Anda por aí uma grande agitação por causa de um livro, As Cinquenta Sombras de Grey, de E. L. James, uma dona de casa que resolveu ensinar outras donas de casa a amar como deve ser a vidinha dos lençóis. Não tenho nada contra a agitação, aliás, considero-a bastante útil para a saúde pública. Só gostava de relembrar novamente um pormenor: a primeira E. L. James foi uma portuguesa, Mariana Alcoforado, a freira alentejana que viveu entre 1640-1723. Tal como diz Helena Vasconcelos em Humilhação e Glória, Sóror Mariana Alcoforado "ensinou a amar uma vastíssima descendência de mulheres e de (alguns) homens". Repare-se que esta descendência que aprendeu as artes da cama com a nossa freira é uma descendência europeia e não apenas portuguesa.
Nascida no caos de 1640, Mariana foi forçada a entrar num mosteiro (Nossa Senhora da Conceição) aos onze anos. Ao que parece, os conventos daquele tempo eram locais polivalentes, assim ao estilo do pavilhão multiusos. Se as outras irmãs usavam as celas para o recolhimento, Mariana usou a sua cela para o reconhecimento pormenorizado do cavaleiro Chamilly (ou Conde Milly), um bonitão francês que esteve aquartelado em Beja (1663-1667) aquando das Guerras da Restauração. A paixão que devia ter sido direccionada para o Altíssimo foi assim transviada para uns amassos bíblicos. De seguida, Mariana descreveu as festividades numa série de cartas que popularizam o estilo epistolar e o registo erótico junto do público letrado da Europa. Em 1669, as famosas cartas foram publicadas em França com o título "Cartas Portuguesas".
Mais tarde, levantaram-se dúvidas sobre a autoria do livro. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, não acreditava que uma mulher estivesse à altura daquela prosa: "as mulheres não gostam de arte ... é possível que alcancem algum sucesso com pequenos trabalhos que só necessitem de algum espírito e malícia. Elas não sabem descrever ou sentir o amor. Aposto tudo em como estas cartas foram escritas por um homem". Resposta da nossa Helena Vasconcelos? "Estou certa que aquelas cartas foram escritas por uma mulher, Mariana ou qualquer outra", porque - e esta é a minha parte favorita do livro - "só as mulheres sabem contar sobre o tremor do corpo". Cara Helena, o Jean-Jacques não sabia nada da poda.
PS: um editor atento trataria de reeditar as cartas de Mariana. O porno para mamãs começou entre nós.
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