I. A velha discussão voltou à tona em Paris. O governo francês queria distinguir Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Claro que esta intenção levantou enorme poeira junto da opinião pública. Isto porque Céline era um sacana da pior espécie, um fascista e antisemita das primeiras linhas. Aliás, Céline tinha mesmo a pole position do antisemitismo. A Associação de Filhas e Filhos de Judeus Deportados da França afirmou que o governo francês estava a distinguir o "francês mais antisemita de sempre" (tendo em conta o país em questão, um feito de monta). Perante estas reações, o governo deixou cair a ideia de distinguir o escritor favorito de Nicolas Sarkozy.
II. Não sei se um governo deve distinguir escritores. Não sei se um Estado deve dar pulinhos literatos. Mas sei de uma coisa: Céline é um grande escritor. Ponto. A sua canalhice pessoal e política não deve entrar na apreciação da sua qualidade enquanto escritor. E, neste ponto, Céline nem sequer está sozinho: Knut Hamsun, autor de um livro fundamental ("Fome"), era nazi, e isso até é visível em algumas das suas soluções estéticas; a grande Riefensthal foi a cineasta do nazismo. E, na outra ponta do totalitarismo, também encontramos as Riefensthal vermelhas: Eisenstein foi o cineasta de Estaline, mas isso não retira um milímetro de qualidade aos seus filmes. Na avaliação da qualidade da obra, as ideias políticas do autor devem ficar à porta, mesmo quando são ideias nojentinhas.
III. Mas, atenção, dizer que "Céline era um pulha, mas escreveu grandes romances" não é o mesmo que dizer "Céline não era um pulha, porque escreveu grandes romances". Uma coisa é dizer que a apreciação estética (escritor) é inume à apreciação moral e política (homem). Outra coisa, bem diferente, é dizer que a apreciação estética anula a apreciação moral. E é isso que a elite francesa - mais uma vez - está a fazer. "Censura", "cedência ao lóbi judaico", eis alguns dos mimos que o governo francês está a receber depois de retirar a intenção de comemorar Céline. Como salienta o "The Guardian", podemos ver nestas reacções o velho cliché francês: o artista está acima do bem e do mal. Em Paris, um pedófilo deixa de ser um pedófilo se for alguém com lombada. Meus amigos, um pedófilo pode fazer grandes quadros, mas não deixa de ser um pedófilo. Um antisemita pode fazer grandes livros, mas não deixa de ser um antisemita. A grandeza artística não limpa a podridão moral. Sim, "Viagem ao Fim da Noite" é um livro colossal, mas Céline era um pulha de altíssimo quilate. E uma biografia de Céline não pode deixar de registar isso.