Juntos, tocamos a lua

O Chimborazo por um triz... desolação e consolação

Montanha do Chimborazo, Equador

No domingo à noite recebemos notícias frescas do Chimborazo: nevou no sábado e no domingo e as condições de escalada são por isso boas. Parece paradoxal mas a neve no Chimborazo é normalmente recebida como uma boa notícia pelos andinistas. Por se tratar de uma montanha muito rochosa, a neve facilita a escalada em terreno juncado de rochas soltas, fixando-as e diminuindo assim o perigo de derrocada, e forma corredores de passagem em pontos que na sua ausência são simplesmente intransitáveis.

Conhecemos a baixa taxa de sucesso (20%) na conquista do cume de Chimborazo que resulta, em parte, do esforço físico exigido e, noutra parte, da reunião das condições meteorológicas consideradas necessárias. Temos, por isso, dois dias alternativos previstos - 3ª ou 4ª feira - consoante a previsão meteorológica. 

Na 2ª feira à noite discutimos detalhadamente com o nosso guia Marcial e é consensualizado o dia seguinte - 3ª feira - para a escalada. Existem duas rotas possíveis para o ataque ao cume: a primeira, que segue uma rota Este-Oeste,  implica a montagem do acampamento-base já no glaciar e exige o carregamento de todo o equipamento e aprovisionamento connosco, significando que vamos com as mochilas mais pesadas. A segunda, que segue a vertente Noroeste, implica a montagem do acampamento-base perto da entrada do Parque Nacional e permite utilizar a estrutura básica de um barracão dos guardas do Parque para efeitos de armazenamento de equipamento e alimentação, o que nos deixa as mochilas bastante mais leves. O Marcial opta pela segunda.

Na 3ª feira ao fim da manhã arrancamos para a cidade de Baños, curiosos para ver como será viver debaixo de um vulcão em atividade. Baños está à sombra do Tungurahua, um vulcão com 5.023 de altura que, após 100 anos de descanso, retomou a atividade de forma estrondosa em Outubro de 1999. Desde então houve erupções significativas a cada dois anos, tendo a última ocorrido a 1 de Fevereiro de 2014, informação que felizmente não é de conhecimento generalizado em Portugal.

Às 17.00h estamos no Parque Nacional do Chimborazo e, com as tendas montadas, tentamos dormir enfiados nos sacos-cama até à hora da partida. O Marcial confunde-se com as horas das refeições, não parece estar nos seus melhores dias.

Às 21.30h engolimos a última refeição: esparguete com molho de tomate para os mais afoitos, granola com iogurte para os mais tradicionalistas. Apertamos os arneses, calçamos as botas, ajustamos os "bâtons" e fixamos as picaretas às mochilas. A experiência da subida ao Cotopaxi faz com que já não estejamos nervosos com o que nos espera, embora seja indesmentível alguma ansiedade pelo facto de esta noite representar o culminar de todo o projeto "Juntos Tocamos a Lua".

22.45h: Começa a ascenção, estamos a 4.800m. Vamos 6 pessoas, 3 VdAlpinistas e 3 guias. Avançamos a bom ritmo: é notória a nossa acrescida capacidade física em resultado de uma boa aclimatação à altitude. A noite está espetacular e aparentemente não podiam estar reunidas melhores condições: céu descoberto, com um manto estrelar verdadeiramente impressionante, e temperatura agradável: o termómetro está acima dos zero graus. Não mexe uma palha. Os VdAlpinistas vão animados e confiantes, os guias algo taciturnos. Subimos quase 2 horas sem interrupção e com surpresa esta subida parece-nos mais fácil do que a do Cotopaxi.

12.30h: Chegamos aos 5.300m, sabemos que aqui se inicia um troço crítico até ao "Castillo". Embora não vejamos ainda neve (o que nos surpreende), somos instruídos para collocar os "grampons" nas botas. Encolhemos os "batons", guardamo-los nas mochilas e substituimo-los pelas picaretas. Tiram-se as cordas das mochilas, fixam-se os mosquetões nos arneses e ligam-se os VdAlpinistas aos guias: o João vai com o Cristian, o Joaquim com o Chuky e o Miguel com o Marcial. Bebemos água e mordiscamos uma barra energética. Prolongamos a pausa porque ninguém sente frio. O que parece ser uma troca de argumentos entre dois dos guias acerca da rota a seguir é interrompida com veemência pelo Marcial e é dada ordem de partida.

