O avesso do avesso

Falemos de liberdade

Mariana Mortágua

Esta não é a primeira vez que escrevo sobre a TAP, cujo carácter, público e soberano, como deve ser o de todas as empresas estratégicas, provou ser mais resistente que qualquer governo em Portugal.

Os argumentos são conhecidos e claros para todos os que veem no Estado a capacidade e o dever de gerir instrumentos essenciais para as contas públicas, para a economia e para a coesão social. Apesar de todos os vaticínios de morte, a TAP soube crescer, desenvolver-se, aproximar Portugal do mundo, e os emigrantes por esse mundo fora de Portugal. É uma das maiores exportadoras portuguesas e, muito provavelmente, a única que chamamos quando é preciso resgatar cidadãos nacionais em risco.

Se mais não houvesse, e mesmo que nada disto fosse tão óbvio, bastaria olhar para a PT para sentir o sabor amargo das promessas não cumpridas das privatizações. Mas, se até isto for pedir demais, foquemo-nos apenas na hipocrisia de um governo que usa e abusa do desespero daqueles que empurrou para emigração para atacar uma greve, legítima, de quem, todos os dias, constrói a TAP. O mesmo governo que agora a entrega a privados sem se preocupar em garantir a continuidade das rotas que servem os emigrantes que tanto dizia defender. Foquemo-nos apenas na fraqueza de um governo que acede, vejam lá, a manter os postos de trabalho e respeitar os acordos de empresa, mas só por um período limitado de tempo, e só enquanto não vender o resto da sua participação. Foquemo-nos apenas no despotismo de um governo que se sente autorizado, legitimado, a garantir alguns direitos aos trabalhadores que cederam à sua chantagem, que foram obrigados a negociar a venda do seu posto de trabalho, e a negá-los aos restantes, aos que escolheram resistir. Sim, foquemo-nos nisso.

Ontem, em Conselho de Ministros, o governo aprovou o caderno de encargos da tão polémica privatização da TAP. Entre vários outros aspetos, o executivo incluiu uma precária garantia de inexistência de despedimento coletivo durante dois anos e meio, bem como da manutenção dos acordos de empresa por 36 meses. Essa garantia só abrange, no entanto, os sindicatos que desistiram da greve convocada no final do ano passado, exatamente para impedir o processo de privatização, e aceitaram negociar os seus termos. Na prática, e segundo as declarações dos próprios sindicatos, esta garantia politicamente seletiva (e, ao que tudo indica, ilegal e inconstitucional), afeta apenas 40% dos trabalhadores da empresa. 

Foquemo-nos assim num governo que concede e nega direitos consoante a sua vontade, num governo que faz da divisão e oposição dos trabalhadores a sua força para mandar. Foquemo-nos nisso e talvez nos venham à memória recordações de outros tempos e, com elas, as ganas de travar esta privatização que não é só contra os trabalhadores da TAP, ou contra os emigrantes, ou contra a economia. Aquilo que ontem foi anunciado por Pires de Lima, na voz de Sérgio Monteiro, é uma afronta a tudo aquilo que nós, os nossos pais, os nossos avós, batalhámos para conquistar, é uma afronta à liberdade de sindicalização, à liberdade de qualquer trabalhador vinculado a um sindicato que se manteve firme na oposição. É uma afronta à democracia.