Quero ver outra vez a ópera Banksters, de João Botelho, que foi a Vasco Graça Moura "esculpir" o texto. Nela é como se estivessemos a ver um filme assinado Botelho, mas em carne e osso, corpo-a-corpo. As "óperas" que ele incarna nas suas "telas", mas agora como ópera mesmo. Se calhar é verdade a teoria de que a ópera é a arte mais completa. Porque tem lá todas as outras, e neste caso, também a sétima. O texto, "adaptado" por Vasco Graça Moura, é de José Régio, que defendia que o cinema era a síntese de todas as artes. Em que ficamos? A questão nem é essa...
A experiência proporcionada por Banksters é a afirmação de uma coisa "maior", de uma dimensão que ultrapassa a razão, embora seja esta a reconhecê-lo. A unidade ou fusão das artes em jogo no espetáculo - "numa nota só" (e Botelho reconhece sempre que a música é a matéria que trabalha) - não se baseia numa construção, embora haja ali muito, muito trabalho (imagino os cigarros fumados). A unidade que se mostra a quem a vê, acontece por um excesso. Imprevisível. Não é por acaso que no primeiro acto, à esquerda, imponentes, estão os vitrais "roubados" a Gerhard Richter. A apontar para o "mistério", para uma dimensão "desconhecida" mas "presente", que ilumina de escondida. Prodigiosa a capacidade de deixar que o prodigioso aconteça: uma unidade buscada, que aconteçe ali e então, mas que "opera" num tempo e num espaço que nos escorrega por entre os dedos. É preciso talento, e esse, por muito que se "opere", é, pura e simplesmente, "dado".
O trabalho que se nota nesta ópera resulta numa coisa 100 vezes mais. Música forte mas subtil; orquestra numa execução contida mas brilhante à direção de um condutor totalmente entregue às "entregas" em ação, no palco e por baixo dele; cenários, guarda roupa, sóbrios, elegantes, apropriados, e a "obedecer" ao estilo e às cores explosivas, sedutoras, cheias de batons e veludos, e ternura, que já conhecemos dos filmes do realizador; um coro do S.Carlos investido duma humildade e de uma grandiosidade comoventes, vestidos e etéreos, bem audíveis mas a deixar um silêncio arrebatador; um "ramo" de representações impecáveis, todos eles e elas, entregues ao "papel" com um talento inquestionável, todos; uns bailarinos encarnando uma sexualidade impregnada de complementaridade, a marcar todos os estilos musicais, do rock à valsa, no passo rigoroso, e aos toques " surpresa" saídos da música. Tudo a passar pela "escrita" do encenador. A " isso", e à bela Música de Nuno Corte-Real, se deve a obra, a "nota só", numa fusão desatómica. Tudo e ligado.
Não há fissuras, nem fora de tom. E se há porventuras falhas que, essas, só os experts em ópera sabem identificar, elas - que até as deve haver porque se trata de obra humana - ficam seguramente num segundo plano que em nada ofusca a beleza que se dá a intuir.
A ópera é "tão consoladora" que nos faz mergullhar num oceano onde a nossa vida está implicada. Leva-nos a Régio, leva-nos a Jacob, leva-nos ao Anjo, leva-nos a Deus e ao Diabo, leva-nos à Bíblia, aos Genesis 32, leva-nos sobretudo às artes, todas, "em palco", aos tais "roubos" que Botelho referiu numa entrevista -aquando da estreia - ao Expresso. Leva-nos sem querer (im)piedosamente ao centro de nós mesmos. À luta que vivemos com as perguntas que trazemos desde que somos "homens" e que a arte, se é arte, não nos deixa esquecer, assim nos apanhe a jeito.
Jacob passou a noite a lutar com "um estranho", e não foi por isso que deixou de lutar. E lutou mesmo. Nada de onírico, ou de ilusão. Não. Lutou e bem: ficou coxo e mudaram-lhe o nome, passou a chamar-se Israel. O nosso protagonista não se limitou a ser morrido.
Não sei com que nome João Botelho ficou, mas é agora mais João Botelho e ficou com uma perna, um passo, diferente. Esperamos mais. Ópera? Cinema? Não é essa a questão. "E eu quem sou?" (Leopardi). A arte nasceu para "responder" a isto, ou para viver isso, e promete ficar. Não é uma evasão estético-sentimental dos problemas do quotidiano. Eu própria de lá saí com um andar diferente, marcado. E a conhecer melhor o meu nome. E não se trata de ética, nem de intenções, mas sim de "pura" Física. Energia. O trabalho aquece!