Sinais Vitais

Queimadas vivas



Rapariga em Zadan no deserto do Thar

 

Bollywood é a maior indústria cinematográfica do mundo. Produz cerca de oitocentos filmes por ano. Todos diferentes e todos iguais. A história de um amor pelo qual ninguém daria grande crédito, uma perseguição policial e oito coreografias para ilustrar os diálogos. É a grande ficção. Porém, falta aquele sabor a cenas dos próximos episódios, a sequência de vários dias e a curiosidade de saber como acabará a história. Na Índia, falta telenovela.

Qualquer querela entre vizinhos está no bom caminho para ser um épico nacional.

 



Mulheres lavam a roupa nos bancos do lago Pichola em Udaipur

 

Depois de cinco semanas a assistir ao desenvolvimento do pede ou não pede desculpa de um guru de um ashram por se ter vestido ao jeito de um guru Sikh, a Índia deixou-se surpreender com o estado do Gujarat para seguir, sem opinião formada, a história de Pooja.

Pooja é uma rapariga como tantas outras. Chegada a idade de casar, entre os 15 e os 18 anos, a alcoviteira da sua terra começou a auscultar as famílias de rapazes à espera da mesma sorte. Conferidos os mapas astrológicos de cada um e consultados os deuses para saber se se tratava de uma união com futuro, reuniram-se as famílias para discutir assuntos de ordem prática. Castas, dotes e demais pragmatismos seculares não figuram na Constituição indiana mas pouco pode a lei do papel contra a raiz da tradição humana.

 



Os pais de um noivo passeiam-se nas ruas de Udaipur

 

Pooja não tinha dote de agrado da família do marido mas mesmo assim houve casamento. Habituou-se desde os primeiros dias de casada à violência doméstica. O marido batia, a sogra batia, o sogro batia, o cunhado batia. Deu à luz o primeiro filho do casal. Pecado dos pecados, carma de uma união amaldiçoada por um dote miserável, nasceu uma rapariga, fonte de tristeza e lamento eterno. A tortura física deu lugar à psicológica, ao insulto e à intimidação. Foi à polícia mas esta mandou-a regressar a casa. Bebeu veneno e não morreu. Raiva. Nada disto é suficiente para ser notícia na Índia. Vidas como a de Pooja são a regra, não a excepção.

 



Noivo em Pushkar

 

A notícia surgiu no dia em que Pooja desfilou em roupa interior pelas ruas de Rajkot. A emoção da história de Pooja está em saber o que é que a lei indiana tem a dizer sobre a decência, se há algo escrito sobre a roupa autorizada a exibir e que sanções se aplicam a uma pessoa que grita em cuecas a sua condição humana.

 

O sati, ou a imolação voluntária de uma viúva na pira do seu defunto marido, foi proibido à distância pela Rainha Victoria. Em 2007, os novos satis são filhos da cobiça. São os conhecidos acidentes de fogão. Acidentes orquestrados por uma sogra avarenta e um marido ganancioso quando o dote não corresponde às expectativas da família. Uma mulher desfigurada é votada ao abandono. Perde a utilidade porque está estragada. As que não morrem queimadas, acabam por se suicidar. As outras vemo-las escondidas no lixo da rua implorando esmola. Os maridos ficam livres para reclamar nova esposa e novo dote.

Pooja está viva e tem o corpo inteiro mas continua à espera de saber se é crime ou não passear seminua pelas ruas do seu país. Apareceu na televisão e finalmente as suas queixas foram registadas pela polícia. Estas são as novas queimadas vivas. 

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Casamento indiano

Tradicionalmente, os casamentos na Índia são arranjados. São contratos entre famílias em que os noivos mal se conhecem. Casamentos por amor são uma raridade mas já ocorrem nas grandes urbes, apesar de não serem bem vistos pela sociedade. Quando o meio é pequeno é fácil saber quem são os candidatos a casar. As raparigas casam entre os 15 e os 18 e os rapazes entre os 18 e os 22 anos. Quando ambas as famílias reconhecem que é a melhor opção (ou muitas vezes a opção possível) há que verificar que os noivos estão em sintonia astrológica e consultar os deuses, fazendo sempre muitas ofertas para que tudo corra pelo melhor. No entanto, nas grandes cidades os candidatos procuram-se através de anúncios no jornal ou, mais recentemente, na internet.

A parte mais importante de todo o processo é o dote da rapariga. Num mundo em que a única aspiração da mulher é renascer num corpo de homem, a família da noiva é obrigada a empenhar-se para gerar um bom dote, caso contrário viverão atolados na vergonha até ao fim dos seus dias. Muitas vezes a família do noivo pede um dote superior ao que a outra família pode oferecer apenas na tentativa de extorquir mais dinheiro. Tal é tolerado porque qualquer coisa é melhor que ter uma filha por casar em casa. O nascimento de uma rapariga é um fardo tão grande que o infanticídio feminino é prática aceite nalguns meios. Em estados mais conservadores da Índia a proporção entre sexos chega às 880 mulheres por cada 1000 homens. A situação apenas se inverte com as raparigas da casta brâmane, em que são estas famílias quem exige o bom dote e impõe as regras.

Chegado o dia da cerimónia, a noiva veste um sari encarnado e orna-se de ouro, símbolos de felicidade e prosperidade, respectivamente. As mulheres levam a noiva até ao local do casamento, normalmente um terreiro decorado, e esperam a chegada de quem realmente importa em toda aquela cerimónia: o noivo e a sua família. Para que nada falhe, instala-se um gerador ensurdecedor para iluminar continuamente a celebração.

O noivo sai de casa a cavalo e trajando como um marajá. À sua frente seguem os amigos embriagados (nos estados em que o álcool é permitido) dançando ao som da música da moda. O aparato é tanto maior quanto as posses das famílias. Em zonas extremamente pobres mas que não podem fugir a estes ritos, fazem-se muitas vezes casamentos colectivos para partilhar as despesas. Chegam-se a casar crianças com 8 anos que permanecem em casa da família até atingirem a maturidade.

A cerimónia é realizada na presença de um sacerdote que acende um fogo sagrado à volta do qual o casal passa sete vezes. Estão casados. O resto da noite é de festa até de madrugada. Todos têm que ter a certeza que os noivos não têm relações sexuais na primeira noite de casados. Esta é uma prática que vem dos smriti, os livros sagrados dos leigos, em que um casal de deuses resolveu amar-se carnalmente na noite de núpcias e gerou um monstro.

Luís Mieiro,

médico