António de Castro Caeiro

Entre o fim de cada dia trabalho e o início de um outro dia, antes da hora do jantar, há tempo disponível para o que for. Essa hora de fim do dia, antes do jantar, se não houver nenhuma urgência, custa a passar. É um tempo de viragem. Estamos entregues a nós próprios. Temos de ocupar esse tempo. É um tempo de regresso a si, de desinvestimento na tarefa. Não é necessariamente um tempo de descontracção e de relaxamento. Podemos ter uma actividade que nos dê prazer, que preenche o tempo. Mas podemos também estar à espera da hora do jantar, ou das notícias, numa travessia do tempo difícil de fazer-se.

Aí há uma espécie de hiato de tempo. Quando não há nada agendado, temos de fazer tempo como quer que seja. Depois, há como que uma fluidez no caudal do tempo que nos leva nas horas. Já são dez horas. Não se percebe como se mergulhou no tempo e se foi fluindo das sete às dez, passando pelas horas dramáticas das sete às nove. A que é que corresponde essa dificuldade do tempo que custa a passar? Há uma espécie de reserva do tempo a admitir-nos, uma entrada proibida, uma interdição e impermeabilização do tempo.

Não há nada que se consiga fazer: ouvir música, ver um programa na TV, passear, ler. Ficamos sem recursos para invadir e ocupar o tempo num instante. Não há sentido nem direcção ou orientação, para mergulharmos na corrente do tempo e sermos levados pelos conteúdos sequencialmente distribuídos, como tinha acontecido ao longo do dia. A partir de determinada altura somos puxados por conteúdos que se organizam sequencialmente a partir da sua própria agenda. Se dávamos conta da impermeabilidade, da vedação do tempo, tal que não conseguíamos mergulhar nele para irmos na corrente, agora percebemos que mergulhamos e somos levados até às dez ou às onze.

Mas não é necessariamente de conteúdos o que aqui se trata. Pode perfeitamente haver uma acomodação da inércia do movimento que continua quando eu já parei, deixando sem conseguir aterrar na situação em que eu agora me encontro. Continuo ainda com os problemas do trabalho, programado para resolver questões que agora não são determinantes, estou ainda na sombra projectada pela situação do trabalho. Não desliguei. Levo comigo o dia todo. E por outro lado não consigo constituir outro horizonte de vivência, habituar-me à situação do serão, da saída do trabalho, de o ter largado. Faço tudo e mais alguma coisa e é como se houvesse um campo de forças que me repele.

Quando dou por mim a ser puxado numa sequência de tempo, não posso dizer verdadeiramente que é porque um conteúdo passou a ser interessante, quando os outros não eram. Pode ser o mesmo conteúdo ou os mesmos conteúdos que antes estavam já a actuar e que se tornaram interessantes. O que sucede é que os resquícios do dia útil acabam por ser lavados e há uma disponibilidade para programar o serão, ater-me aos conteúdos que aí estão e que são os que estavam: há o conteúdo ? x, depois, y e z e constitui-se uma sequência temporal.

O que sucede nesse hiato? Essas horas podem custar a passar por causa de uma desocupação de mim. Não se inaugura nenhuma outra situação. Não estou disponível para estar em casa. Não consigo estar em mim e não estou fora de mim. Aquilo que me levava nas horas foi interrompido. A minha maneira de estar ao serão é diferente da minha maneira de estar no trabalho, porque formalmente se tratam de duas maneiras de ser completamente diferentes. E nada muda se trabalharmos a partir de casa. Aí até podemos ver o contraste. Não que até essa hora estivéssemos numa divisão do gabinete e depois na sala de estar ou na cozinha. O que muda é a vivência concreta do tempo em duas situações completamente diferentes.

Agora, estou presente em salas com peças de mobiliário. Estou com outros conteúdos: estou como quem está na sua sala de estar, mas eu não consigo estar lá. Não há nada que me entusiasme. Eu estou desocupado e não sou eu na minha maneira habitual de estar interessado com o que estou a fazer: estou expropriado da maneira como habitualmente me encontro, guiado pelas tarefas, pelo exercício de competências, na situação em que se desenham problemas e programas de resolução e de solução.

Na sala de estar eu estou sem fazer nada e nada me interessa. Nada me descansa, não consigo estar em sossego, nem ver nada, nem ouvir nada. Procuro inventar tarefas e não consigo ocupar-me. Estou impropriamente em mim.

Convivemos com maples, sofás, mesas, cadeiras, quadros, televisões, aparelhagens de som, rádio, livros. Mas não fazemos nada disso. A situação em que nos encontramos é de impermeabilização. Não estamos em nós, estamos expropriados da maneira de ser da zona de conforto, a que estamos habituados. Aí pode falar-se de inautenticidade num determinado sentido, expropriação, de um vivermos de um modo inqualificável: quem sou eu enquanto me encontro na sala de estar?