Como prometido no último post, aqui segue o relato na primeira pessoa dos últimos grandes momentos desta aventura:
"Lo siento, lo siento", lamenta-se o Marcial, ao mesmo tempo que os VdAlpinistas descalçam as infernais botas rígidas e vapor húmido se eleva das meias infectas no ar gélido do barracão. Já lá fora, o João, num misto de alívio e pragmatismo, conforta-o com as verdades universais da liderança. Aos poucos, a paz assenta.
O Chimborazo permanece irredutível, pelo menos para nós.
O autocarro arranca ronrorando encosta abaixo, seis da manhã, as riscas no céu não vencem ainda o fluorescente do conta-quilómetros, única luz no habitáculo. Equatorianos na primeira fila, VdAlpinistas cá atrás, quatro filas vazias no meio. "Tinhas de o abraçar?", pergunta inconformado o Joaquim, "o gajo errou. É pá, errou, eu se errar, nenhum cliente me conforta, ou acertas ou erras e nós não temos perdão. Porquê é que o gajo há de ter?" O autocarro e o Joaquim resmungam durante as três horas seguintes.
Às nove da manhã chegamos ao hotel, já o sol vai alto. Despedidas breves, exceto a do Joaquim: "Mañana volvemos al Chimo ha?". "Ya, ya" responde-lhe Marcial, num misto de compreensão paternal e fadiga matinal depois de uma direta. "Ya meu" é o coro português, ansioso pela cama.
O pequeno-almoço de 5-ª feira decorre sem história e é tempo de acertar a logística para o check-out e o rumo para o último dia e meio em Quito, countdown para o regresso semi-satisfeito a Lisboa. Bagagem carregada no autocarro, expressões faciais preparadas para a despedida senão quando o Joaquim anuncia em tom desafiante: "O Marcial e eu vamos voltar ao Chimbo". Olhares espantados perscrutam a expressão do Joaquim e torna-se clara a gravidade da situação: está possuído. "Então e o teu joelho pá?". "Vamos voltar ao Chimbo" é a resposta seca que repete várias vezes, indiferente à sorte dos chineses, do lince da Malcata e do resto da trupe. "Bem", dizem ainda algo incrédulos o João e o Miguel, "venham de lá esses ossos, boa sorte" num abraço com fortes palmadas nas costas tentando expulsar o que quer que o possuía. Debalde. Com uma bondosa expressão carregando milenar sabedoria e paciência, o Marcial carrega o seu jeep, despede-se do João e do Miguel e arranca com o Joaquim. O João e o Miguel sobem para o autocarro com o infatigável Victor e partem para Quito, num silêncio incómodo que se arrasta durante a primeira hora de viagem.
"Si cariño, por las cinco estoy, hoy durmo en casa" anuncia Victor à mulher com a satisfação do dever cumprido, segurando o telemóvel com uma mão e manejando com a outra o volante no meio do tráfico assassino. "Bom, Quito" diz o João, num tom banal. "Pois é", responde ainda mais banalmente o Miguel como se fossem duas comadres dependuradas em janelas confins na Madragoa. "Pois é, pois é", em jeito de velho alentejano sentado ao sol no adro da igreja. "É mesmo" sai com um suspiro entediado-aldrabão. Um "É pá..." curto solta-se como um balão de feira e fica suspenso no ar. "Pááá" longo, admitindo algumas possibilidades estatisticamente improváveis. "É pá. Pá", aliviando a alma. "Pá", sincopado e mais firme, responde. Ambos desencurvam as costas e sentam-se mais direitos. Os olhares ainda não se cruzaram porque o Miguel vai sentado mais à frente, à direita, no lugar individual de quem não oferece conversa e o João vai na última fila no lugar dos meninos mal-comportados. "É pá, e se ...?" "É pá, pois, se calhar". "Achas?" "Porque não pá?" "É pá, se calhar é mesmo pá". "Pá?" "Pá!". E a riqueza semântica de uma profunda conversa masculina que mulher alguma jamais entenderá desagua na pré-decisão que palpitava dentro daquele autocarro desde que arrancou de Baños. Cruzam-se finalmente os olhares: "Vamos?" "Bora!" "É pá, mas temos de fazer uma coisa antes" diz o Miguel, imbuído da obsessão cirúrgica com que atormentava os atónitos empregados do hotel acerca da fórmula de cozedura das batatas e da raça das vacas de onde provinha o bife, "precisamos de perceber se o Marcial está a fazer um número com o Joaquim e se vão voltar a meio ou se há mesmo condições para lá chegar". Pausa. "OK".