01.00h: Percebemos entretanto a razão para colocar os "grampons" nas botas mesmo sem neve: caminhamos num mar de cascalho, o chão é formado por traiçoeiras pedras que nos fogem debaixo dos pés, as rochas onde pensamos poder apoiar-nos estão soltas e facilmente resvalam encosta abaixo. Avançamos com cautela mas escorregamos a cada dois passos, o espectro de uma entorse num tornozelo assombra-nos. A encosta inclina-se dramaticamene e torna-se impossível não enviar pedras encosta abaixo com cada passo. Aproximamo-nos uns dos outros para que as pedras soltas que resvalem por causa dos que vão à frente não ganhem balanço antes de atingir alguém dos que vão atrás. A respiração acelera e o coração dispara, o efeito da altitude que nós julgávamos controlado volta a apertar a tenaz em torno dos nossos peitos.

01.30h: estamos a subir quase na vertical, com mãos e pés. Em resultado da lei da gravidade e da inclinação da encosta, diminui a quantidade de cascalho. Agarramo-nos às saliências pontiagudas das rochas que despontam da terra poeirenta e continuamos a não vislumbrar neve. Temos agora um som de fundo: ouve-se água a correr com força por todo o lado. É já indisfarçável o desconforto dos guias: os riachos deveriam estar gelados a esta hora da noite, a neve deveria prender as pedras que nos fogem debaixo dos pés e nós não deveríamos estar de casacos abertos nem exibir gotas de suor nas testas. Vê-se que o calor que se faz sentir os deixa receosos. Explicam-nos que, para além da cinza que cobriu os campos, este é um dos principais efeitos da actividade vulcânica  do Tungurahua: desde a erupção de 1 de fevereiro passado, houve uma notória subida de temperatura em toda a área que circunda o vulcão. A neve que caíu no Sábado e no Domingo derreteu rapidamente.

01.30h: Temos o "Castillo" à nossa frente, um impressionante conjunto de enormes penhascos verticais que formam uma verdadeira parede. Entre nós e os penhascos medeiam blocos de gelo negro inclinados. Explicam-nos que se trata de gelo milenar, muito duro, no qual os "grampons" e a picareta só dificilmente penetram. O Marcial olha para a esquerda e para a direita com uma expressão preocupada e conferencia com os outros guias. Liberta cerca de 10 metros da corda que o une ao Miguel e trepa sucessivamente a duas rochas, olhando em volta.  Volta para trás e anuncia resoluto aos outros guias: "Por aquí no hay salida, hay que intentar por la izquierda." "Pero como?" perguntam-lhe. "Hay que pasar una línea y hacer los chicos traversar lo hielo", ao mesmo tempo que aponta para um grande bloco de gelo negro vertical que se mistura com a rocha. 

A meia hora seguinte é passada a cravar pregos no gelo. O Chuky faz um número de equilibrismo arrepiante e atravessa o bloco literalmente colado ao gelo, usando todos os meios de que dispõe para se fixar e manter-se na vertical: "grampons" frontais, picareta e mãos. Leva presa ao arnês uma corda cuja outra e extremidade está nas mãos do Marcial, do lado de cá do bloco. Crava um prego do lado de lá, fixa a corda e grita: "Listo! Mandalos!". Há agora uma corda dupla que atravessa o bloco vertical de gelo. A ideia é fazer passar uma das linhas  pelo mosquetão dos nossos arneses. No caso de escorregarmos, essa corda segurar-nos-á e evitará que nos despenhemos. A outra linha está fixada ao gelo por pregos que mentalmente esperamos fervorosamente sejam de confiança. Nenhum de nós alguma vez fez depender a sua vida de um prego.

"O melhor é não pensar muito, 'bora". Respiramos fundo e lá vamos nós, um de cada vez. Primeiro o João, depois o Joaquim e por último o Miguel. Estamos na vertical, apoiados na ponta das botas, ou melhor, nos dois grampons frontais. Cada passo lateral é seguido por duas ou três biqueiradas no gelo até sentirmos que os grampons conseguiram penetrar minimamente e agarrar alguma coisa. Depois ficamos suspensos no ar, apoiados só na pontinha dos grampons. Mais um passo lateral, o coração bate desordenadamente, de um lado e outro da corda o Marcial e o Chuky olham ansiosamente. Este agarrou bem, só mais um passo, está quase, e de repente sente-se a mão do Chuky a agarrar. Hop, um pequeno salto para o lado e já está, terra firme! O alívio é enorme, o suor escorre-nos pelas costas.

