Cultura

Amor, honra, beleza, traição, dever: nós também somos o lixeiro negro ao fundo da rua

Em 1983, August Wilson, “o Shakespeare americano”, escreveu o argumento de “Fences” para mostrar aos americanos brancos tudo o que têm em comum com o lixeiro negro que trabalha ao fundo de cada rua. Em 2017, “Fences” passa dos palcos dos teatros para o grande ecrã – e está nomeado para quatro óscares: melhor filme, melhor ator, melhor atriz secundária e melhor argumento adaptado

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DE “FENCES”

A tensão e a dureza da história são palpáveis. A emoção que faz com que os olhos fiquem presos ao ecrã deve-se sobretudo ao grito gutural de Viola Davis, que interpreta o papel de Rose, e que vocifera a um Denzel Washington estupefacto enquanto as lágrimas correm pela cara abaixo: “Estive aqui contigo. Dei dezoito anos da minha vida para estar no mesmo lugar que tu”.

A cena, quando vista por inteiro, é ainda mais arrepiante e transmite toda a frustração que Rose vem acumulando no seu casamento de dezoito anos com Troy (Washington), um casamento “feliz mas com os seus defeitos, como todos os casamentos”, descreve Davis. Uma das razões que tornam o seu grito de desespero tão credível, além das interpretações magistrais dos protagonistas, é a prática que os dois têm – ou não tivessem desempenhado os papéis de Troy e Rose 114 vezes em palco, antes de chegarem ao grande ecrã.

Antes de ser um filme – e de merecer a nomeação de melhor filme para os óscares deste ano – “Fences” foi uma peça, uma das dez escritas pelo argumentista August Wilson e inseridas naquilo a que chamou “o ciclo de Pittsburgh”, composto por histórias situadas em todas as décadas do século XX e que têm o objetivo de mostrar o modo de vida dos negros na América.

“Aqui na América, os brancos têm uma visão particular sobre os negros. Acho que a minha peça lhes oferece uma forma diferente de olhar os americanos negros”, explicava Wilson à “Paris Review”. “Por exemplo, em “Fences” eles veem um lixeiro, uma pessoa que não veem realmente, embora o olhem todos os dias. Mas olhando para a vida de Troy, os brancos vão perceber que o conteúdo da vida deste lixeiro negro é afetado pelas mesmas coisas – amor, honra, beleza, traição, dever”.

Dentro do ciclo de Pittsburgh, “Fences”, provavelmente a peça mais conhecida neste conjunto, data de 1983, embora só em 1987 tenha chegado aos palcos da Broadway – e imediatamente valido prémios Tony aos protagonistas que originalmente protagonizaram este drama passado em Pittsburgh nos anos 1950, James Earl Jones e Mary Alice. No entanto, e embora desde os anos 1980 houvesse planos para transformar a peça em filme, uma exigência em particular o argumentista atrasou a conversão: é que o realizador responsável por “Fences” teria de ser um afroamericano.

“Isto não é para preencher quota nenhuma”

Ao “New York Times”, Denzel Washington garante compreender a exigência, uma vez que “as raízes desta peça estão especificamente na cultura afroamericana”, e recusa interpretar as quatro nomeações para os óscares de “Fences” – incluindo uma nomeação póstuma para August Wilson, que morreu em 2005, aos 60 anos - como uma espécie de quota ou de compensação pela polémica dos #OscarsSoWhite dos últimos anos, quando a Academia foi acusada de não premiar a diversidade: “Chamam a August Wilson o Shakespeare americano. Isto não é para preencher quota nenhuma”.

Apesar da morte precoce de Wilson, a sua vontade foi respeitada – em 2009, o produtor Scott Rudin, então dono dos direitos de “Fences” para o ecrã, falou com Washington para o convidar a realizar e representar a personagem de Troy no filme. Washington foi claro: primeiro, precisava de saber se funcionaria nesse papel em palco, e teria de ser posto à prova. Rudin fez-lhe a vontade e levou “Fences” de novo aos palcos, em 2010. O resultado foi esclarecedor: os protagonistas, desta feita Washington e a colega Viola Davis, voltaram a merecer os prémios Tony pelas respetivas interpretações.

114 atuações depois, Washington e Davis, assim como o resto do elenco – quatro dos cinco outros atores em palco estão presentes também no grande ecrã – estavam preparados para fazer de “Fences” um filme. E no entanto, apesar do esforço e das magníficas atuações do elenco, os maiores pecados de “Fences” encontram-se precisamente nessa adaptação – que o “The Guardian” descreve como um “impecavelmente respeitador registo gravado” da peça de teatro.

Monólogos, cenários e simbolismos próprios dos palcos de teatro

Os cenários são poucos – consistem quase exclusivamente no interior e no quintal da casa onde vivem Rose e Troy, casados há 18 anos e a criar um filho juntos, Cory (Jovan Adepo). Os longos monólogos (“A maioria dos papéis não tem cenas de 33 páginas, ou monólogos de quatro. É um papel difícil", assegura Davis ao “Los Angeles Times”) parecem, por vezes, saídos diretamente do teatro; os gestos e palavras frequentemente exagerados e dramáticos de Washington são muitas vezes inadequados ao grande ecrã, assim como os simbolismos e as metáforas constantes que aparecem seja fisicamente – no quintal onde constroem a “fence”, ou a “vedação”, para ali dentro manterem “todos os que amam” – ou nos diálogos, em que Troy insiste em fazer comparações entre as dificuldades da vida e de jogar basebol.

