&conomia à 2ª

O berço como CV

Se há algo que a nossa sociedade humana deve ter como prioridade é a ideia de que ninguém, mas mesmo ninguém, seja prejudicado, como refere a Declaração Universal dos Direitos do Homem, “raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”, pelo que a pobreza do berço não pode ser lastro que perpetua ciclos de pobreza, que não permite a mobilidade e ascensão social.

Bem sei que é quase utopia. Quem nasce nos EUA, em plena cidade de Nova Iorque, numa família de classe alta, tem à partida uma vantagem sobre quem nasça no Burundi numa família com menos posses. Isto é uma realidade inegável. E também uma enorme desigualdade.

Se a diferença mundial existe, em Portugal também é uma realidade nacional. A realidade do acesso a escolas, viagens, educação, conhecimento e contactos, está no Índice de Gini do nosso país bem demonstrado o quão assimétrica é a nossa distribuição de rendimentos.

Um dos grandes desafios que temos, como país, é garantir que ninguém fica cada vez mais para trás.

E é aí que o Estado entra. Aí. Não para criar uma igualdade nivelada por baixo, mas para garantir igualdade de oportunidades. Sobretudo na educação. Está aí a chave de potenciar cada pessoa que nasça em Portugal. Não, o CV não pode vir feito do berço. Tem de vir do conhecimento adquirido, da capacidade intelectual, do esforço, do trabalho que cada um faz, da sua criatividade.

Claro que se pode afirmar que isto, da meritocracia, é tudo muito bonito, mas quem tem dinheiro coloca o filho num colégio privado e também consegue enviar os filhos para Universidades em Londres ou Boston. Certo. E não há forma de o mudar, nem devemos, sob pena de repetirmos as revoluções do passado, que, como a História nos ensina, trocaram uma elite burguesa ou da nobreza por uma elite de apparatchik. Mas cá, no nosso território, podemos e devemos apostar, com reformas incrementais e não revolucionárias, nas nossas escolas e Universidades. Com programas educativos avançados. Até ao nível de Harvard ou Oxford. Porque não? Não temos nós capacidade de aprender com os melhores lá fora e colocar em prática cá?

Não estou a condenar, muito menos a menosprezar, o que já cá existe. E de muita qualidade. A Nova SBE, o Instituto Superior Técnico, a FEUP, a FDL, a FEP ou o ISCTE já dão cartas em muitas áreas. E estou a falar de escolas públicas. Mas também ao nível do Ensino Secundário existem algumas boas escolas. Mas são poucas. E merecem uma reforma profunda feita com ponderação, com tempo, pois depressa e bem não há quem…

É essa a desigualdade em que temos de nos concentrar. Apostar forte no ensino e dar liberdade a cada escola para promover outras formas de ensino, há competências nucleares, mas os programas do Ministério da Educação não podem ser o ponto único, sem deixar espaço aos outros elementos da aprendizagem. É a diferenciação e a competência que serão o crivo no mercado de trabalho, por exemplo. Mais do que o berço ou um sonante apelido. De que me serve um nome sonante se não é produtivo, se não atinge o expectável?

Neste mundo onde a suposta elite tem pés de barro e muitos esqueletos no armário, temos de pôr o foco em formar pessoas capazes de construir um futuro de qualidade ao invés de levá-las a viver do passado. Esse tempo já foi. Já era.

E sim, também não podemos ignorar o tema, que tem marcado a agenda mediática nas últimas semanas: Luanda Leaks. Nenhum filho pode ser beneficiado pelos cargos que os pais têm. Não podem existir regimes de excepção às práticas nepotistas. Nem pode alguém ser prejudicado por ser filho dos seus pais, obviamente. Todos devem ser tratados de forma igual. Porque todos somos iguais. Com respeito e abertura. Para que, em liberdade, cada pessoa tenha oportunidade de fazer o que bem entender. Não pode ser o berço que conta.