que passou tivéramos a excelente “The Night Manager”, a partir da obra de Le Carré, sendo provável que a presente vaga de transposição de livros para a televisão tenha permitido que muita gente se apercebesse de que “Orange Is the New Black”, “The Leftovers”, “The Man in the High Castle”, “House of Cards” ou “Game of Thrones” (GdT), todas séries com novas temporadas em 2017, sejam baseadas em livros. Apesar do pedigree do livro e do recente sortido de versões, não é demasiado insistir no singular é que a televisão ter conseguido ascender à atual respeitabilidade criativa sem ter feito uso dos livros, da literatura ou dos escritores, o que por si sugere o enigma: se a televisão é tão boa e já tão ‘literária’ em muitas das suas criações originais, o que leva a que nos últimos anos mais e mais livros estejam a ser adaptados, lembrando que “A Guerra dos Tronos” apenas apareceu vinda de um livro, doze anos depois da estreia de “Os Sopranos”? Como em muitas outras indústrias — e nunca perder de vista o carácter industrial e capitalista da televisão — não há uma resposta concreta e nas possíveis explicações encontramos muito de casual e de oportunista, tendo a tremendamente bem-sucedida adaptação de “GdT” demonstrado várias coisas. Primeiro, que a tecnologia de efeitos especiais estava desenvolvida o suficiente para responder ao desafio criativo — basta pensar nos dragões e outros seres, nos castelos e palácios e nos efeitos especiais nas batalhas. Em segundo lugar, que com grandes atores é muito mais simples fazer de grandes personagens criações televisivas ímpares e inesquecíveis. De seguida, percebeu-se depressa que os espectadores queriam ou toleravam ver sexo, nudez e extrema violência. Finalmente, e talvez mais importante, autor e fãs não se importam nada de ver a sua obra a ser tratada pela televisão, desde que o resultado lhes agrade.

As melhores séries, e por inerência as melhores adaptações, tornaram-se decisivamente melhores por motivos tecnológicos e de investimento. De súbito, a visão dos artistas tornou-se mais simples de fazer e em especial mais possível e autores, atores e argumentistas podiam pisar território desconhecido já que por exemplo com os meios digitais passou a ser possível filmar e ver a cena logo de seguida e repeti-la se necessário. É também esse o motivo por que as produções são hoje muito mais escuras e cinematográficas do que antigamente: pode ir-se testando o limite da incidência da luz na inteligibilidade da ação até o resultado agradar, repetindo takes ou retocando em pós-produção sem ter de esperar para se revelar a película ou descarregar os discos rígidos num computador especial a quilómetros de distância. Para não falar que nas séries que decorrem em mundos imaginários em que a tecnologia permite a criação de realidades virtuais absolutamente verosímeis e por essa razão, embora não só, “GdT” está no panteão e poucos se lembram (ou sequer viram) da minissérie “Os Pilares da Terra”, da obra de Ken Follett, produzida anos antes ou de outras, feitas com muito menos dinheiro. A televisão está tão imparável que estamos prestes a chegar a outra dimensão desta relação já que a estreia iminente da próxima temporada de “Guerra dos Tronos” marcará uma originalidade neste universo peculiar: os acontecimentos na série de televisão vão ultrapassar aqueles publicados em livro. Os que seguem fielmente os livros de George R. R. Martin ou não veem os novos episódios e evitam quaisquer notícias ou ficam contaminados com as referências visuais quando finalmente Martin publicar o sexto volume há tanto prometido. Se calhar é melhor arriscar: por exemplo, “The Leftovers”, mais marginal e muito menos afamada do que “GdT”, melhorou a partir do momento em que continuou o livro.

O político conservador Michael Dobbs
Francois Durand/Getty Images

A somar a esta combinação de possibilidades, mais recentemente surgiu o oportunismo de o livro favorecer a promoção da série, uma vez que com tantas horas de excelente oferta, se se adaptar um livro o conjunto dos leitores familiarizados com a trama funcionará como um primeiro grupo de entusiastas sobretudo nas redes sociais já que não é uma heresia levar um livro à televisão, antes pelo contrário.

