Voo até Madrid sem história. Descolagem de Madrid seguida de meia-hora de turbulentas sacudidelas. Moderado pânico na cabine. Os VdAlpinistas, imperturbáveis, afagam a cabeça das crianças e distribuem palmadinhas tranquilizadoras nas mãos e bochechas dos restantes passageiros, equatorianos na sua maioria.
A criança ao meu lado escancara as goelas e, face à serena conformação de que parece estar imbuída a mãe, exige uma intervenção corruptora mais profunda, ainda que discreta: o meu Kit Kat de reserva. Não é fácil explicar de seguida à mãe o anel de castanho profundo que rodeia a boca do petiz. Mas são estes pequenos momentos em que dois seres humanos que nunca se viram e são confrontados em conjunto com uma manifestação do sagrado que nos abrem o espírito para as infinitas possibilidades do nosso misterioso universo.
Fico para além do mais a saber que o nome do pequeno Samin tem origem quetchua e significa "afortunado". Fico também a saber que a língua ancestral dos Andes, o quetchua, é falado por cerca de 10 milhões de pessoas ao longo do Equador, Perú, Bolívia, Colômbia, Chile e Argentina. Dou-me agora conta da forte possibilidade de ser em quetchua que Jorge Jesus por vezes comenta a bola ao Domingo à noite.As restantes 9 horas de viagem decorrem pacificamente. À chegada a Quito espera-nos o nosso guia Marcial que não tem nada de mercuriano, é a simpatia em pessoa. O seu apelido diz tudo: Amable. Que grande nome, Marcial Amable! Chegámos definitivamente ao continente do realismo mágico.
Retemperados por um abençoado duche, mergulhamos no frenesim de sábado à noite da Plaza Foch. Estão 13 graus e nota-se que estamos a 2.800m de altitude.Apesar da profunda amizade que une os VdAlpinistas a conversa começa a tornar-se pastosa. São 11 da noite aqui mas 4 da manhã em Lisboa. As 18 horas de viagem e as 5 de jet lag cobram-nos pesadamente. Bem jantados, decidimos bater em retirada. Amanhã espera-nos um tranquilo dia em Quito, o primeiro dia de aclimatação.
Ao jantar não falamos sobre a montanha mas ela é uma presença incontornável. Na vinda do aeroporto o Marcial diz-nos que desceu ontem do Cotopaxi e que nevava ligeiramente. Não é necessariamente bom para a subida do Cotopaxi mas é-o para o Chimborazo porque fixa as rochas mais pequenas e cascalho. Conta-nos que foi com um austríaco "muy fuerte" que subiu em três horas menos do que o normal tempo de ascensão. Chamamos-lhe a atenção para o facto de que provavelmente o sujeito passou a adolescência a perseguir cabras montanhesas nos confins dos Alpes. Dou comigo a pensar que, não obstante, em termos de esforço nada suplanta uma dolorida subida da Calçada da Estrela desde a Assembleia da República até à Basílica e que deste ponto de vista nos encontramos magnificamente preparados. A imbatível superioridade topográfica de Lisboa face a Viena em termos de preparação física conforta-me.A aventura começou. Como nos disse o Marcial há poucas horas, o desafio da montanha depende em 90% da cabeça e 10% da Pachamama. Pachamama é a Mãe Natureza, a deusa da fertilidade na cultura andina que tem o poder de manter e organizar a vida na Terra. É a mulher de Pachakamac e os seus filhos são Inti, o deus-sol, e Killa, a deusa-lua. Na cosmologia quetchua os quatro princípios organizacionais da natureza baseiam-se na água, terra, sol e lua.
Cheira-me que a Pachamama vai achar graça quando se aperceber da incursão de uns tugas nos seus domínios e é já sob sua proteção que termina o nosso primeiro dia no Equador.
Os VdAlpinistas