Juntos, tocamos a lua

Chimborazo - the comeback, Take 2

"Esta es mi tía" diz orgulhoso e ternurento o Marcial, apresentando-nos uma adorável senhora com pontas de cabelo branco que espreitam debaixo de um boné encarnado que por sua vez se desfaz num sorriso algo desdentado. Estende-nos a mão do outro lado do balcão de madeira, encostada à balança da farinha, rodeada de um bazar de invólucros coloridos de bolachas, detergentes, rebuçados, vassouras, molas da roupa, pastilhas elásticas, panelas, chocolates, dentífricos, funis e latas de atum.

"A comer, a comer", diz-nos ela, excitada com o alvoroço inesperado numa 5ª-feira de outra forma pachorrenta, como se o sobrinho estivesse a caminho de ser ajuramentado Presidente da República. "Vienen de Portug...", balbucia o Marcial, tentando concluir a identificação geográfica que provavelmente ensaiou antes de chegarmos, entrecortado pelo gesto resoluto da tia encaminhando-nos para a sala por detrás do balcão. A sua maior luta tem sido contra os inspetores das Finanças que de quando em quando lhe azucrinam o juízo vindos de Quito, vá lá ela querer saber de onde saem estes forasteiros. Conformamo-nos com nossa a mais do que provável proveniência do Paraguai.

"Sopita", anuncia a tia. "Hay plátanos?", pergunta o Marcial. E instantaneamente vemo-nos todos com uma banana na mão. "Hmmm", suspira deliciado o Marcial, dando uma dentada na banana e sorvendo de seguida uma colher da canja de galinha. O esquadrão português hesita mas depois de uma sopa de cogumelos com pipocas no Illiniza, que ameaça pode representar uma canja de galinha com banana? Lançam-se, entre o enjoado e o extático, convencidos de que este é o único desafio culinário do almoço.

Nova ronda de pratos é lançada sobre a mesa. Uma terrina fumegante deixa entrever um borbulhante molho esbranquiçado. "Hmmm", geme de novo de prazer o Marcial, para pânico do esquadrão português, "librillo!!!!". O cheiro contém algo de familiar mas ninguém se atreve a perguntar o que é. Enternecida pelos olhares aterrorizados dos paraguaios, a tia revela: "mani!", ou seja, amendoim. Um suspiro aliviado perpassa o grupo lusitano que se serve frugalmente, com exceção do Joaquim que, sempre e ainda possuído, enche o seu prato quase a transbordar. A calda contém pedaços de uma matéria semi-rígida cuja identificação o Marcial se compraz em escamotear e que o Joaquim mastiga com alegria. O João e o Miguel provam parcimoniosamente o molho. É de facto amendoim, agradável, com uma qualquer adição que não se deixa adivinhar.

Terminado o repasto, o Marcial adota a expressão matreira de um pai prestes a revelar aos filhos que o Pai Natal afinal não existe e proclama: "es el segundo estomago de la vaca". Os conhecimentos anatómicos da seleção portuguesa no que se refere ao gado bovino são notoriamente parcos, pelo que a revelação não tem o impacto desejado. "???". "La vaca tiene siete estomagos, lo que acaban de comer es lo segundo", anuncia o Marcial triunfante. O João e o Miguel caem num acabrunhado silêncio contemplativo, o Joaquim pergunta: "y que hay de postre?"

Arrancamos finalmente para o Chimborazo. Outra vez.

Chimborazo, the comeback!

É de peito feito que entramos no Parque Nacional. Entregue a "hoja de ruta" com o percurso previsto aos guardas, há que substituir a proteção das orelhas que o João deitou fora após a primeira tentativa. Uma roulotte vende típica roupa andina e o João adquire um estupendo barrete de lã grossa azul-escura, com a desejada proteção de orelhas que termina em duas longas tranças. Ao olhá-lo já de barrete posto, o Miguel tem uma visão e crê reencontrar a sua avó materna Júlia. Nada que incomode o João, encantado com o seu novo adereço.