"Alô". "Alô Marcial, que tal, soy Miguel". "Hola Miguel" responde o Marcial, com resignada simpatia mas claramente roçando a fronteira da sua talvez-não-infinita paciência, receando porventura que tivesse ficado esquecida na mochila do Joaquim uma máquina fotográfica ou um par de ténis e que os dissidentes, assaltados por um capricho, lhe pedissem que voltasse para trás. Um curto diálogo faz-nos perceber que o Marcial está mesmo determinado a subir até ao fim e traz boas notícias: nevou no Chimborazo. Partilha a sua opinião de que nos considera a todos em condição física suficiente para alcançar o cume e compromete-se a seguir a rota alternativa à que ditou o falhanço da primeira tentativa. "Pues estupendo Marcial, João y yo también vamos." Gargalhada do outro lado. "Como hacemos?" "No problema, vamos comer a casa de mi tía en Ambato, donde crescí, aí nos vemos a la una" e desligam. O Marcial e o Joaquim entreolham-se no jeep e explodem numa gargalhada, a expedição estava relançada!
Do lado do autocarro havia que dar a má notícia ao inefável Victor que, depois de uma semana fora de casa, se aprestava para o reencontro com a sua Juanita nessa noite. A rádio soluçava o merengue clássico de Joseph Fonseca "Noches de Fantasia" e ele trauteava entusiasmado tamborilando os dedos no volante:
Hoy he vuelto a encontrarla despues de tanto tiempo Fue difícil hayarla y ahora me arrepiento Estaba tan callada su boca pintada De color mas rojo que la sangre mia Y despainada descuidada maltratada En una palabra abandonada
Solo de trompete e entra o refrão, o Victor abana a cabeça entusiasmado como um Stevie Wonder speedado:
Noches de fantasia las que vivi com ella En busca de una estrella sin poderla alcanzar
Num assomo de virilidade latina o Victor acelera encosta abaixo, salta por cima do duplo risco contínuo amarelo, ultrapassa uma furgonete, um carro, uma camioneta, o autocarro de passageiros ao nosso lado dá luta e acelera também, aproxima-se uma curva à direita, à esquerda um abismo com pelo menos duzentos metros, duas vacas miram-nos com pouco interesse, a curva é fechada e não se vê quem aí vem, o condutor de passageiros olha para nós, lança um sorriso sinistro ao Victor e reduz para terceira preparando a curva, entram as congas:
Antes de conoserla solo amaba en silencio Y ella trajo a mi vida el fuego en un beso Y haci nos encontramos amamos soñamos Com la misma fuerza que nos trai la vida Y fuimos novios amantes e ignorantes De que el cruel destino nos separara
O Victor devolve o olhar ao condutor do autocarro de passageiros sem piscar, cerra os dentes, fixa a estrada, mete a quarta, ganha um, dois, três, cinco metros, a curva alarga-se, surge o espectro de um camião- frigorífico branco "Carnes Ardian" na outra faixa, o Victor bufa, seis metros, vamos despencados, aperta, aperta, oito metros, o condutor de carnes tem olhos azuis e uma verruga na bochecha, o Victor guina à direita, o autocarro de passageiros trava a fundo, voltamos à nossa faixa a 100 km/h, as carnes rasam-nos e toda a orquestra entra a fundo num clímax:
Noches de fantasia las que vivi con ella En busca de una estrella sin poderla alcanzar Noches de fantasias las que vivi con ella En busca de una estrella sin poderla alcanzar
"Victor" - nada. "Viiiiictor", chama o Miguel, ainda a hiperventilar à conta das Carnes Ardian. Pior a emenda do que o soneto: o Victor roda o tronco para trás e apesar de deslizarmos a velocidade ultrassónica encosta abaixo, assenta serenamente o olhar lá para trás como se tivéssemos todo o tempo do mundo para debater uma séria questão geoestratégica, o autocarro é agora conduzido exclusivamente pelo seu ventre. "Victor, cambio de planes. Nos vamos tambíen nosotros al Chimbo." O Victor vira-se de novo para a frente, lança um rápido olhar de desprezo à estrada somente para confirmar o mapa que tem na cabeça e, coroando o filme de terror viário em que nos encontramos, gira-se todo para trás, todo. A única peça do seu corpo que está virada para a frente no sentido da estrada é a ponta do pé assente no acelerador, a cabeça invertida do "Exorcista" foi aqui substituída pelo dedão do pé do Victor que nos conduz enquanto voam ao longo das janelas vacas, carros, ervas e sacos de plástico. "Qué???", pergunta num lancinante pedido de desmentido. "Perdona Victor, es pesado para tí, ya lo sabemos, pero Joaquín está possuído, no podemos lejar lo chico solo, nos vamos nosotros también al Chimbo. Lo vamos intentar esta noche de nuevo. Por favor, dáte la vuelta, y vamos a encontrar Marcial en Ambato, en casa de su tía." O primeiro assomo de desespero dilui-se instantaneamente e espraia-se pela sua cara a extraordinária gentileza com que fomos brindados por todos com quem nos cruzámos do primeiro ao último momento que passámos no Equador. "Ya", suspira conformado. "Ya", confirma após alguns segundos. Damos - já serenamente - a volta no primeiro alargamento da estrada, para sobressalto do jovem que se preparava para regar a esquina de uma casa a quem o corpulento retrovisor do Victor rouba o boné em jeito de escalpe.
"Esta es mi tía" diz orgulhoso e ternurento o Marcial...
O relato segue dentro de momentos...