Se sempre houve adaptações de novelas, romances e histórias publicadas em livro para a televisão, sobretudo de títulos infanto-juvenis, policiais ou literatura ligeira, o que é diferente desta feita é que a habitual reverência no modelo típico de relação de décadas entre a literatura e a televisão se desvaneceu e por isso em nenhum dos casos referidos de produções recentes a indústria da televisão fez a genuflexão vulgar a esse meio superior que era o livro e em nenhuma destas séries houve queixas de ter havido corrupção artística do original ou reclamações por falta de engenho e de arte das versões televisivas, fosse por parte do público e dos fãs da obra fosse por parte dos próprios autores ou críticos. Pelo contrário, em pelo menos dois casos, “13 Reasons Why” e “Big Little Lies” (e a exemplo do que sucedera com “The Night Manager”), e perante o êxito das séries e o desejo dos públicos, os autores da obra original (ou seja, dos livros) mostram-se favoráveis a que haja segundas temporadas televisivas, apesar de as suas criações se terem esgotado na primeira. Os tempos em que o autor tinha de ser seduzido e convencido ou em que os académicos eram consultores são passado.

Há menos de dez anos, quando a TVI se lançou a adaptar o romance “Equador”, de Miguel Sousa Tavares, numa série, o debate sobre a pureza, a fiabilidade, a integridade dessa adaptação durou meses como se qualquer pequeno passo mal dado nas filmagens pudesse corromper para sempre o livro. Não era capricho ou embirração do autor, simplesmente há dez anos a literatura, até a literatura lida por muita gente, não confiava na televisão. Já agora, e tirando este exemplo de “Equador”, a televisão portuguesa produziu poucas séries e ainda menos séries memoráveis adaptadas de obras literárias ou sequer de romances clássicos ou contemporâneos. A exceção aconteceu este mês, que estreou “Madre Paula” na RTP, a partir do livro homónimo de Patrícia Müller. Mas é bizarro que em 60 anos de história, a RTP tenha visitado tão poucos clássicos da nossa literatura além de “Amor de Perdição”, de Camilo, por Manoel de Oliveira (1978), “Os Maias” e “A Tragédia da Rua das Flores” ou “O Conde d’Abranhos”, de Eça, “Retalhos da Vida de Um Médico” (Fernando Namora), “Mau Tempo no Canal” (de Vitorino Nemésio), “Gente Feliz com Lágrimas” (João de Melo) e pouco mais. A SIC, quando surgiu, arriscou investir na “Viúva do Enforcado” (de Camilo em 1993), mas pouco mais adaptou até hoje excetuando “Até Amanhã, Camaradas” (Manuel Tiago/Álvaro Cunhal em 2005). É na literatura infantojuvenil que a nossa televisão foi mais pródiga, com as séries “Uma Aventura” (SIC), “Clube das Chaves” (TVI) e “Triângulo Jota” (RTP) a terem tido algum sucesso há anos. Talvez não tenhamos uma literatura passível de ser adaptada ou que interesse às nossas televisões, mas é de prever que um dia tenhamos condições de mercado para sermos mais ambiciosos na nossa ficção televisiva e isso possa passar pela adaptação de histórias que começaram por ser contadas em livros.

Foi um canal concorrente da BBC, a ITV, que rompeu com o formalismo restritivo na adaptação de livros, com “Reviver o Passado em Brideshead”, a partir da obra de Evelyn Waugh, e que mudou para sempre a forma de levar a literatura para a televisão
D.R.

