Jornal do Algarve

As histórias que envolveram a atribuição do Nobel a Saramago

  Pilar del Rio revelou na última semana em Vila Real de Santo António algumas das histórias relacionadas com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. A viúva do escritor, e presidente da Fundação José Saramago, esteve na cidade pombalina na sessão de abertura do curso que pretende promover a reflexão e o debate dos valores na obra literária de Saramago

Domingos Viegas (Jornal do Algarve)

 

No dia 07 de outubro de 1998, Pilar del Rio, hoje viúva de José Saramago, encontrava-se na sua casa, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, quando recebeu um telefonema de um amigo, professor na Suécia e ligado à Academia Sueca, que lhe perguntou por José Saramago. Pilar respondeu-lhe que o escritor se tinha deslocado à Feira do Livro de Frankfurt, mas que no dia seguinte já estaria de regresso. No entanto, este telefonema deixou Pilar intrigada, contou a própria esta segunda-feira em Vila Real de Santo António, durante a sessão inaugural do curso "Aula José Saramago", que decorrerá naquela cidade e em Huelva durante os próximos sete meses.

"Porque é que queres saber onde está?", questionou Pilar. A resposta continuou a não ser muito convincente: "Nada de especial. É que amanhã é revelado o nome do Prémio Nobel da Literatura. Era só para falar com ele". Mas Pilar continuou a insistir: "Desculpa! O Prémio Nobel é atribuído todos os anos e nunca ninguém telefonou por causa disso. O que é que se passa?".

Perante a insistência, o interlocutor acabou por revelar aquilo que, supostamente, não podia: "Por favor, não digas a ninguém porque é o meu posto de trabalho que está em risco. Vão dar-lhe o Prémio Nobel e pediram-me para tentar saber, discretamente, onde é que ele está porque lhe vão telefonar amanhã, quinze minutos antes do meio-dia. Por favor não digas a ninguém. Nem a ele. Mas faz com que não saia do hotel."

Pilar de Rio conta que ficou estupefacta e sem saber o que fazer. Tinha que convencer José Saramago a não embarcar no dia seguinte no voo que já tinha reservado, mas não lhe podia explicar o motivo: "Não dormi durante toda a noite, a pensar na forma de conseguir que se mantivesse no hotel em Frankfurt para receber o tal telefonema. Não lhe podia contar o motivo, mas ao mesmo tempo pensei que o deveria preparar psicologicamente para receber a notícia", revelou.

E acabou mesmo por lhe telefonar: "Telefonei-lhe e disse-lhe que era melhor não sair do hotel porque ia ser revelado o nome do Prémio Nobel da Literatura e que talvez fosse ele o escolhido. Mas a sua resposta deixou-me de rastos: 'O Prémio Nobel? A mim? Não penses nisso. Fico aqui, não ganho o Nobel e ainda por cima perco o avião. Nem pensar'", revelou Pilar del Rio à plateia que encheu por completo a Biblioteca Municipal Vicente Campinas.

O nome do Prémio Nobel da Literatura acabou por ser anunciado sem que a Academia Sueca conseguisse contactar Saramago que, entretanto, já estava no aeroporto preparado para embarcar no avião que o levaria de regresso a Espanha. Porém, Saramago acabaria por não sair de Frankfurt.

 

"Deram-me o Prémio Nobel. E quê?"

A novidade chegou primeiro à comitiva portuguesa que se encontrava na referida feira do livro, onde, entre outros portugueses, se encontravam Francisco José Viegas e a escritora algarvia Lídia Jorge. Alguns dos membros da representação portuguesa, entre muita emoção e algumas lágrimas, partem em direção ao aeroporto para tentar impedir o embarque. Mas a reação dos funcionários do aeroporto foi a mais natural perante tal pretensão: "O senhor já embarcou e não é possível."

"Tiveram que lhes explicar a situação e, então, aceitaram entrar no avião e dizer a José Saramago para regressar", recorda Pilar del Rio. O resto da história já é sobejamente conhecido. Acabou por ser uma assistente de bordo da companhia de aviação Ibéria a comunicar a Saramago que lhe tinha sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura.

Saramago regressou pela mesma manga que tinha embarcado e deslocou-se, sozinho, até ao edifício do aeroporto, com a gabardine no braço e a pequena mala que tinha levado para um dia de estadia. Quando deparou com o alvoroço e com as manifestações de alegria que se viviam no aeroporto exclamou a já famosa frase: "Deram-me o Prémio Nobel. E quê?". Era o dia 8 de outubro de 1998. Fez esta segunda-feira 14 anos.

E foi precisamente esta segunda-feira que arrancou em Vila Real de Santo António o curso "Aula José Saramago", um projeto de cooperação transfronteiriça de âmbito cultural que promove a reflexão e o debate dos valores na obra literária de José Saramago. O curso decorre simultaneamente na Biblioteca Municipal Vicente Campinas e na Biblioteca Provincial de Huelva, em Espanha.

As aulas são dinamizadas por Diego González Martín, licenciado em Ciências da Educação, um amante e

estudioso da obra de José Saramago, membro fundador da Associação Cultural Crecida, de Ayamonte, que se disponibilizou, desinteressadamente, a levar a cabo a iniciativa durante os próximos sete meses.

Aliás, este facto foi destacado na sessão de abertura pelo vice-presidente da autarquia vila-realense e vereador da Cultura, José Carlos Barros, que se mostrou, também, bastante satisfeito pelo número de pessoas que assistiu ao evento: "É muito agradável que, mais uma vez, esteja reunida tanta gente com o pretexto dos livros".

O curso irá dedicar-se ao estudo de nove obras de Saramago, até maio de 2013. Da lista de livros em debate fazem parte "Deste mundo e do outro", "Levantado do chão", "Viagem a Portugal", "O ano da morte de Ricardo Reis", "O evangelho segundo Jesus Cristo", "Caderno de Lanzarote", "Ensaio sobre a cegueira", "Ensaio sobre a lucidez" e "O caderno 2".

 

Uma das 100 melhores obras da literatura mundial

Recentemente, o jornal britânico The Guardian considerou "Ensaio sobre a cegueira" como uma das 100 melhores obras da literatura mundial de sempre. O diário elaborou um inquérito para criar o top-100 da literatura de todos os tempos e, além daquela obra de Saramago, está incluída apenas mais uma com origem na Península Ibérica: "Dom Quixote", do espanhol Miguel de Cervantes.

 (mais informação em www.jornaldoalgarve.pt)