Juntos, tocamos a lua

Nuevos horizontes: repastos inusitados, visitas inesperadas e os 5.000 metros de Illiniza à nossa frente

Vamos de carro até pouco depois da entrada do Parque Nacional dos Illinizas. Aguardam-nos cavalos que carregarão parte da nossa bagagem: sacos-cama, comida e água. À volta dos cavalos enxameia uma matilha de cães que com eles arranca num concerto de latidos e correrias como se tivesse sido dado o tiro de partida para a caça à raposa. Em vez da casaca encarnada e calças brancas de um lorde inglês, o cavaleiro de pele curtida e olhos rasgados enverga uma camisola de cor vagamente acinzentada, um boné do 'Deportivo Quito' e umas polainas peludas que parecem ser as sobras do esfolamento do Chewbacca.

A subida de hoje é a mais difícil desde que começámos a aclimatação, a inclinação é muito mais acentuada do que as anteriores. O prémio é uma paisagem cada vez mais grandiosa.

A meio da subida cruzamos os cavalos que carregaram a nossa bagagem para o refúgio e que agora descem em direção a Machachi. Uns vêm montados e os cavaleiros esforçam-se por vencer o nervosismo das bestas confrontadas com a ravina. Um deles vem à mão, provavelmente estava nervoso demais para levar cavaleiro.

Apesar de ainda estar uns bons 50 metros acima de nós vê-se que o machacheño que o leva pela rédea tem o mesmo ar altivo de todos os outros montanheses com que já nos cruzámos e antecipamos já o ar condescendente que nos vai lançar quando por nós passar, ouvir a nossa respiração ofegante e vir os nossos olhos desorbitados. De repente o impensável acontece: o machacheño escorrega inopinadamente e dá um monumental terno. O pobre cavalo, que já leva os nervos em franja à conta da descida, assusta-se e relincha aflitivamente. O homem, mal toca com os fundilhos no chão, impulsiona-se de imediato para cima como se fosse uma mola, tentando salvaguardar um mínimo de dignidade, mas fá-lo com tanta força que se desequilibra para a frente devido à inclinação da encosta e acaba por dar um valente esticão à rédea do pobre cavalo que, com os nervos irremediavelmente esfrangalhados, se empina e escancara narinas e olhos como se gritasse: pelo amor de Deus alguém arranque as minhas rédeas das mãos deste incapaz!

O escarcéu foi tal que mesmo os outros cavaleiros que já seguiam mais abaixo se apercebem e as suas gargalhadas ecoam pelas encostas. Nós ficamos boquiabertos mas rapidamente nos apercebemos que acaba de nos ser oferecida uma soberana ocasião para recuperar o orgulho tuga amolgado por dias seguidos de condescendência montanhesa. Quando o homem-mola passa por nós tentando ostentar a expressão altiva que normalmente o caracterizaria, um dos VdAlpinistas, com estudada perfídia, pergunta-lhe: "Estás bien? Te hiciste daño?" Não podendo enjeitar uma tal demonstração de preocupação cristã pelo bem-estar do próximo, o homem-mola, com o orgulho a sangrar, resmunga entre-dentes um mal-disposto "estoy bien, no pasa nada". Por caridade deixamos passar alguns metros mas - confirmando-se que nada de grave lhe aconteceu - o burlesco da cena torna-se irresistível e as nossas gargalhadas junta-se às dos outros machacheños ecoando até ao vale. A honra lusitana está vingada!

Chegamos pelas duas da tarde ao refúgio "Nuevos Horizontes", a 4.700m, uma casinha rosa encostada a uma gigante parede negra de rocha. Por dentro é um "open space" com cerca de 50 metros quadrados, quatro filas de beliches e uma cozinha enfiada num cubículo.

Somos recebidos pelo vigia Freddy, um jovem que passa uma grande parte do seu tempo na solidão da montanha. Desesperou quando se lhe acabou o saldo enquanto falava com uma proto-namorada. Atento o pouco tempo que passa na aldeia, a sua eficácia ofensiva tem necessariamente de ser superior à de um F-16. Atentas, porém, as protuberâncias cutâneas de que desgraçadamente é portador, acabar-se o saldo a meio de uma chamada que se encaminha para uma pequena hipótese de privar uns minutos com uma aldeã é compreensivelmente uma desgraça equivalente à erupção da peste negra na Europa medieval.

O Freddy está atarefadíssimo em torno dos tachos, uma tarefa tão difícil no pequeno cubículo onde é a cozinha que ficamos todos curiosos para saber o que exigirá tanta azáfama. O resultado deixa-nos sem palavras: sopa de cogumelos com pipocas. Sim, pipocas, salgadas. As pipocas estão numa grande tijela no centro da mesa e é suposto deitarmo-las por cima da sopa como se fossem "croutons". Primeiro a medo, depois sofregamente, lançamo-nos às pipocas e construímos torres de pipocas dentro da sopa, extasiados com o resultado. Fazemos uma jura solene de nunca o confessarmos a terceiros mas a verdade é que o resultado é admirável...

Segue-se uma outra iguaria: arroz com ovo (muito passado) a cavalo. Esta estada no refúgio promete...

Saímos para uma pequena ascensão até onde se avista o caminho que faremos amanhã. Passam-nos dois pequenos pássaros pela frente e confrontado com o profundo (apesar de recente) interesse de um VdAlpinista pela ornitologia, o Marcial identifica as aves como sendo gaivotas. Considerando que estamos a 4.700m de altitude e a 120km do Pacífico, somos acometidos por uma lancinante angústia: o nosso guia terá sido apanhado pela doença da altitude? Ele insiste de forma perentória, são gaivotas, é uma espécie pequena que temos no Equador, bem sei que são aves marítimas mas chegam até aqui e vêm-se até aos 4.800m. De repente um pássaro corpulento cruza o céu mesmo à nossa frente e, claro, ninguém pergunta ao Marcial o que é, com medo da resposta. Mentalmente digo a mim próprio que se ele afirmar que é um pelicano vamos ter de o imobilizar, conduzi-lo de imediato ao refúgio e cancelar a escalada ao Illiniza norte programada para amanhã. Felizmente diz-nos: "é um cara-cara ou, em quítchua, curiquigue", uma ave de rapina. O alívio é generalizado, mantém-se o plano e ninguém vai ter de magoar o guia.

Regressamos ao refúgio pelas 16.00h e agora há que fazer horas até ao jantar e à hora de irmos dormir. Avança a tarde, lá fora primeiro chove, depois cai granizo. Vai nevar, diz-nos o Marcial, e a temperatura cai a pique. Dentro do refúgio a situação térmica não é muito diferente. Começamos a vestir camada sobre camada de roupa mas as paredes têm buracos junto ao teto e o frio instala-se. Estamos de gorro e luvas e o alívio não é grande. A noite vai ser dura e arrepiamo-nos com o pensamento de que vamos sair do refúgio às 6 da manhã para escalar o Illiniza Norte e tentar ultrapassar os 5.000 metros.

A noite cai e o dia termina da forma mais espantosa possível: um lobo aparece junto ao refúgio. Primeiro pensamos tratar-se de uma raposa corpulenta mas os nossos amigos equatorianos que connosco partilham o refúgio desfazem a dúvida em uníssono: é um lobo, há muitos nestas montanhas e vêm ao refúgio à procura de comida quando sentem gente. A natureza tem destas coisas...