Cultura

“Se tens medo de uma imagem que mostra o pior de um país, vai lá, bebe um café e vais ver pessoas normais que sentem amor e medo”

O que é que uma película sobre aliens está a fazer nos nomeados para melhor filme dos óscares? É porque isto não é sobre aliens, é sobre nós - e sobre “transformar delicadeza e calma em qualidades heroicas”. Ao longo desta semana, porque no domingo há óscares, estamos a prosar sobre os candidatos a melhor filme: começamos com “Arrival”, nomeado para oito óscares, e no fim deste texto há um soldado que salvou 75 pessoas sem ter disparado um único tiro

CRÉDITOS: CONTA DO FACEBOOK DO FILME “ARRIVAL”

Os anúncios e trailers apresentam-no como um filme de ficção científica e, afinal, “Arrival” conta mesmo com alguns dos argumentos típicos deste género, particularmente dos filmes catastróficos que nele se enquadram: uns seres alienígenas chegam à Terra, e em particular aos Estados Unidos (entre doze outros pontos de aterragem); imediatamente as forças policiais e investigadores são convocados enquanto o estado de emergência é declarado; nas ruas as revoltas sucedem-se, nos canais de notícias anuncia-se o caos que está prestes a chegar.

Esta pode ser a sua primeira impressão de “Arrival”, mas convém que não se deixe enganar, porque se vir mais do que os minutos iniciais vai descobrir que este filme é muito mais do que isso – a história de “Arrival”, baseado no conto de Ted Chiang “Story of Your Life” (1998), e a interpretação subtil de Amy Adams elevam o género e conseguem fazer com que os alienígenas, aqueles seres normalmente verdes e ameaçadores, passem a ser um mero pormenor nesta narrativa.

CRÉDITOS: CONTA DO FACEBOOK DO FILME “ARRIVAL”

A ação arranca quando Louise Banks (Amy Adams), uma conhecida linguista e professora universitária norte-americana, se vê obrigada a cancelar uma aula por causa de uma notícia de última hora: doze naves espaciais, feitas de materiais desconhecidos e ocupadas não se sabe por quê ou por quem acabam de aterrar em – ou melhor, flutuar sobre – 12 pontos da Terra que aparentemente nada têm em comum, dos Estados Unidos à Rússia, passando pelo Sudão e pela China.

No entanto, a primeira pista para os elementos que tornam este “Arrival” tão especial chegam logo na apresentação à personagem de Louise, quando a protagonista nos mostra alguns momentos que viveu com a filha Hannah – flashbacks, pressupõe-se – desde o seu nascimento até à sua morte precoce, enquanto adolescente. Nesse momento, quando Louise recebe a notícia da morte da filha, encontra-se num hospital algo peculiar – os corredores do edifício são circulares.

Esta história não é sobre aliens. É sobre humanos

Pode parecer um pormenor irrelevante, mas o círculo, a ligação entre o tempo e a sua ordem, será a chave para compreender a grande lição deste filme. Também são circulares os símbolos que os alienígenas utilizarão para tentar comunicar com Louise, a linguista que acaba por ser chamada para resolver o mistério da vinda destes extraterrestres e que ela acaba por entender como representações de palavras. “No guião, a linguagem deles parece feita de tinta, e precisávamos de que fosse circular para transmitir ligação”, explica à “Vanity Fair” o designer de produção do filme, Patrice Vermette.

CRÉDITOS: CONTA DO FACEBOOK DO FILME “ARRIVAL”

No filme, aqueles extraterrestres não se parecem nada com os que costumamos ver retratados no grande ecrã – com tentáculos e uma cor escura, sem olhos, boca ou outras partes reconhecíveis em comum com o corpo humano, eles disparam com os tentáculos a tinta escura que lhes permite então formar os símbolos com que comunicam. A nave também não é o espaço habitualmente caracterizado nestes filmes: “Quisemos usar um design simples porque a história não é sobre aliens… É uma história sobre humanos e não quisemos ter nenhuma distração. Quisemos manter-nos longe da nave típica com janelas e pequenas antenas e luzes ofuscantes”, esclarece Vermette.

O foco está na estranha linguagem que Louise, ao lado do companheiro cientista Ian (Jeremy Renner), tenta descodificar enquanto é apressada pelos agentes do Governo que precisam de resultados rápidos. Aos poucos, a especialista tenta ensinar aos aliens, com disponibilidade e abertura – lembre-se a cena em que, perante todos os avisos de possíveis efeitos radioativos, ela despe os fatos e as proteções que cobrem o seu corpo para deixar que a vejam melhor – algumas palavras, para que seja possível ter uma interação com eles e perceber aos poucos as suas intenções

À medida que estas interações se desenvolvem – assim como se desenvolvem as tensões entre os doze países que contactam os aliens e que se enervam cada vez mais com a impossibilidade de obter uma resposta deles, cortando os canais de comunicação entre as 12 partes que podem resolver o mistério – também se intensificam os aparentes flashbacks que Louise vai experimentando ao longo do filme, e que a parecem deixar fisicamente exausta, como se exigissem mais dela do que apenas a recordação de uma memória. Será exatamente através desta interação, da aprendizagem desta língua, que Louise chegará a toda uma nova forma de percecionar os acontecimentos e o tempo – e, assim, perceberá o quão importante foi comunicar com quem era diferente e unir-se com os restantes países para juntar as peças do puzzle.