Foi há quase vinte anos que tudo começou a mudar na ficção em televisão quando o chamado Cabo começou a produzir ficção para captar assinantes, com os canais HBO, Showtime ou AMC a lançarem títulos como “The Wire”, “Mad Men”, “Breaking Bad”, “Sex and the City”, “Six Feet Under”, “The Americans”, “Rectify”, “The Affair”, “Fargo”, “The Walking Dead”, “Better Call Saul”, “Westworld”, “A Guerra dos Tronos” e outras, a que podemos juntar as europeias “Downton Abbey”, “Line of Duty”, “Wolf Hall”, “The Killing” ou “The Bridge”, etc. Este caudal de produção tornou as séries um rito primeiro semanal e de seguida todos-os-episódios-de-uma-vez (quando a Netflix surpreendeu este mundo e o outro ao disponibilizar todos os episódios da primeira temporada de “House of Cards” de uma vez só), com milhões de pessoas urbanas e sofisticadas em todo o mundo a renderem-se à ficção televisiva, críticos a venerá-las, universidades a estudá-las e, claro, canais de televisão a ganharem muito dinheiro com assinantes e vendas das séries para dezenas de países. Quase do nada, estava criada uma indústria dentro da indústria quando se percebeu que havia procura para a qualidade e quem estivesse disposto a pagar para ver as suas séries sem intervalos cheios de publicidade e sem ter de esperar que algures um canal qualquer escolhesse o dia e a hora de exibição. Na ‘idade de ouro da televisão’, descobriu-se que se o espectador tinha outra exigência, também permitia outra latitude e assim, as produções deixaram de ser obrigatoriamente serializadas e compartimentadas em episódios fechados, entrecortáveis por blocos publicitários irritantes com os criadores a terem liberdade e meios para passarem a poder contar histórias complexas, protagonizadas por personagens ambivalentes, em ambientes ricos e diversificados, filmadas como até então só se via no cinema. Como o objetivo não eram as audiências no imediato, a televisão pôde evoluir para um novo género, o “Arc TV” como o crítico Thomas Doherty lhe chamou no site ‘The Chronicle of Higher Education’, ou seja, séries cujas temporadas cobrem longos, complexos e desenvolvidos arcos nas suas histórias, com protagonistas e personagens com voz, motivações, fraquezas e ambivalências que lhes dão dimensão humana, lentamente maturada em vários episódios, como se encontrava no melhor cinema ou na melhor literatura. Em poucos anos, a televisão passou de parente pobre cultural para a vanguarda da criatividade no contar de histórias, o que implicou uma mudança fulgurante de paradigma do próprio negócio, cujos efeitos ainda não estão totalmente estabelecidos. Tudo isto aconteceu com a prata da casa, ou seja, sem precisar da literatura ou sequer do cinema, e as séries atingiram uma qualidade tal que não admira que muita gente julgasse que “Downton Abbey” era baseada numa obra literária (não era), que “Mad Men” resultava das memórias de um publicitário (também não) ou que “Breaking Bad” ou “The Wire” eram versões de memórias de antigos criminosos ou agentes da lei (não eram). Muitos autores desta nova televisão vinham de trabalhar anos a fio na televisão generalista, onde o risco criativo não era bem-vindo, estavam ansiosos por filmar as suas próprias criações. Foi o que fizeram.

No mês passado assinalaram-se dez anos desde o ambíguo e polémico último episódio de “Os Sopranos” que provou que as séries podiam deixar de ser apenas baseadas numa lógica de ‘rastilho’, ou seja, qualquer coisa que se acende no primeiro episódio e que terá de culminar num final apoteótico no muito aguardado último episódio, para passarem a ser muito mais desenvolvidas, estranhas e até terminarem de maneira abrupta e enigmática ou suave, ambígua e casual, como sucedeu aliás este ano com “The Leftovers”, cujo final é considerado por aqueles que fazem este tipo de rankings como um dos melhores de sempre. Como resumiu há pouco tempo o crítico Matt Zoller Seitz: “A televisão serializada de hoje parece cada vez mais inclinada em construir mundos e na psicologia dos personagens do que em prender toda a gente à questão sobre se o personagem principal morre ou é apanhado no final.”

