Numa fria mas inusitadamente soalheira manhã de Inverno dei comigo no terraço do meu escritório em Londres, com fita adesiva a tapar-me a boca e uma câmara fotográfica apontada à cara. Eu e mais uma dezena de outros membros do gabinete de imprensa da Amnistia Internacional, todos juntos, a partilhámos a mesma situação bizarra.
Felizmente para nós, este não era um daqueles retratos de "prova de vida" de reféns tirados por raptores, com o objetivo de obter um resgate. Mas estávamos ali porque - em certo sentido, pelo menos - nos sentimos sequestrados.
Todos os dias divulgamos numerosos casos de direitos humanos a serem violados em todas as partes do mundo. Um rol dos piores horrores que se pode imaginar preenche todo e cada um dos nossos dias de trabalho.
Mas, como jornalistas e profissionais de comunicação, desta vez sentimos que o caso era pessoal. Sentimo-nos especialmente compelidos a assumir uma posição e a dar voz - ou protestar silenciosamente, neste caso - à situação difícil que está a ser vivida por outros jornalistas em outros países, os quais se veem privados da sua liberdade apenas por fazerem o seu trabalho.
O correspondente da Al-Jazeera Peter Greste e os produtores Baher Mohamed e Mohamed Fahmy estão detidos no Egito desde 29 de dezembro de 2013. Voltam esta quarta-feira, 5 de março, a tribunal, num processo em que estão acusados de cometerem o crime de "propagação de notícias falsas" prejudiciais à segurança nacional e por darem assistência ou pertencerem a um grupo considerado terrorista pelas autoridades egípcias [a Irmandade Muçulmana].
Todos eles, assim como a direção da Al-Jazeera, negam categoricamente a veracidade destas acusações. O processo abarca ainda vários outros jornalistas e estudantes de Jornalismo, assim como correspondentes estrangeiros que estão a ser julgados à revelia.
A Amnistia Internacional entende que a detenção destes jornalistas e profissionais dos media constitui um enorme recuo da liberdade de expressão que envia a mensagem assustadora de que apenas uma narrativa é aceitável atualmente no Egito, aquela que tem o aval das autoridades egípcias.
Um caso que é apenas a ponta do icebergue
Muitos outros profissionais dos media estão detidos e a serem julgados no Egito, apenas por fazerem o seu trabalho. Os jornalistas Islam Farahat e Amr al-Qazaz, da rede de notícias Rassd, estão detidos desde novembro de 2013 e o caso deles atribuído a julgamento por tribunal militar, onde são acusados de fuga de informação relativa a documentos e vídeos sobre o ministro da Defesa egípcio, Abdel Fattah al-Sisi.
A Amnistia Internacional considera que estes jornalistas são prisioneiros de consciência, e que foram detidos apenas por exercerem o seu direito de expressão. Caso sejam condenados, podem enfrentar penas de prisão perpétua.
O Egito tem registado uma escalada alarmante de ataques à liberdade de imprensa desde a deposição do Presidente Mohamed Morsi em julho do ano passado. Com a aproximação das novas eleições presidenciais, uma imprensa livre e um debate público participativo é ainda mais importante do que nunca.
E infelizmente, o Egito não está sozinho neste retrato de repressão, intimidação e detenção de profissionais dos media. No relatório anual Índice Mundial da Liberdade de Imprensa, a organização Repórteres Sem Fronteiras analisou 180 países, com a conclusão de que situações de conflito e o recurso generalizado de governos a políticas de segurança nacional e de vigilância estão entre os fatores que mais provocam uma clara deterioração da liberdade de imprensa em todas as partes do mundo.
As conclusões do relatório anual Ataques à Imprensa, da organização Comité de Proteção de Jornalistas, são igualmente preocupantes. No final do ano passado, 211 jornalistas estavam presos e 99 foram mortos no desempenho do seu trabalho a nível global.
Os ataques aos jornalistas são bem mais do que ossos do ofício. Como a Repórteres Sem Fronteiras frisa, o condicionamento estratégico dos media para tentar controlar as notícias e a informação "viola as garantias consagradas nas leis internacionais, em especial no artigo 19 da Convenção Internacional de Direitos Cívicos e Políticos, na Convenção de Genebra de 1949 e nos protocolos adicionais 1 e 2, de 1977, à Convenção de Genebra".
Padrão de repressão e ataques aos jornalistas
A Amnistia Internacional documentou também um padrão mundial em que os jornalistas enfrentam formas de repressão e ataques violadores da liberdade de imprensa. No conflito armado na Síria, dezenas de jornalistas que estavam no terreno a divulgar casos de violações de direitos humanos foram mortos, presos arbitrariamente, detidos, forçadamente desaparecidos e torturados.
A organização reportou também situações em que, sem conflito armado, jornalistas e outros profissionais dos media são atacados, em países como o Azerbaijão, Libéria, México e Sri Lanka - apenas para nomear alguns dos casos mais recentes.
Os jornalistas são frequentemente ameaçados, fisicamente atacados e detidos com base em acusações falsas, incluindo a de "porem em risco a segurança nacional" e "atos de terrorismo".
O jornalismo não é um crime. O jornalismo não é terrorismo. O jornalismo é um pilar importante da liberdade. O trabalho de noticiar responsavelmente sobre o que se passa no mundo e que influencia a vida das pessoas é um pilar essencial em qualquer sociedade livre.
E esta liberdade é tão importante que, quando a Al-Jazeera lançou um dia de ação global em prol dos seus jornalistas detidos e sob julgamento, milhares de pessoas em mais de 30 cidades no mundo inteiro envolveram-se e fizeram-se ouvir nas redes sociais. A hahstag #FreeAJstaff, usada para dar visibilidade e impulso à campanha, foi reproduzida já 250 milhões de vezes só no Twitter.
Quando os jornalistas são ameaçados, detidos, atacados ou de qualquer outra forma forçados ou intimidados ao silêncio, é a verdade que morre. E cabe a todos e cada um de nós fazer tudo para que permaneça viva.