“Espero que faça com que levem a ficção científica mais a sério”

Esse poder da comunicação e da abertura aos outros – não contamos mais nada sobre o enredo, mas fique a saber que a equipa decidiu dar este rumo ao filme depois de ver “Interstellar”, de Christopher Nolan (2014) e temer que o final fosse redundante – acaba por ser a chave de um filme que começa por parecer mais um filme sobre a invasão da terra mas que acaba por ser sobre os problemas de quem já a habita e como ela poderia ser um lugar melhor se os humanos se escutassem entre si.

“Espero que o filme mude as ideias das pessoas sobre o que a ficção científica é”, explica o autor da história inicial em que se baseou depois o argumento de “Arrival”, Ted Chiang, ao “Blastr”. “Espero que faça com que as pessoas vejam a ficção científica mais a sério e não como simples filmes para comer pipocas.” Até porque essa sempre foi a sua intenção, desde que foi contactado sobre a possibilidade de “a improvável candidata ‘Story of Your Life” passar ao grande ecrã: “Se me tivessem enviado uma cópia de ‘Transformers’, provavelmente eu não teria continuado a conversa”.

CRÉDITOS: CONTA DO FACEBOOK DO FILME “ARRIVAL”

Em vez disso, uma proposta irreverente que envolvia Denis Villeneuve, o realizador franco-canadiano que se estreia assim nas nomeações da Academia, e muitas ideias frescas para o género: a palete de cores escura e de cores térreas, sem cores berrantes ou imagens petrificantes de explosões; a história original, bastante mais filosófica e introspetiva, adaptada a um possível conflito mundial para providenciar a necessária escalada de tensões e emoções no grande ecrã, algo que para o autor “fez totalmente sentido”.

Amy, musa e eterna favorita

Por fim, o elemento crucial que sustenta todo o filme: a atuação entusiasticamente elogiada de Amy Adams, que na pele de Louise Banks conduz toda a narrativa, as epifanias e as descobertas com serenidade, num ritmo em que consegue levar o espectador a suster a respiração ao mesmo tempo que ela a sustém, a rir quando ela ri e a ver toda a história da perspetiva dela. O “New York Times” fala da sua capacidade para “transformar delicadeza e calma em qualidades heroicas”; o “Telegraph” elogia a sua “extrema subtileza”; o “Los Angeles Times” declara “Arrival” como “o filme de Adams”.

E no entanto nem tudo isto foi suficiente para que Adams, que acabou com um hiato na sua carreira só para fazer este filme, garantisse a sua sexta nomeação nos óscares (apesar de nos últimos anos estar frequentemente no lote de nomeadas, Adams nunca levou a estatueta para casa), mesmo tendo feito parte das preferências nos BAFTA, Globos de Ouro ou SAG Awards, para dar alguns exemplos. Villeneuve é uma das pessoas que mostram maior espanto com a ausência de Amy na lista de nomeadas deste ano: “Ela é a alma, a musa do filme”, diz ao “Los Angeles Times”.

“Amy é o ser humano mais lúcido, gracioso e bonito. [Quando soubemos das nomeações], ela só disse: ‘Por favor! Celebrem! Oito nomeações são motivo para celebração!’ Mas honestamente fiquei muito desapontado. (…) Tudo ganhou vida graças a ela. Não preciso de uma palavra para perceber o que ela pensa ou sente”, prossegue Villeneuve. Sobre esta controvérsia, a “BBC” coloca a hipótese de os votos da Academia depositados em Amy terem ficado divididos entre os dois papéis cruciais que desempenhou esta temporada, em “Arrival” e “Noctural Animals”.

Em vez de explosões e tiros, desta vez foram precisos os olhos de Amy para contar a história; em vez de uma história de terror, o guião conta uma história de serenidade e compaixão, alicerçada por um grande trabalho da produção, que consultou designers, linguistas e antropólogos só para compreender adequadamente os mistérios da linguagem e contar esta história como ela deve ser contada. A coragem de Louise ao aprender a língua desconhecida e comunicar com estes extraterrestres é uma lição, diz Villeneuve: “Se tens medo de uma imagem que mostra o pior de um país, vai lá, bebe um café e vais ver pessoas normais que sentem amor e medo. A política é que é complicada, não são as pessoas”.

É uma mensagem adequada aos tempos, não porque se esteja a tentar forçar o marketing do filme à época que vivemos, mas porque a história e a solução que nos é apresentada no final são universais. “A história é muito mais adequada em termos de timing do que alguma vez poderíamos ter previsto”, explica o produtor Shawn Levy ao “The Hollywood Reporter”. “É sobre a suspeita e o medo do outro e a ultrapassagem desse medo com esperança, confiança, e sobretudo, com comunicação”.

(No dia em que são anunciados os vencedores dos Óscares, o Expresso recorda os artigos que publicou, sobre os principais filmes na corrida)