Cultura

Por favor, Senhor, deixa-me salvar mais um

A história incrível do soldado americano que participou numa das batalhas mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial e salvou 75 colegas sem disparar um único tiro valeu ao polémico Mel Gibson o perdão de Hollywood. “O herói de Hacksaw Ridge” está nomeado para seis óscares: melhor filme, melhor realizador, melhor ator, melhor edição, melhor edição de som e melhor mistura de som

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DE "O HERÓI DE HACKSAW RIDGE”

Corria o ano de 2006 quando Mel Gibson se tornou um célebre exilado do mundo de Hollywood, um ator e realizador outrora elogiado e então caído em desgraça. Em julho desse ano, o homem que dirigiu filmes tão célebres como “Braveheart” ou “A Paixão de Cristo” foi parado pela polícia quando conduzia em excesso de velocidade e alcoolizado, com uma garrafa de tequila ao lado. Quando os agentes o obrigaram a parar, Gibson deu início a um insultuoso discurso antissemita que cedo veio a público.

Os dez anos que se seguiram não foram os melhores para a carreira ou a reputação do realizador. Em 2008, chegava à imprensa uma gravação de Gibson, entretanto acusado de violência doméstica, a maltratar e ameaçar a namorada, Oksana Grigorieva. Desde então, por entre os poucos filmes em que participou, o seu nome passou a ser sinónimo de insultos ou de piadas negras, como aconteceu em sucessivas cerimónias dos Globos de Ouro apresentadas pelo comediante Ricky Gervais em anos recentes.

“Sou uma pessoa diferente em relação ao que era no passado. Mas o que permanece igual é que acho que sempre fui capaz de contar uma história”, dizia em outubro à “USA Today”, no início da sua ressurreição. Em entrevista com a “Deadline”, refletiu recentemente, aos 61 anos: “Trabalhei muito em mim próprio nos últimos dez anos. Fui deliberadamente discreto… Acho que a melhor maneira de alguém demonstrar que está arrependido é mudar e é isso que tenho estado a fazer e estou simplesmente feliz por estar neste ponto.”

Em 2017, parece óbvio que Hollywood está pronta para perdoar a Gibson os seus pecados e terminar o período de expiação que o realizador ainda passava. Para isso, foram precisos quase 11 anos de discrição da parte do ator e um guião que lhe chegou às mãos e que conseguiu voltar a fazer com que exiba o melhor dos seus talentos, o talento para cenas de ação, e assim renascer das cinzas.

Esse guião é o de “O herói de Hacksaw Ridge”, um épico de guerra ao mais perfeito estilo americano e patriótico, uma história de um herói humilde que participou numa das batalhas mais sangrentas do segundo conflito mundial. A humildade do homem que esteve lá em carne e osso, Desmond Ross, 71 anos antes de ser retratado no grande ecrã, está patente até no processo demorado que levou Gibson a conseguir concretizar um projeto há muito esperado.

Uma história de fé e heroísmo difícil de contar

Ao “The Hollywood Reporter”, Bill Mechanic, o antigo executivo da Fox que trabalhou com Gibson em “Braveheart” – o filme que lhe deu o óscar de melhor realizador em 1996 – e que se voltou a juntar a ele enquanto produtor para “O herói de Hacksaw Ridge” explica que, durante 60 anos, Desmond Ross não quis vender os direitos da história a ninguém, sem querer chamar para si atenções ou publicidade. Decidiu finalmente fazê-lo em 2001, aos 80 anos e seguindo o conselho de amigos, para o um documentário do realizador Terry Benedict.

Para os homens que acabam de levar, 16 anos depois, a história épica de Ross ao grande ecrã, os apelos da história contada então naquele documentário eram óbvios: uma história americana sobre um dos conflitos que fazem parte do imaginário do país sobre o conflito, americanos civilizados contra japoneses implacáveis, que metia fé e heroísmo, altruísmo e amor graças às atitudes de Ross, então médico de combate presente na linha da frente.

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No entanto, nem tudo era fácil nesta história, que se viu atrasada pelos problemas de financiamento e pela exigência da produtora Walden Media de que se adequasse a audiências a partir dos 13 anos (“vai ser violento e sangrento e é disso que precisa”, respondeu Mechanic na altura) e só pôde ser realizada graças ao financiamento do Governo australiano, país onde se passa a ação, tantos anos depois – e já depois da morte do verdadeiro Ross, aos 87 anos de idade, em 2006.

Valeu a pena teimar para contar esta história, porque ela é única – Ross não se limitou a ser um excelente médico de combate, mas o homem que ganhou a Medalha de Honra atribuída pelo Governo americano sem disparar um único tiro ou pegar numa arma. Parece – e é – incrível, mas Ross, um convicto membro da Igreja dos Adventistas do Sétimo Dia, era objetor de consciência, o que significava que a sua religião não lhe permitia que tocasse numa arma e muito menos tirasse a vida a outra pessoa, mesmo que se tratasse do seu inimigo e que houvesse uma previsível ameaça à sua vida em combate.