A primeira experiência com o Chimborazo dotou-nos de algumas certezas: 1.) não somos esquimós e não queremos passar quatro horas enfiados num pretenso igloo feito de licra a tentar dormir durante quatro horas, pelo que as tendas não são opção; 2.) não queremos granola, iogurte ou qualquer outra coisa saudável antes de partir, queremos esparguete gordurento com atum. Se é para a desgraça, é para a desgraça; 3.) não queremos a rota de ascensão supostamente mais fácil, já percebemos que nos pode conduzir a um beco sem saída. Queremos a rota mais longa e difícil que, não obstante, parece oferecer maiores probabilidades de nos levar ao cume sem enganos.

Em consonância, informamos o malogrado Victor que não arredamos pé do seu autocarro e que é aí que tentaremos dormir as quatro horas que faltam para reiniciarmos a conquista do Chimborazo, tal como, aliás, ele próprio se preparava para fazer. Com a expressão melosa que indicia não ter ainda afastado dos seus pensamentos a doce Juanita que o espera em casa, encolhe os ombros e, resignado, deixa-nos o autocarro, encaminhando-se para o barracão. Não conhece a gloriosa gesta dos nossos antepassados lusitanos mas o último olhar que nos lança antes de descer os degraus não deixa dúvidas quanto ao grau de demência que nos imputa.

O Joaquim e o Miguel rapidamente caem num sono profundo, para profunda irritação do João que tenta infrutiferamente perturbá-los com ruídos de diferente tipo até ele próprio dormitar. Lá fora neva.

21.00h: Rise and shine! É a hora combinada. Coração acelerado, agora é que é. Começa o veste e despe de meias, collants, calças, polainas, camisolas interiores térmicas, luvas e luvinhas, sapatos, botas interiores, botas exteriores, anoraks, corta-ventos, gorros. Parecem os bastidores de uma passagem de modelos. A diferença para a "Fashion TV" é que estão zero graus, é noite cerrada e não se vê um palmo à frente do nariz, o chão está lamacento da terra e neve caídas das botas e os modelos não dispõem de mais do que os 40 cm do corredor central de um minúsculo autocarro. Interjeições bem conhecidas do meio rugbistico nacional contribuem para um ambiente típico da Ovibeja.

21.30h: Jantar. Atacamos o esparguete com atum, com esperança de que o atum com esparguete não nos ataque a meio da montanha. Distribuem-se as picaretas, ajustam-se os arneses, fixam-se os mosquetões e ligam-se os VdAlpinistas aos guias: o João vai com o Paul, o Joaquim com o Patrício "Pato" Salazar e o Miguel com o Marcial. Os VdAlpinistas sentem um ligeiro sabor a aço na boca, provavelmente adrenalina. Ou então atum fora de prazo.

22.15h: Arrancamos, estamos a 4.800m. Continua a nevar. Atravessamos uma planura durante 20 minutos. Começa a subida, suave, no meio do cascalho grosso.

23.00h: Continua a subida no meio do cascalho grosso. A secura da garganta indica que estamos todos a levantar poeira com os pés. A neve que cai não forma ainda camada. O "Pato" Salazar foi rapidamente rebatizado de "Oliveira" e o Joaquim começa a desenvolver uma séria embirração com o seu guia. Lideram o grupo e segundo o Joaquim, apesar de estar a caminhar, "o gajo adormeceu".

00.00h: Neva com mais força, deixamos de sentir poeira na garganta. A temperatura desce. A inclinação é suportável. Vamos em ritmo suave, marcado pelo "Oliveira" que, segundo o Joaquim, dorme ainda mais profundamente. A persistente flatulência de que padece o Oliveira não contribui em nada para melhorar a relação entre os dois, até porque é o Joaquim que vai atrás. A neve começa a formar camada.

01.00h: Deixámos o cascalho, entrámos em terra solta, misturada com neve, 5.000m. A pausa serve para testar a eficácia protetora das meias em que enrolámos as garrafas para evitar o congelamento das bebidas. Dado estarmos no fim da viagem, o estado das meias está longe de ser virginal e espraia-se no ar um odor almiscarado quando se mexe nas garrafas. O "Gatorade" com sabor a laranja segue líquido e reconfortante.