No caso de Troy, o basebol é uma obsessão muito específica da personagem, ou não fosse ele uma antiga promessa do desporto. Como percebemos cedo no filme, a vida não correu a Troy conforme planeado – depois de uma infância difícil e de uma série de más escolhas, a antiga estrela de basebol foi parar à prisão e saiu de lá com demasiada idade para perseguir o seu sonho. No entanto, agora, com a vida refeita ao lado de Rose e uma casa comprada com o dinheiro que o exército deu ao seu irmão, mentalmente afetado pela guerra em que batalhou contra os japoneses, Troy está plenamente convencido de que o racismo e a falta de direitos civis da altura motivaram a sua queda em desgraça no basebol, e o facto de nunca ter tido oportunidades.

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DE “FENCES”

São essas frustrações de uma vida em que trabalha para viver e em que faz questão de nada dever a ninguém que o tornam uma pessoa por vezes amarga, mas sobretudo egocêntrica e virada para si própria. Davis, no papel de Rose, oferece o equilíbrio – a personagem dela mostra uma mulher quase sempre conformada com a vida que tem, feliz no seu casamento, pronta a moderar os exageros de Troy e a responder-lhe à letra. “O maior desafio que tive de ultrapassar em 114 atuações foi o de não representar Rose como alguém que se sente engolida pela vida que tem. Eu queria mostrar uma mulher que ama o seu marido e o casamento que está a funcionar”, explica ao “Los Angeles Times”. Washington acrescenta: “Tens de acreditar que estas duas pessoas se amam. Se não acreditares, porque é que te vais importar com eles? Sem alegria, não há dor”.

“É aqui que a atriz e o papel se encontram”

É esta dinâmica do casal que se ama e que tenta resolver os problemas de uma vida pobre, com poucos meios, com muitas frustrações acumuladas ao longo dos anos, que Davis e Washington fazem maravilhas a retratar – mesmo quando finalmente Rose explode, no que Davis descreve como um daqueles “momentos puramente animalescos em que estamos a agir por instinto” (e Davis é tão credível que Washington relata, no “Graham Norton Show”, a reação de algumas pessoas à peça, levantando-se e incentivando a personagem a dizer tudo o que sente e a dar uma lição a Troy, sempre tão egocêntrico e frustrante para quem quer simpatizar com ele e com os seus problemas).

“Não há uma mulher que não tenha sacrificado muito pelo seu casamento. Nós somos as sacrificadas. (…) É muito difícil estar nas cenas, mas sempre ao fundo; fazer parte de algo, mas sem fazer parte”, diz Davis sobre o papel que lhe deu uma nomeação para o óscar de melhor atriz secundária – é a primeira mulher afroamericana a acumular três nomeações da Academia – e que muitos dizem merecer uma nomeação na categoria de melhor atriz principal, igual à do parceiro, Washington, nomeado pela Academia pela sétima vez numa carreira consensual. É o próprio que diz sobre ela ao “New York Times”: “É aqui que a atriz e o papel se encontram. Espero que ela tenha outros grandes papéis. Mas este é o tal”.

Para aquela cena tão marcante, Viola Davis precisou de 23 takes – embora já a tivesse representado tantas vezes em palco, com um elenco bem conhecido (“Somos uma banda pequena. Conhecemos bem a música”, comenta Washington). “É difícil interpretar alguém que tem uma vida inteira a acontecer dentro de si o tempo todo e não está a verbalizá-la”, explica Davis.

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DE “FENCES”

Esse é o poder da história: eles somos nós

Com o sucesso de “Fences” junto do público e da Academia – Davis parece ser a favorita na sua categoria; o mesmo não acontece com Washington, que ainda assim levou o prémio de melhor ator para casa nos SAG Awards, admitindo que estava convencido de que o galardão seria entregue a Casey Affleck – pode tornar-se realidade a vontade de Washington de levar as restantes nove peças do ciclo de Wilson ao grande ecrã, com as expectativas de que estas mostrem uma nova perspectiva sobre o modo como (ainda) vivem os negros na América.

“[Estas personagens] não pedem desculpa. Têm defeitos. São humanas. Temos de lidar com elas. E esse é o poder da história: eles somos nós”, garante Washington, citando a colega Davis. É ela que explica ao “The Hollywood Reporter”, sobre a importância do drama de “Fences”: “Penso que às vezes o que as pessoas não percebem sobre nós, negros, é que somos complicados, somos confusos, que fazemos o melhor que podemos com o que temos. Somos postos no mundo exatamente como vocês. Só que há circunstâncias nesta cultura que não impostas nas nossas vidas e contra as quais temos de viver”.

(No dia em que são anunciados os vencedores dos Óscares, o Expresso recorda os artigos que publicou, sobre os principais filmes na corrida)