Juntos, tocamos a lua

Cotopaxi: mírenla! Aí está!

 A palavra quetchua "tambo" significa local de paragem e descanso. No império inca designava os albergues construídos a cada 20-30 km ao longo dos mais de 30.000 km de estradas e caminhos do Capac Ñan (Caminho do Inca) desde Quito no norte (atual Ecuador) até Santiago no sul (Chile)  para acolher os "chasquis", emissários que a partir do "umbigo do mundo" em Cusco asseguravam a comunicação através de um império que no sec. XV abrangia 12 milhões de almas.

 

A 3.750m de altitude, o hotel que nos recebe chama-se Tambopaxi e fica, como o nome indica, à sombra do Cotopaxi que, com 5.890m, é o segundo vulcão mais alto do Equador e um dos vulcões ativos mais altos do mundo. O nosso objetivo.

 

Na sexta-feira enquanto jantamos assistimos à azáfama do grupo que se prepara para atacar o Cotopaxi. A escalada é feita durante a noite para evitar o perigo de avalanche que aumenta progressivamente à medida que o sol vai aquecendo a neve e para prevenir o desânimo que  pode instalar-se na mente de quem vislumbra o cume durante horas a fio sem o atingir. Têm sorte, está uma noite perfeita: o céu está completamente descoberto e estrelado, não há vento e a temperatura é quase aprazível. 

 

Ao pequeno-almoço de sábado vemo-los descer a montanha através dos potentes binóculos instalados na sala de refeições. Vêm em vagas e cruzam histórias conforme vão atacando o pequeno-almoço que, no caso de alguns, ilustra eloquentemente o esforço da noite: bife do lombo com batata e salada. Começam a esvoaçar borboletas no nosso estômago.

 

Vamos dar um passeio pela paisagem vulcânica e a seguir ao almoço recolhemos aos quartos com a instrução de dormirmos tanto quanto possível. O encontro fica marcado para as 21.30h para uma refeição leve antes da partida. 

 

20.00h: tempo de vestir o equipamento e preparar a mochila. Os homens transfiguram-se fugazmente em Peter Pans andinos à medida que vestem os collants. Meias grossas para os pés, camisola interior térmica bem justa e está completa a primeira camada. Seguem-se as calças de neve, a camisola polar, as botas rígidas parecidas com as botas de ski e as polainas para evitar rasgar as calças com os "grampons" bicudos que serão colocados debaixo das botas para caminhar no gelo. Para vestir só no momento da partida ficam o balaclava, o  anorak de penas, o corta-vento impermeável, luvas (primeira e segunda camada) e gorro. Os "grampons" para o gelo (que mais parecem um instrumento medieval de tortura) vão para a mochila, o seu momento há-de chegar. 

 

Na mochila seguem duas garrafas de meio litro de água, uma garrafa pequena de Coca-Cola, bolachas, barras energéticas, quadrados de chocolate, canivete suíço, lanterna de cabeça e pilhas extra, apito e manta de emergência, óculos de sol para a descida, protetor solar e baton para o cieiro. As borboletas esvoaçam mais fortemente.

 

21.30h: trocam-se graçolas à mesa. Iogurte, granola, pão com compota, chá. Enchem-se as garrafas com água e embrulham-se em meias para não congelarem. Colocam-se os arneses: iremos amarrados uns aos outros para segurar quem tenha o infortúnio de escorregar numa pendente mais inclinada ou cair nalguma greta traiçoeira. Os diferentes guias são alocados aos VdAlpinistas: o Marcial levará o João e o Joaquim, o Segundo leva o Miguel e o Cristian leva a Carolina.

 

22.00h: ordem de partida. As borboletas esvoaçam ainda mais seriamente. As botas de plástico rígido fazem os VdAlpinistas bambolear até ao autocarro, parecem astronautas inchados com tanta roupa. A noite não está tão bonita como ontem, comenta-se, faz vento e o céu está parcialmente coberto. Carregam-se as mochilas e os auxiliares de marcha: "batons" e picaretas. 

