O avesso do avesso

Exército de invisíveis

Mariana Mortágua

São cinquenta e nove mil e cento e cinquenta e oito pessoas.  

É impossível que não se tenham cruzado com elas. Estão em todo o lado e fazem de tudo. São os contínuos das escolas, as vigilantes nas repartições públicas, os funcionários das IPSS e as auxiliares de ação médica em centros de saúde. Confundem-se com os restantes trabalhadores, e só poderia ser assim. Desempenham as mesmas funções, trabalham as mesmas horas, garantem a mesma dedicação. Mas não é isso que as torna invisíveis, é outra coisa. Neste caso a invisibilidade vem com a diferença. 

E a diferença é que estas quase 60 mil pessoas não recebem um salário, não têm férias, e não podem desempenhar a mesma função durante mais de 12 meses, mesmo que o queiram e saibam fazer, e mesmo que o posto de trabalho que ocupam seja permanente. Na realidade, estas pessoas trabalham, mas não são trabalhadoras. São beneficiárias do subsídio de desemprego ou do RSI. Em troca da prestação (que é sua por direito e para as qual contribuíram, de forma direta ou indireta) acrescida de 83€ e subsídio de alimentação e transporte, o Estado usa estas pessoas para suprir as necessidades de uma Administração Pública cada vez mais depauperada. Quando não usa entrega-as às IPSS, pela módica quantia de 41,5€ por mês (já que metade dos 83€ são subsidiados pelo Estado), para que estas as usem.

Sob uma capa demagógica de "ocupação" e "reintegração" daqueles que, até em alguns casos, foram despedidos pela própria Função Pública, ou que, em outros, há anos que desesperam por um emprego, o governo criou e mantém um exército de invisíveis. Um exército de gente a quem o Estado nega um emprego para que depois possam trabalhar, para esse mesmo Estado, por um salário inferior ao salário mínimo nacional. Um exército de gente que, apesar de não ter um emprego, sai das estatísticas do desemprego, para que o governo possa apregoar o sucesso da sua estratégia económica.

Não são os únicos. Há mais invisíveis, apagados das estatísticas. São os 232 100 em situação de subemprego declarado, os 302 100 que deixaram de procurar, mais os 23 800 inativos disponíveis. Há ainda as 33 926 pessoas que integraram cursos de educação e formação para adultos. Todas estas pessoas deixaram de ser consideradas como 'desempregadas'. Se o fossem, a taxa de desemprego estaria acima de 25%.

Há, em cima destes números, inúmeros programas de estágios e similares, pagos pelo Estado a empresas privadas, mesmo que estas tenham condições para contratar gente, mesmo que estas não ofereçam quaisquer garantias da manutenção do posto de trabalho futuro.

Não está aqui em causa a existência de medidas de apoio ao emprego. O que está em causa, sim, é o aproveitamento e exploração, por parte do Estado, da situação de pobreza e desemprego de milhares de pessoas a quem é negada a possibilidade de o ter. O que está em causa é o aproveitamento indiscriminado de medidas de formação e estágios para ocultar a taxa de desemprego real. O que está em causa é a utilização de milhões de euros de fundos públicos para financiar trabalhos e estágios precários em empresas que deveriam e poderiam estar a criar empregos com direitos. O que está em causa é o escrutínio democrático desta caixa negra que se tornou, não só a suposta "política de emprego" em Portugal, como a própria taxa de desemprego. Que país somos afinal, aquele com 13,1% de desemprego, como diz o Governo, ou o outro, que, para além de ter perdido 350 mil pessoas nos últimos três anos, alberga 25% de desempregados?