Em 2013, o embaixador americano Jeffrey Bleich escreveu um post no seu Facebook pedindo aos australianos que parassem de piratear os episódios da terceira temporada de “A Guerra dos Tronos”. Aparentemente os registos mostravam que a cada semana havia quatro milhões de downloads ilegítimos só na Austrália, um número equivalente à audiência ‘legal’ da série naquele território. Este frenesi acerca da pirataria em larga escala é notícia sempre que uma temporada de “GdT” está a ser emitida, mas todos os dias milhares de novos episódios de excelentes séries são pirateados em todo o mundo e não propriamente por membros de uma qualquer subcultura marginal, mas sim por aquilo que poderíamos chamar pessoas normais, que por causa desta vontade de ver televisão se tornam peritos em pirataria.

Esta fase da ‘idade de ouro’ da televisão, que leva quase duas décadas, parece não ter fim à vista e alastra agora à adaptação de livros. No início deste texto estão excelentes séries a partir de livros que se avizinham, mas o reverso da medalha é que é verdade que antes houve muitas outras originalmente escritas para televisão. Há séries melhores do que outras e algumas até bastante aborrecidas, mas tem sido espantoso verificar a cadência e o volume na qualidade e se em Portugal nos especializamos quase só na produção e no consumo de novelas, no resto do mundo os espectadores veem de facto estas séries, seja nas versões originais seja em versões dobradas, a ponto de podermos afirmar com muita segurança que do ponto de vista criativo e da inovação no contar de histórias de ficção o século XXI está a ser o século da televisão, em especial aquela que é feita para o público mais exigente e que quase já não vê a televisão linear, de fluxo. E não estamos a falar de pouco até porque o pico criativo televisivo atual parece ter-se transformado num planalto a grande altitude, desde que há uns (poucos) anos as plataformas SVOD (Subscription Video On Demand) Netflix, Hulu e Amazon (e em breve Apple e Facebook) apostam igualmente em produções originais que ganham os prémios mais importantes da indústria tal e qual os canais de televisão tradicionais. Num processo ovo-galinha, a tecnologia da internet, a sua velocidade, as boxes de gravação, o desenvolvimento de devices portáteis como o tablet ou a criação e o investimento em serviços como a plataforma Netflix, acompanharam esta torrente de novas e excelentes produções e talvez seja interessante lembrar que não há um baú cheio de séries maravilhosas dos anos 60 ou 70 para descobrir. Haverá excelentes séries ou programas, mas são francamente poucos os exemplos que resistem ao tempo e não parecem anacrónicos e incipientes na forma como foram filmados ou editados. Quem está minimamente atento ao que se passa desde “Os Sopranos” e se tenha mantido espectador desta onda criativa, terá visto uma grande parte das séries que definem a tal golden age, o que significa que é uma testemunha viva desta era. Será o equivalente a termos testemunhado in loco o surgimento dos Beatles, Stones, Dylan ou Bowie no final dos anos 60. E o que é comum a esta cornucópia de séries? Até à adaptação dos livros de “A Guerra dos Tronos” (2011), que foi então anunciada sem grande pompa ou sequer circunstância, os canais, produtores e criadores de televisão americana passaram bem sem os livros porque as suas histórias, muitas das quais dormiam há muitos anos em gavetas, eram mais do que suficientes para suprir a procura.

