Juntos, tocamos a lua

Que grande Pichincha! 4.800m de vulcão, anjinhos e alcachofras

Objetivo de hoje: um dos vulcões na região de Pichincha a sul de Quito, mais exatamente o Guagua Pichincha: 4.800m.

O caminho de carro até ao início da caminhada é deslumbrante, estamos literalmente numa encruzilhada de vulcões. Somos brindados com uma manhã solarenga e os campos verdejantes desenham-se em quadrados encosta abaixo com uma inclinação impossível. A paisagem dos altos Andes materializa-se finalmente perante os nossos olhos.

Começamos a caminhada num trilho largo, na verdade uma estrada rural com grandes sulcos só suplantáveis de jeep ou pick-up. Mas para quem como nós só usa as pernas é um luxo e favorece a conversa. A pouco e pouco vai-se revelando a vida do nosso guia Marcial, um verdadeiro romance latino-americano.

Aos 11 anos de idade sai de casa e vai para Puyo, na selva equatoriana, em busca de trabalho. Recrutado no mesmo dia em que aí chega por um capataz que nele viu metade do custo de um homem feito, passa os 3 meses seguintes a produzir caixas de madeira para acondicionar tomate. O regresso a casa leva-o para um colégio de padres, onde acaba o secundário. De caráter rebelde, julga não valer a pena seguir o exemplo do legendário Frei Almeida, o monge que, incapaz de resistir aos encantos das aldeãs, se escapulia do mosteiro por uma janela alta apoiando-se no ombro do Cristo crucificado na capela-mor. Vira as costas a uma carreira eclesiástica e abraça um grupo de música andina, com o qual ciranda de guitarra ao ombro até que um encontro com as revolucionárias FARC na Colômbia o devolve à origem. Não chegamos a saber se todos os elementos do grupo conseguem fugir com vida do acampamento das FARC na selva porque se impõe uma paragem de descanso e entretanto se torna visível o refúgio de montanha que constitui o nosso primeiro objetivo.

Ao fim de 3 horas de caminhada chegamos ao refúgio e somos saudados pelo corpulento vigia de clara ascendência inca. O refúgio pertence à Proteção Civil e alberga normalmente os geólogos que vão monitorizar os sismógrafos e outros aparelhos disseminados pela região para vigiar a intensa atividade vulcânica.

O teto enegrecido pelo fumo da salamandra quadra na perfeição com os elementares beliches de madeira que mais parecem estruturas de brincar retiradas do Parque Infantil do Alvito. A longa mesa em metal ostentou há muitos anos uma demão de tinta laranja mas encontra-se agora tão descascada como as desgraçadas bordas das janelas. Nada que nos impeça de devorar o nosso farnel em alegre cavaqueira.

Preparamo-nos para retomar a caminhada e lançar-nos ao último troço para a conquista do cume. Agora há nuvens por todo o lado, a temperatura caiu significativamente. Há que vestir camisolas, pôr gorros e calçar as luvas.

O troço final é, como seria de esperar, íngreme. A diferença face ao Pasochoa é a quantidade de rochas e cascalho. Escorregamos, sempre a olhar para trás não vá uma pedra atingir involuntariamente quem nos segue. Atravessamos as primeiras passagens com precipício, do lado esquerdo, duzentos metros em linha reta. As nuvens, no entanto, disfarçam a profundidade e não são visíveis mais do que 50 metros, o que sempre ajuda. Serpenteamos em fila indiana, próximos uns dos outros.

Ao fim de uma hora avistamos um poste em cimento. De forma tosca tem escrito na vertical em tinta branca: 4.781m. Chegámos!

Segue-se o costumeiro festejo no meio das nuvens. O segundo objetivo está cumprido! Esta é sem dúvida uma Pichincha que nos agradou especialmente.

A descida é rápida e temos como brinde a companhia do cão do refúgio que nos segue todo o caminho até ao carro. Duas horas de estrada e chegamos a Machachi, onde vamos pernoitar.

O nosso albergue é um cruzamento entre uma estalagem e um mini-resort carenciado. Ficamos nuns bungalows no jardim, encostados à estrada nacional. O jantar é servido na casa principal à qual só se chega através de um slalom entre vários laguinhos ornados com patinhos de cerâmica e magníficos flamingos de bico apontado à lua. A casa desenrola-se em torno de um pátio espanhol de tipo colonial e a decoração interior é esmagadora. A parede do fundo da casa de jantar ostenta uns anafados anjinhos em talha que já foi dourada nos bons velhos tempos, ladeados por uma jarra contendo um gigantesco ramo de alcachofras rosa (ou serão rosas do tamanho de alcachofras?), rematada com uma estupenda grafonola evidenciado o interesse dos proprietários pelas antiguidades.

Estamos cansados mas contentes pelo facto de a aclimatação estar a prosseguir a bom ritmo. Amanhã espera-nos um dia menos exigente: subida até ao refúgio de Illiniza, a 4.700m. O próximo grande desafio é na 5a-feira: a ultrapassagem dos 5.000m com a escalada do Illiniza Norte.