Matemática

A Engenharia nas Grandes Escolas francesas

Sociedade Portuguesa de Matemática

O Ensino Superior francês possui uma característica curiosa: os cursos de Engenharia encontram-se totalmente desligados das Universidades. Após uma formação de dois anos realizada numa Classe Préparatoire - dedicada exclusivamente ao estudo da Matemática e da Física - os futuros engenheiros ingressam numa Grande École, onde completarão, ao fim de mais três anos de estudos, a sua formação. As provas escritas dos exigentes concursos de admissão a estas escolas consistem grosso modo em três exames de Matemática e três exames de Física, que se sucedem durante cerca de quatro dias. Sem primeiras e segundas chamadas, épocas de recurso ou épocas especiais, o destino dos estudantes fica traçado após as provas orais que decorrem cerca de um mês depois e para as quais apenas são convocados os melhores candidatos da componente escrita do concurso. O leitor interessado no teor destas provas poderá consultar uma selecção aqui. Ficará provavelmente surpreendido com o volume de conhecimentos e a destreza científica que é possível adquirir em dois anos de trabalho sério e dedicado.

As raízes históricas das Grandes Écoles remontam ao século XVI, com a criação pelos jesuítas da Maison des Arts et Métiers. No século XVIII são fundadas a École Royale des Ponts et Chaussées e a École Royale des Mines. Alguns anos após a Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte presidirá à reformulação daquela que é ainda hoje considerada a Grande Escola de referência: a École Polytechnique. Em 1829 é criada a École Centrale. Hoje existem cerca de 90 Grandes Écoles de Engenharia que se apoiam no princípio do Engenheiro com treino avançado em Matemática e em Física.

Naturalmente, não existem Grandes Écoles sem Classes Préparatoires. Estas surgiram durante o século XVIII e eram frequentadas por alunos interessados em seguir carreiras no Génio Civil, na Artilharia ou na Marinha. A sua entrada estava condicionada a um concurso instituído pelo Marquês de Vauban. Nas suas palavras, "Ninguém deve ser admitido com base em recomendações ou favores. É fundamental que apenas se tenha em consideração o mérito e a capacidade dos candidatos". Os aspirantes deviam prestar provas de Matemática perante um membro da Academia das Ciências. Nos anos que precederam a Revolução Francesa, o júri destes concursos era presidido por Gaspard Monge e Simon Laplace.

Hoje em dia, a vida de um aluno de uma Classe Préparatoire é algo atribulada. Para além das cerca de 40 horas de aulas semanais repartidas por seis dias da semana, realizam cerca de três exames escritos por mês, com uma duração nunca inferior a três horas cada um. São interrogados oralmente durante cerca de duas horas por semana, por uma equipa externa à instituição, que assim verifica a consolidação da aprendizagem de forma praticamente contínua no tempo. Muitos alunos optam por frequentar estas classes preparatórias em regime de internato, a fim de não perderem tempo com deslocações e outras distracções. Afinal de contas, passados dois anos, há que estar o melhor preparado possível para os concursos, a concorrência será certamente muito dura!

Se atendermos às conquistas da engenharia francesa no decurso do século XX, fica claro que a estratégia de apostar em engenheiros com grande preparação em Matemática e em Física é uma estratégia de sucesso. Ao sistema das Grandes Écoles não é certamente alheia a capacidade de inovação tecnológica francesa. Citemos a título de exemplo, na indústria automóvel e na indústria aeronáutica, a Citroën, a Peugeot, a Airbus, a Dassault com os seus míticos caças Mirage, a Aérospatiale, com o primeiro avião de passageiros a jacto Caravelle, o primeiro avião de passageiros supersónico Concorde (em parceria com a britânica B.A.C.) e o foguetão Ariane que disputou taco a taco com o Space Shuttle a corrida ao espaço dos anos 80, tendo acabado por conquistar a liderança deste mercado após a trágica explosão do Challenger em 1986. Noutros sectores, as plataformas petrolíferas desenhadas pela Bouyghes ou as inovações da Cogema, da Framatome e posteriormente da Areva em matéria de design de reactores nucleares fizeram destas companhias referências mundiais nos sectores da engenharia civil e da energia nuclear, respectivamente. Se juntarmos a esta lista os reconhecidos desenvolvimentos franceses no sector das telecomunicações, do génio civil ou o comboio de alta velocidade T.G.V., produzido pela Alstom, facilmente se coloca a engenharia francesa entre as mais avançadas da actualidade. Por outro lado, os oito prémios Nobel em Física e as dez medalhas Fields com que foram galardoados ex-estudantes, professores e investigadores da École Normale Supérieure (Grande École vocacionada para a ciência fundamental) não encontram paralelo em qualquer outra Universidade do mundo. Aquando das negociações da Reforma de Bolonha do Ensino Superior, a posição francesa foi clara: façam-se as experiências pedagógicas nas nossas Universidades, O sistema das Grandes Écoles é para se manter inalterado, pois constitui um pilar estratégico de que não abdicamos.

Em Portugal, o conceito do engenheiro com sólida formação em Matemática e em Física não parece colher muitos adeptos, chegando a ideia a suscitar mesmo algum desprezo em sectores ligados às formações em Engenharia. Esta situação agravou-se ainda mais com a reforma de Bolonha - que veio reduzir significativamente o número de horas lectivas destas disciplinas - e com o declínio do ensino da Matemática e das Ciências a que se tem vindo a assistir no Básico e do Secundário. O ataque ideológico de que tem sido alvo o conhecimento científico em detrimento de um conhecimento supostamente mais prático e com "aplicabilidade imediata", materializado nas famosas "competências", tem conseguido relegar para segundo plano a preparação teórica dos alunos nas áreas fundamentais do conhecimento. Há até quem chegue a defender que a Matemática e a Física devem ser leccionadas, nas nossas escolas de Engenharia, por não-especialistas que seriam supostamente mais "conhecedores" das suas "aplicações". Toda esta dinâmica levou infelizmente algumas escolas de referência a desistir de ensinar Análise Matemática aos seus alunos, substituindo-a, oficial ou oficiosamente, pelo seu parente pobre, o chamado Cálculo. Como em muitos outros aspectos da nossa sociedade, o investimento que não parece oferecer uma vantagem imediata tende a ser descartado. Naturalmente, todos estes factos não auguram nada de bom para o futuro científico e tecnológico do nosso país.

Versão publicada originalmente por Filipe Oliveira, vice-presidente da SPM, no blogue De Rerum Natura, a 13 de Novembro de 2010.