O escritor Evelyn Waugh
Hulton Deutsch Collection/ Getty Images

Entre a estreia do último episódio de “The Sopranos”, a 10/06/2007 e a estreia do primeiro episódio de “Mad Men”, a 19 de julho seguinte, decorrem exatamente 39 dias, como os 39 degraus do filme de Alfred Hitchcock, conhecido também por ser o apresentador de uma das primeiras séries tal qual as conhecemos e que ainda é uma das melhores de sempre, identificável pelo seu extraordinário genérico e música, do compositor francês Charles Gounod. “Alfred Hitchcock Presents”, que há pouco tempo repetiu na RTP Memória, estreou-se em 1955, um ano em que nasceram mais de quatro milhões de bebés numa América muito próspera, que via surgir uma nova categoria social e por inerência um novo alvo comercial: os jovens, ou teenagers, uma palavra que se popularizou nesta fase. Uma das primeiras indústrias a perceber que valia a pena considerar os jovens como uma classe à parte foi a televisão, com as três networks ABC, NBC e CBS a inventarem as manhãs de fim de semana e outros programas tendo como referência os mais novos, que por sua vez insistiam com os pais para que comprassem um aparelho lá para casa. No princípio da década de sessenta, noventa por cento dos lares americanos tinham o seu próprio televisor, também porque, descobria-se, mantinha as crianças entretidas, ocupadas e por perto. E para as ocupar eram necessários aquilo a que hoje chamamos conteúdos, entre os quais ficção. As primeiras ‘séries’ foram essencialmente westerns ou derivados que apelavam a toda a família e em especial aos mais novos, mas depressa o género alastrou a histórias passadas em hospitais, tribunais ou de mistério, algumas chegadas de Hollywood, que demorou algum tempo a levar a televisão a sério. O interessante é que a primeira série de uma hora semanal que Hollywood produziu, e que se estreou na CBS em setembro de 1957, foi baseada num personagem livresco, embora provavelmente não tido como literário e portanto de ‘qualidade’. “Perry Mason”, que o próprio autor Erle Stanley Gardner adaptou, tornou-se um marco da televisão e a base de todos os procedurals drama, ou seja, séries em que ocorre sempre o mesmo processo para solucionar o caso concreto da semana (muito embora, se quisermos ser exatos, “Perry Mason” começou por ser adaptado ao cinema e à rádio e a popularidade que o levaria à televisão vem daí e não da sua versão em texto). Em paralelo a este entretenimento ligeiro, ou pelo menos mais generalista, também nessa altura dos finais dos anos 50, princípios dos 60, viveu-se uma época então apelidada de “Golden Age”, muito por causa dos anthology dramas, uma espécie de peças dramáticas herdeiras da rádio, transmitidas em direto todas as semanas, onde muitos americanos viram pela primeira vez aquilo a que podemos chamar uma certa modernidade e um realismo diferente na ficção filmada, mais próximo da melhor literatura. Já então a televisão de qualidade era comparada e até confundida com os livros.

O princípio da história da televisão europeia é uma história com muito mais literatura, com essa televisão dos anos 50 a apanhar boleia da rádio exibindo produções radiofónicas de peças de teatro ou obras dos principais autores do respetivo cânone, com o esperado recurso a atores do palco que declamavam as falas em longos diálogos — Portugal não foi exceção, com a dramaturgia de Gil Vicente a ser assídua nos primeiros anos da RTP. De um modo geral, essas produções tinham a sua solenidade, eram emitidas em direto, filmadas por câmaras gigantescas e com pouca mobilidade, com um registo tão marcado que um espectador de hoje aguentaria muito pouco tempo sem se aborrecer de morte. Podia ser uma televisão literata, mas não se pode dizer de todo que fosse uma televisão emocionante e foi assim durante bastante tempo a relação algo chata, sensaborona, respeitosa e pouco imaginativa, entre a televisão e as histórias publicadas em livro. Curiosamente ou talvez não, foi um canal concorrente da BBC, a ITV, que rompeu finalmente com o formalismo restritivo na adaptação de livros, com “Reviver o Passado em Brideshead”, a partir da obra de Evelyn Waugh, e que mudou para sempre a forma de levar a literatura para a televisão. A série é de 1981, foi exibida na altura na nossa RTP, e numa primeira análise respeitou a fidelidade ao livro a um extremo tal que longas passagens são leituras ipsis verbis do texto original. A verdade é que rompeu com a norma televisiva ao ser filmada em 16 mm, e com a teatralidade ao ter inúmeras cenas filmadas em exterior e décor natural, mais parecendo portanto um filme em episódios. A série teve um impacto tremendo. Um crítico do “Washington Post” escreveu que a produção, que começou nos EUA três meses depois da exibição no Reino Unido, era “a melhor que alguma vez passava na televisão americana” e “Brideshead” ainda é considerada pelo “Daily Telegraph” a melhor adaptação de sempre de um livro à televisão. A ITV aturou quase dois anos de filmagens, gastando uma imensidão de recursos, mas as vendas internacionais da adaptação de Waugh foram um sucesso e estímulo suficiente para que o canal investisse noutra adaptação três anos depois com “A Jóia da Coroa”, de Paul Scott (também exibida na RTP). A forma inovadora e mais próxima da linguagem do cinema que a ITV inaugurou com estas duas minisséries grandiosas feitas a partir de livros, leva a televisão britânica para uma nova era, ainda que se mantivessem desde sempre as adaptações na linha de “Perry Mason”, como os popularíssimos “Poirot” (com David Suchet) ou “Sherlock Holmes” (com Jeremy Brett), além de muita programação infantil a chegar dos livros, para não falar da então inovadora adaptação de “Tinker Tailor Soldier Spy”, de John le Carré. Havia e houve obviamente várias visitas ao cânone (Lewis Carroll, Dickens, Brontë, Austen, Henry James, Eliot, a chamada Shakespeare Collection, etc.), mas estas adaptações tinham outro estatuto dado que por motivos fáceis de perceber nestes livros dos grandes autores, e apesar da modernidade que lhe tem sido conferida nas adaptações, não se podem sacrificar personagens ou inventar outros em nome do ritmo televisivo como em “House of Cards”.