02.30h: O Marcial larga corda e trepa a uma rocha, depois a outra. Regressa e conferencia com os outros guias, em tom seco. Vira-se para o Miguel e diz: "Hay que mirar arriba, viene conmigo. La cuerda tensa por favor". Lá vão, o Marcial larga corda e sobe a um penhasco, desaparece e regressa passados uns segundos com um olhar desesperado: "No hay paso, es que no hay paso, mierda!" Baixam os dois e reúnem-se aos outros. O Marcial diz aos outros guias: "No hay paso por aqui. Sugerencias?" Silêncio. Virando-se para nós diz: "Señores, lo siento muchísimo, por aquí no es posible." Ainda esgazeados pelo esforço, não sabemos que lhe dizer. Silêncio, o som de água a correr acima e abaixo de nós é cada vez mais forte. O Marcial cerra a expressão, olha para os pés e os seus olhos parecem-nos mais brilhantes do que o costume.

03.00h: Continuamos parados. Podemos ir por outro lado? A resposta é negativa. São 3 da manhã, já devíamos estar muito mais acima. Já não há hipótese de chegar ao cume antes das 6 da manhã e se não o fizermos aumenta exponencialmente o risco de sermos atingidos por uma derrocada durante a descida. Única alternativa: tentar outro caminho e subir até às 6h sabendo que nao vamos atingir o cume, tirar umas fotos quando clarear e voltar para baixo. O desanimo instala-se entre nós. Não nos faz sentido continuar só para tirar umas fotos, ou conquistamos o cume ou então para quê estar a correr riscos. "Como é que é? " Primeiro voto: "descemos". Segundo voto: "descemos". Terceiro voto: "descemos". Com um misto de raiva e incredulidade dizemos de forma brusca ao Marcial: " Pues bajemos ya." Não conseguimos disfarçar a animosidade.

03.30h: A descida faz-se em silêncio sepulcral. As pendentes muito inclinadas que nos custaram a subir são aterrorizantes na descida: temos de descê-las de frente, com as pernas abertas e arqueadas como cowboys num duelo a desoras, com o tronco inclinado para trás no sentido da encosta, totalmente dependentes dos nossos "grampons" que evitam que nos despenhemos no vazio.

04.30h: Começa uma descida mais suave. Trocam-se as primeiras palavras. Ouvimos um dos guias dizer ao Marcial que  a rota que seguimos deveria ser encerrada, é perigosa e sem neve é totalmente impossível de seguir. Entreolhamo-nos os três e lemos nos nossos olhos o mesmo pensamento: o Marcial errou na decisão que tomou. À medida que descemos e que a inclinação se torna mais suave, mais desolado se mostra o Marcial, a ponto de nos aproximarmos dele e tentarmos atenuar a animosidade que teremos porventura transmitido quando tomámos a decisão de descer. Nesse momento o Marcial debulha-se em lágrimas e com a voz entrecortada diz-nos: "Me equivoqué, me equivoqué, lo siento chicos, lo siento de verdad, es que la otra ruta lleva una hora más y quise ahorrar os lo esfuerzo." E continua a balbuciar: "lo siento, lo siento". Para o consolar recordamos-lhe que só quem não tem de tomar decisões é que nao erra, pelo que nao há que chorar sobre o leite derramado.

05.30h: Chegamos ao estacionamento, temos as pernas feitas em renda. Subimos ao nosso autocarro, descalçamos as botas, tiramos as meias encharcadas e abate-se a desilusão sobre nós. Cada um se enrola no seu assento e a exaustão faz-nos adormecer em questão de minutos. 

09.00h: Chegamos ao hotel. O sono agitado no autocarro não apagou a noite em claro nem o esforço físico. Forçamo-nos a pensar que as verdadeiras aventuras são interiores. Frustra-nos o facto de não ter sido a nossa condição física que nos atraiçoou, continuamos com a certeza de que teríamos chegado ao cume, sentíamos-nos bem quando descemos. A única coisa que nos consola é a consciência de termos feito tudo o que estava ao nosso alcance. Mas temos pena e esperamos que a desilusão dos que seguem esta nossa aventura não seja maior do que a nossa. Os nossos pensamentos vão para os nossos colegas da VdAlpinismo que nos têm ajudado incansavelmente a partir de Lisboa, para os nossos clientes e generosos patrocinadores da causa - Accenture, Banco Invest, Banco Popular, Brisa, Cisco, Costa Duarte, Find, Lifebeat, Novartis, Sociedade Ponto Verde, Vieira de Almeida & Associados, Yupik - e finalmente para as instituições de solidariedade social beneficiárias da expedição: Ajuda de Berço, Diferenças e Escolinha de Rugby da Galiza. 

Estamos gratos, estamos solidários. Gostaríamos de poder estar eufóricos. Hélas!