Uma mistura de sangue real e espetacularidade imaginária

O filme, que se divide entre uma série de cenas iniciais que estabelecem o caráter e a formação de personalidade do pacifista Ross e um conjunto de cenas tão intensas quanto longas que mostram a guerra na sua pior faceta, faz um bom trabalho a mostrar o que foi o combate de Hacksaw Ridge – a alcunha atribuída pelos soldados americanos àquela colina de Okinawa, numa batalha que tirou a vida a 2500 americanos e quase o dobro de japoneses -, também conhecido como a “chuva de metal”, ou não fosse o seu caráter violento e sangrento reconhecido pela História. Mas Chris Majewski, antigo membro da Marinha e agora diretor do museu da batalha de Okinawa, esclarece ao “The Guardian” que “O herói de Hacksaw Ridge” também tem grandes componentes da imaginação do realizador.

“O precipício no filme parece a muralha do set de ‘Game of Thrones’”, comenta Majewski, que quando faz visitas guiadas no lugar onde tudo aconteceu recebe reações de espanto por quem já viu o filme e imaginava o local bastante maior e mais adequado a aventuras épicas (ao jornal, Majewski detalha que não há registo de nenhuma visita de Mel Gibson a Okinawa e que a altura do precipício retratado é três vezes superior ao real, assim como a extensão da antiga linha da frente ganha o dobro do tamanho no filme).

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Depois de um penoso treino de iniciação, de provocações e reprimendas dos seus superiores (interpretados por Vince Vaughn e Sam Worthington, sargento e comandante da unidade em que Ross se insere) e até de um juízo em tribunal marcial, é finalmente naquela linha da frente e naquele precipício – bastante sobrestimados no filme, ao que parece – que Ross consegue finalmente a admiração e respeito dos colegas e, sobretudo, a sua gratidão.

Depois de se recusar sempre a tocar em armas e aprender a manuseá-las, Ross consegue de facto passar ao violento campo de batalha carregando apenas doses de morfina e de sangue para transfusão. E é assim que concretiza a façanha, como aconteceu na realidade, de transportar 75 dos seus colegas feridos para fora dali em segurança mesmo quando a ordem já é de retirada há horas, mesmo quando está na linha direta de fogo dos japoneses, mesmo quando está sem forças e, agarrado à sua Bíblia, consegue apenas repetir: “Por favor, Senhor, deixa-me salvar mais um”.

“O mundo está a pedir esta história”

Quando aceitou o papel, Andrew Garfield, o Ross na ficção – nomeado por este papel para o óscar de melhor ator – teve uma única preocupação. “Sentei-me com o Mel e falámos muito sobre o guião e a minha preocupação era: não quero que a mensagem deste filme seja que ‘o cristianismo é o único caminho’. E Mel concordou. Era vital para mim que transmitíssemos que a fé de Desmond era mais profunda do que qualquer dogma”, conta à “Time”.

Conseguiu fazê-lo com distinção – o seu retrato de Ross, cheio de compaixão e humanidade, ultrapassa as barreiras da religião e mostra um homem inacreditavelmente e genuinamente bom, o que valeu a Garfield, ator britânico que nesta temporada participa também no “Silêncio” de Martin Scorcese, a primeira nomeação da Academia. E ninguém melhor do que o filho de Desmond Ross para aprovar o trabalho que Garfield fez no grande ecrã, onde interpretou o seu pai: em declarações ao Expresso, Desmond Ross Jr. classifica a interpretação como “espetacular”, num retrato “preciso” que vai ao encontro das suas memórias e das “lições aprendidas [com o pai] durante a infância”. “Ele era um homem muito tranquilo, mas partilhava a sua história quando era chamado a fazê-lo.”

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De resto, sobre a experiência de gravar um filme com o homem que procurava o perdão dos seus pares, Garfield só tem elogios para Mel Gibson: “Ele é incrivelmente instintivo e emocional – é tudo sangue e instinto, nervos, músculos. Simultaneamente, tem um intelecto tremendo. É um líder incrível no sentido em que faz com que toda a gente saiba o valor que tem”.

Para Garfield, faz sentido interpretar nesta altura um homem que é a “personificação do amor” – os críticos acusam Gibson de fazer das cenas intensas e extremamente pormenorizadas uma glorificação da guerra. A “GQ” diz que é “um pouco próximo demais de pornografia de guerra”, mas não se esqueça o papel de Hugh Weaving, o pai com cicatrizes psicológicas da Primeira Guerra Mundial e um problema de alcoolismo que tenta dissuadir o filho, Ross, de se alistar, lembrando-lhe o lado negro de ser um sobrevivente. Garfield consegue mostrar, no meio de todo o sangue e balas – recorde-se a cena em que encontra um soldado japonês em estado de choque numa gruta e lhe dá morfina, tentando acalmá-lo – que o que quer contar é uma história que tem mais que ver com amor e compaixão pelo próximo.

“Acho que o mundo está a pedir esta história e essa é a maior gratificação. As pessoas conseguem sentir quando algo que as cura, que é bonito e é amoroso está a acontecer. Estas são as virtudes de que o mundo precisa agora”, diz o protagonista de “O herói de Hacksaw Ridge” ao “Los Angeles Times”, numa entrevista em que aproveita para relacionar as atitudes corajosas de Ross com as que acredita serem necessárias no mundo, numa altura de agitação política sobre a qual tem falado publicamente. “Espero que todos façamos aquilo que somos chamados a fazer. Ninguém pode resolver as coisas; é preciso que cada ser humano contrarie a maré. A América não vai ser destruída por causa do ego de um homem.”

(No dia em que são anunciados os vencedores dos Óscares, o Expresso recorda os artigos que publicou, sobre os principais filmes na corrida)