Em janeiro de 1977, a televisão americana teve uma mudança tão súbita quanto inesperada. O impacto da minissérie “Raízes”, transmitida em oito serões consecutivos, foi tão particular que, a 1 de fevereiro, sete dos oito episódios estavam no top-10 dos programas mais vistos de sempre da história da televisão americana, estimando-se que 130 milhões de pessoas tenham seguido a série que adaptava um livro do biógrafo de Malcolm X, Alex Haley, publicado no ano anterior. A obra, que vendeu seis milhões de exemplares no primeiro ano e ganhou o Pulitzer e o National Book Award, ainda mantém uma enorme influência na cultura e sociedade, ao revelar a milhões de americanos que os cidadãos negros do seu país descendiam de homens livres capturados em África e feitos escravos. Anos mais tarde soube-se que a pretensa autobiografia talvez não fosse tão biográfica assim e até houve acusações de plágio, mas “Raízes/Roots” entra também para a história da televisão na medida em que foi a segunda vez que a televisão americana ousou adaptar um livro com muito investimento e para ser exibido no chamado prime time. A primeira tinha sido no ano anterior, com “Homem Rico, Homem Pobre”, a partir da obra de Irwin Shaw, com apreciável sucesso, que aliás motivou a repetência com “Raízes”. O processo que na Europa era comum (a BBC adaptou “1984”, de Orwell, em 1953) demorou a convencer os americanos da sua pertinência e só se arriscou uma estratégia novels-to-television porque o canal de serviço público (e imensamente marginal) PBS vinha desde há dez anos a transmitir as adaptações da BBC para território americano, para grande satisfação de um público influente.