 

22.15h: O autocarro arranca no meio da paisagem lunar do Parque Nacional, a estrada contorna as sombras das rochas cuspidas há muito pelo Cotopaxi e de outras há nem tanto. Com exceção dos faróis do autocarro,  não há qualquer ponto de luz artificial quilómetros em redor. As nuvens dissipam-se por momentos e a poeirenta Via Láctea surge nitidamente do lado direito. Sentimo-nos como se, apesar de castigados, tivéssemos fugido de casa e estivéssemos a caminho de uma proibidíssima festa. Bem vistas as coisas, é Sábado à noite...

 

22.50h: Chegada ao parque de estacionamento, ponto de partida para a escalada. As borboletas entram em alvoroço, agora é a sério. Um a um saímos do autocarro como se estivéssemos a descer de um dos helicópteros do Platoon.   Luvas, gorro, ajustam-se as correias da mochila e o comprimento dos "batons". Cai uma ligeiríssima chuva, adivinha-se  uma brisa.

 

23.00h: Começa a ascenção. O primeiro troço vai do parque de estacionamento que se encontra a 4.500m até ao refúgio que está a 4.800m. Pisamos terra solta, pareceria lavrada não fôra a inclinação. Ao fim de alguns minutos desaparece a luz dos faróis do autocarro, estamos só nós e a montanha. Estranhamos não haver outros grupos a subir, dizem-nos que as eleições locais de amanhã (domingo) fez muita gente ficar na sua cidade-natal. Os pés lutam contra a dureza das botas ou talvez sejam as botas que lutam contra a pretensão dominadora dos pés. Trocam-se uns quantos comentários jocosos entrecortados pela respiração ofegante.

 

23.50h: Chegada ao refúgio. Está em obras e apresenta-se esventrado. Paramos e bebemos água. Seguimos.

 

00.30h: Chegamos ao princípio do glaciar, 5.000m. Pomos os "grampons", a partir de agora caminharemos na neve ou no gelo. Bebemos água, trincamos uma barra energética. Não podemos parar durante mais do que uns breves minutos para não arrefecer. Retomamos a marcha, a pendente inclina-se, o vento começa a soprar vindo da esquerda, a chuva transforma-se em neve fininha.

 

01.30h: 5.200m, a temperatura cai a pique, estão 5 graus negativos, a neve cai mais intensamente, o vento sopra mais forte. Paramos para beber água que começa a ficar gelada. O tornozelo da Carolina não está em boas condições, a sua constituição franzina treme violentamente com o frio, impõe-se uma decisão: consultado o guia, a Carolina decide regressar à base. Sobramos três.

 

03.00h: Chegamos aos 5.400m, estão 10 graus negativos, parou de nevar mas aumentou a força do vento. O céu descobre-se, vêem-se as estrelas. Paramos ao lado de uma rocha enorme com uma fenda. Lá dentro, muitos metros abaixo, adivinha-se uma gruta. As bordas da fenda estão ornadas com estalactites de 1 metro que brilham à luz do quarto de lua que entretanto nasceu. Ninguém fala, só se ouvem as respirações ofegantes, o silêncio na montanha é absoluto, o gelo estala. As caras estão tensas do esforço e da interrogação acerca do que se seguirá. Colocamos os balaclavas negros e parecemos black blocs prontos para partir montras no centro de S. Paulo. Três minutos de paragem e seguimos.

 

04.00h: As duas vezes que lançámos o facho de luz para o nosso lado direito não conseguimos vislumbrar o fim da pendente, é melhor não olhar para o vazio. Do nosso lado esquerdo estamos praticamente encostados à montanha, vamos cravando a picareta na parede para equilibrar as pernas já vacilantes, o carreiro por onde seguimos não é suficientemente largo para os dois pés, cada passo exige que o pé direito sobrevoe o abismo e o pé esquerdo raspe a parede de gelo, avançamos pé ante pé.  Acabamos de vencer a pendente "rompe corazones" com 60 graus de inclinação e estamos exaustos, o coração quer sair pela boca. Atingimos os 5.600m.

