Estou a ler, devagar e às vezes com a ajuda de um dicionário ambulante, - uma maneira pouco delicada de me referir à minha mulher - "O Crime do Padre Amaro", em português. É a terceira obra do mestre português que leio, depois de "Os Maias", que é o começo obrigatório e, a seguir, a "A cidade e as serras".
Escrevo isto com uma certa trepidação. Vocês obviamente conhecem a obra de Eça de Queiroz melhor que eu. Faz parte da educação portuguesa, da cultura portuguesa. Nós temos Dickens, os franceses Zola, e vocês o tal Eça. Estou a arriscar muito ao pôr o pé em águas já bem navegadas por outros, mas não consigo controlar o meu entusiasmo. Ele é mesmo brilhante, por muitas razões. Mas, para mim, Eça é brilhante sobretudo porque consegue juntar a arte narrativa à arte descritiva, como quase nenhum outro autor que já tenha lido. Talvez seja uma sorte que, por causa das minhas limitações linguísticas, eu tenha que avançar pelo texto lentamente e, assim, possa saborear devagar cada palavra e cada frase.
Há muita coisa que me interessa nas obras que já li, nomeadamente o pano de fundo político do século XIX, que serve como entrada para a narrativa. Por exemplo, as referências no início de "Os Maias" ao encontro do avô do Jacinto com D. Miguel, a descrição do pároco miguelista da Sé de Leiria, a história liberal de Afonso da Maia.
Mas o elemento mais notável para mim nestes romances é a sensualidade. Eça de Queiroz é incapaz de descrever uma cadeira sem entrar numa descrição do tecido que a cobre, um vestido sem dizer a sua cor, uma mulher sem fazer referência aos braços, aos olhos. Porque a sensualidade nestes livros é também dos objectos, não apenas das pessoas e cobre todos os aspectos. Basta citar o fim do segundo capítulo "Amaro abriu o seu Breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o tecto, através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se".
Outro aspecto destas delícias descritivas está nas refeições; não só a comida - o famoso peixe que fica preso no elevador na casa do Jacinto em Paris, les petits pois à la Cohen que faz parte do hilariante jantar do Cohen, a sumptuosa cabidela do Abade da Cortegaça - mas também o ambiente à mesa. O almoço do abade e o jantar dos Cohen seguem ritmos bastante parecidos, com explosões violentas; o grito de Ega "Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola", a fúria do Amaro quando o padre Natário lhe pergunta com espanto "toma a confissão a sério?"; e depois das explosões a calma, com as frases para pacificar as almas perturbadas "há talento, há saber" do Cohen, a chegada do vinho do Porto para tranquilizar Amaro.
Ele é, de facto, um génio; e falta-me apreciar quase toda a sua obra. Algumas recomendações suas para o próximo livro?