Ambas as séries da ABC foram emitidas em Portugal e noutros países da Europa, embora por cá estivéssemos muito familiarizados com as adaptações livrescas, ainda que pudéssemos nem ter essa consciência. As animações “Abelha Maia”, “Heidi” e “Wickie”, as séries “Sandokan”, “Sítio do Picapau Amarelo”, “Uma Casa na Pradaria” ou as novelas “Gabriela” e “Escrava Isaura” tiveram origem em livros, como outros programas dos anos seguintes (“Sherlock Holmes”, “Poirot”, “Miss Marple”, “Maigret”. Mas a verdade era diferente dos tempos atuais porque todos estes exemplos eram de televisão a parecer-se com televisão e bastava ir ao cinema (ou ver um filme na televisão) para entender porquê. Até à presente idade dourada da ficção televisiva, a espessura dramática, a textura dos personagens e das histórias, a própria linguagem das câmaras, a iluminação, os adereços e figurinos, a visão, a imaginação, os efeitos especiais, os planos abertos e subjetivos eram um exclusivo do superior cinema e por causa desta demarcação de territórios, a relação da televisão com os livros foi decorrendo muito nesse plano mais seguro (porque menos julgado) do universo infantojuvenil, com as obras de Verne, Dumas, Dickens, os contos de Grimm, Andersen ou Perrault a serem retocadas nas adaptações para este público, ou em adaptações de obras da alta cultura na medida em que se dariam a conhecer a um público mais vasto. De facto, quando a televisão dos adultos fazia adaptações, a intenção do programador era precisamente homenagear e destacar o livro e assegurar que a submissa televisão não a tinha corrompido. Os recortes dos jornais da época são elucidativos acerca de “Gabriela”, a primeira telenovela brasileira a ser exibida em Portugal em 1977, que chegou ao nosso país precisamente porque cumpriria com distinção esse desafio que era adaptar a obra do grande escritor Jorge Amado: e assim os responsáveis da RTP não estavam a trazer entretenimento ao público sob forma de uma telenovela como também a mostrar-lhes o génio de Jorge Amado por outra via. Claro que a beleza e sensualidade de Sónia Braga/Gabriela facilitaram o processo até porque uma diferença essencial e interessante entre televisão e livro é que no primeiro caso têm forçosamente de se estabelecer pontes com o público, pela simples razão de que não há televisão sem audiência, o que sublinha essa evidência de serem os livros mais ligeiros, aventurosos ou dominados por um personagem principal a serem os mais adaptados. (Como sabemos, um livro, e se o seu autor assim o entender, poderá tornar a vida do leitor num inferno).

Há menos de dez anos, quando a TVI se lançou a adaptar o romance “Equador”, de Miguel Sousa Tavares (na foto no papel do Conde de Mafra), o debate sobre a pureza, a fiabilidade, a integridade dessa adaptação durou meses como se qualquer pequeno passo mal dado nas filmagens pudesse corromper para sempre o livro

O problema de filmar um livro torna-se óbvio quando pensamos nisso. Num romance, com palavras frases, parágrafos ou capítulos, o autor pode interromper a ação para descrever ambientes, contextos, motivações, citar monólogos interiores, fazer flashbacks, dar histórias de personagens, ser omnisciente e omnipotente em relação aos seus personagens. Em televisão, e ainda que o espectador saiba mais do que alguns dos personagens, a ação não pode estar constantemente a ser pausada para que a ‘voz’ do autor surja a justificar a motivação deste ou daquele personagem ou a importância daquela casa ou daqueloutra cidade na trama. A televisão, por mais inventiva que seja, é essencialmente uma dança entre alguma ação e muito diálogo, discurso direto portanto, motivo pelo qual em muitas adaptações são sobretudo os personagens que são explorados no ecrã. A discussão sobre se muitos dos romances contemporâneos são devedores da televisão (e do cinema) existe e é inegável que muitos autores se afirmam influenciados por um modo mais visual de construir os seus mundos, mas ainda assim adaptar um livro à televisão não é nada fácil porque esse mundo pensado pelo autor tem de ser todo revelado. Um escritor poderá conseguir sintetizar uma sala onde decorre uma tragédia numa frase, um diretor de arte e design de uma série terá de a construir e decorar por inteiro. Um escritor poderá escrever que estavam muitas pessoas numa festa, numa série essas pessoas terão de aparecer, bem como a festa e toda a parafernália, decoração, figurinos, etc. Num livro um personagem pode percorrer o mundo num parágrafo belissimamente escrito, mas na televisão isso será sempre um enorme problema para resolver do ponto de vista criativo e orçamental. É esta translação entre a palavra escrita e o visual que mais tem evoluído. A obra fantástica “American Gods”, de Neil Gaiman, era tida como muito apelativa mas infelizmente ‘infilmável’, mas a verdade é que já a temos em televisão desde este ano, devidamente renovada para uma segunda temporada.