 

05.00h: Vislumbramos umas luzinhas que ziguezagueiam uns 200m atrás de nós, afinal não estamos sozinhos, parecem-nos ser quatro pessoas. Avançamos a direito, a parede é tão inclinada que já não pousamos a base dos "grampons", limitamo-nos a enfiar a biqueira no gelo e a fazer força com o calcanhar para baixo. Paramos a cada 10 metros para recuperar o fôlego. De repente a inclinação diminui, a parede dá lugar a um trilho e desembocamos num espaço aberto como uma praça, ladeado por gigantescos rochedos à esquerda e à direita. A lua brilha por detrás de um intrigante cabeço que se ergue perante nós: "es la cumbre", diz-nos o Marcial, "nos faltan 150 metros, no más". A notícia é recebida com um misto de alivio e irritação, 150 metros?? Não podiam ser só 15? Estamos a 5.700 metros de altitude, perigosamente próximos da exaustão. A arfar, prosseguimos  vacilantes enquanto um risco de luz atravessa o céu e anuncia o dia.

 

O6.00: O vento sopra selvaticamente e volta a nevar. "Vamos chicos, mírenla, aí está!" Mais um passo, só mais um, e mais um, este é igual ao anterior, agora está quase, não vale desistir. O céu começa a clarear, de repente falham os pés, desapareceu a inclinação, é plano, como pode ser plano, ainda vamos ter de caminhar tres dias, não, é mesmo plano, é um cabeço arredondado, é O cabeço: "chicos, llegámos!!!" 

Extenuados, abraçamo-nos. Apetece-nos gritar mas não há forças. Estamos a 5.897m! Nasce o sol mas está uma verdadeira tempestade, o vento sopra furiosamente, é uma única rajada constante. Tiramos meia dúzia de fotografias, tentando manter os olhos abertos apesar dos bocados de neve que nos cegam por causa do vento. A panorâmica está fechada, só vemos nuvens à nossa volta. Chega o grupo que nos seguia, holandeses e ingleses. O Joaquim pousa o gorro no chão, instantaneamente é levado pelo vento e rebola pelo cabeço fora. A atlética holandesa lança-se em perseguição do gorro e acompanha a curva descendente do cabeço até todos os guias em uníssono gritarem "STOP!!!" mesmo antes de ela se lançar no vazio. Nós olhamos aparvalhados, ela volta para trás com uma expressão esgazeada, os guias percebem que toda a gente está próxima da exaustão e que a clarividência já não abunda. O problema é que ainda faltam umas boas horas de descida e é nas descidas que ocorre a maioria dos acidentes. Há que partir. Uma ultima foto e um golo de Coca-Cola e aí vamos nós, agora à luz do dia.

 

09.00h: A descida faz-se a bom ritmo. Os joelhos são duramente castigados mas o simples facto de não ter o coração a explodir mais do que compensa. O sol dá-nos de frente, há que pôr os óculos escuros e aplicar protetor solar fator 100: a esta altitude e na linha do equador o sol não brinca. Em menos de 3 horas estamos de volta ao parque de estacionamento. Sentamo-nos no autocarro em estado catatónico e regressamos ao hotel.

 

11.30h: Atacamos vorazmente o bife de lombo, o melhor lombo que alguma vez comemos. Justifica-se uma cerveja, o brinde sela uma das maiores aventuras das nossas vidas. Estamos possuídos por uma estranha serenidade, o cansaço não dá para mais.

 

13.00h: Partimos no autocarro com destino a Baños, temos 3 horas de viagem pela frente. Com a cabeça apoiada nos sacos-cama, adormecemos profundamente num sono sem sonhos.

 

Já "só" falta o monstro do Chimborazo.