02.00h: Já fizemos alguns equilibrismos, passagens que exigiriam sabrinas de bailarina são feitas com botas de ski e impropérios. 5.300m, altura para pôr os "grampons". Voltamos à indigna posição de bébés desajeitados no meio da montanha, pernas no ar, uma mão a agarrar a picareta ou a corda e a outra a tentar desesperadamente fixar o raio dos grampons na bota, procurando não resvalar encosta abaixo. Com mais ou menos ajuda dos guias, temos agora picos debaixo das botas mas infelizmente não nos sentimos super-heróis, temos a clara noção de que vai agora começar o inferno.

03.00h: A inclinação acentuou-se estupidamente, o efeito da altitude que achávamos controlado volta sinistramente, como um "pusher" que julgávamos preso. Tenaz à volta do peito, o coração dispara de cada vez que resvalamos. Há que estugar o passo, abrandar o ritmo, encontrar o ritmo. Começa em versão tropa, um, dois, um dois. Não vale a pena. É só um. Um, um. Um, um. Mais um. E só mais um. Pára. Apanha-se o coração que esvoaça perante nós, enfia-se pela garganta como quando procurávamos vomitar (já lá vão anos) e espera-se que ele encontre o seu lugar. E de repente, como se nada fosse, o coração volta a bater como se estivéssemos a deambular pacificamente no Terreiro do Paço. Diabólico.

04.00h: Sabemos que um americano e dois guias saíram antes de nós. Ao limpar o suor da ruga na testa que sobra entre a fita da lanterna de cabeça e o gorro (é que as nossas cabeças portuguesas não foram feitas para usar gorros à séria, não foram) olhamos para cima e vemos três luzinhas. Três míseras luzinhas. A massa negra vertical entre nós e as luzes é enorme, gigantesca, mastodôntica, pantagruélica, monstruosa, fria, ventosa, nevada, despropositada, escura, escura, escura. O nosso arfar é aflitivo. O coração partiu, foi-se. É absurdo, sobramos nós, cones sem gelado, rissóis sem recheio, cascas vazias sem tremoço. Mais um, a custo. E um.

05.00h: Pausa, inclinada, muito inclinada. Exausto, o Miguel escorrega e despenca-se pela pendente lisa de gelo. Lança um urro para avisar o Marcial que instantaneamente espeta a picareta no gelo e com a velocidade de um raio rodeia-a com duas laçadas de corda. A corda dá um esticão violento e o Miguel fica dependurado como uma carocha virada do avesso, a espernear. "Fija los grampones!" gritam-lhe os outros guias enquanto se mobilizam para ajudar o Marcial a puxar a corda. Barbosa du Bocage entra em cena e com dois estribilhos o VdAlpinista volta a juntar-se aos companheiros. O João, esgazeado, olha fixamente, sem força para levar a água à boca.

06.00h: O espírito que possuiu ontem o Joaquim aloja-se no ""Oliveira" e ele salta como uma lebre. O Joaquim balbucia uma recriminação, o João e o Miguel sobem como condenados. É uma parede. E a mesma. E ainda a parede. Nasce o sol. E então? Mais um. E tropegamente mais um. Sacam-se os óculos de sol.

07.00h: Gritos. IIIhaaa!, alguém grita acima, acima de algo que não se vê. Só se vê gelo. As cordas retesam-se, "aí estamos!". A predisposição festiva é nula, queremos factos. Em que parte do mundo estamos? Porque estamos aqui?

07.15h: "Es la cumbre!" grita alguém irritantemente inconsciente do estado catatónico português. Faltam 20 metros, cordas esticadas, grampons no gelo, palavrão. 10 metros, corda esticada e um som gutural parecido com uma gargalhada, prontamente dissolvida pela visão da profecia: "los penitientes". O Joaquim já lá está.

07.30h: "Los penitientes", a profecia cumpre-se. Entramos num labirinto de estranhas figuras de gelo, tropeçamos nos salientes, trepamos degraus de gelo e quando conseguimos elevar a cabeça acima do branco só vemos pontas difusas, virgens retorcidas, santos estropiados, o sol vai alto, há que trepar e de repente, um abraço. "He he, la cumbre!". Esgazeados, somos puxados para um pináculo de gelo, chegámos. Não há força para a alegria, não há alegria para as pernas, não há pernas para o esforço. Há muita luz, o céu descobre. A custo alçamo-nos. Um abraço desajeitado. O coração foge-nos outra vez. Trocamos de coração como se fossem cromos. Foto. Foto. Foto.

No próximo capítulo: o regresso.