Hoje a qualidade da ficção que se vê em televisão é amplamente elogiada pelos próprios escritores, intelectuais ou críticos. Numa entrevista ao “The Observer”, em 2011, Salman Rushdie chegou a afirmar que a televisão era o meio mais sofisticado para se escrever, numa unanimidade acerca do salto qualitativo da televisão que se reflete na quantidade de artigos, ensaios e críticas elogiosas em publicações literárias como a “New York Review of Books” ou seríssimas como a “The New Yorker” e a “The Atlantic”. Em vez dos regulares textos sobre ‘malefícios’, ‘declínio’, ‘má influência sobre a juventude’, temos hoje autêntica hermenêutica e análise sobre séries como se estas fossem os equivalentes do grande romance do século XIX ou XX. E que grande mudança na perceção tem sido. Histórias são histórias mas é indesmentível que a reputação da literatura ou do cinema sempre foi muito superior à da televisão, que só aspirava à respeitabilidade dos mandarins se emitisse música clássica, ópera, teatro ou a ocasional adaptação fidelíssima de um ‘clássico’. O programa em causa poderia ser chato, aborrecido, críptico, mas seria sempre válido desde que não vulgarizasse a obra, porque a ideia de que a televisão pudesse melhorar qualquer das outras artes era absurda. O que se dizia sempre é que a série de aventuras podia ser divertida e emocionante, mas por certo o livro, o original, seria sempre melhor, mais recomendável e insubstituível. Não espanta que muitas das histórias que chegaram à televisão mais vezes resultam de livros publicados originalmente em fascículos, o equivalente aos episódios no léxico da televisão. Desde logo Júlio Verne (“A Volta ao Mundo em 80 dias”, “Miguel Strogoff”, etc.), Alexandre Dumas (“Os Três Mosqueteiros”, “O Conde de Monte Cristo”), Charles Dickens (“Um Conto de Natal”, “Oliver Twist”, etc.), tiveram inúmeras versões televisivas ao longo dos anos, em especial na televisão europeia e, como já se referiu, muitas vezes orientadas para o público juvenil. E quando não foram ou são as obras em si, serão elementos dessas e de outras histórias que reconhecemos: não haverá um detetive na televisão mundial que não deva qualquer coisa a “Sherlock Holmes”, ou um náufrago que não deva a “Robinson Crusoé”. E só no ano que passou houve nada mais do que três séries diferentes baseadas na ideia do escritor H. G. Wells das viagens no tempo através da construção de uma máquina. Adaptando livros ou não, quando não estivesse a entreter, a televisão podia ter a ambição de divulgar, dar a conhecer, de informar e mostrar, mas raríssimas vezes a deixaram ser artística ou sofisticada.

A televisão aguentou décadas sendo considerada unanimemente um meio menor sem se importar demasiado com essa despromoção. Cinema, teatro, literatura, dança, pintura, escultura além de serem arte, tinham significados ocultos, eram passíveis de interpretações, passavam de geração, sobreviviam ao tempo e ao contingente. A televisão via-se e esquecia-se no instante a seguir. Hoje vê-se, coleciona-se, discute-se, debate-se e deseja-se porque é na televisão que parece ser possível ser mais ambicioso artisticamente. Talvez tudo isto não seja televisão e talvez a questão até seja essa. A desmaterialização dos conteúdos e a falência progressiva da importância do televisor-objeto-recetor, desestruturam o fluxo (ou seja, não é o canal que escolhe o horário, mas sim cada um de nós) e impactam a cadeia de valor (as televisões tradicionais estão ser postas em causa por plataformas que nem existiam há uns anos) e isso poderá legitimar que não lhe chamemos televisão como nos habituámos. Será essa transição inevitável? E que mudança implicará este darwinismo? É que outra razão por que os livros podem estar a chegar à televisão é a sobrevivência. A estatal e clássica RAI está empenhada na adaptação da obra de Elena Ferrante também porque acredita que para sobreviver é preciso competir pelos públicos através da qualidade. Depois de anos e anos a verem excelentes séries americanas a serem preferidas pelos públicos, as televisões acreditam que as pessoas parecem preparadas para uma ficção mais desenvolvida, interessante e desafiante criada nos seus próprios países e que será por aí que se podem regenerar e sobreviver.