Eduardo Lourenço foi convidado a participar no painel final da conferência sobre a ditadura, que há dias teve lugar na Gulbenkian, como aqui referi. Cabia-lhe apresentar os ex-presidentes Jorge Sampaio, Ramalho Eanes e Mário Soares. "Eles não precisam de apresentação. Eu é que precisava que me apresentassem....a mim mesmo." Por isso reconheceu uma quase desnecessidade a sua presença ali. Mas discursou como ninguém, porque "nada se faz sem paixão" (palavras de Hegel citadas por ele na sua intervenção) e dessa poucos têm. Pelo que disse, situou-se no registo do "quis saber quem sou, o que faço aqui", mola de arranque daquela madrugada de há 40 anos. Ou no de Luis Miguel Cintra, ontem na estreia sua nova peça, ao pôr em Hermes (mensageiro dos deuses) a pergunta aos homens, em particular aos que exercem o poder, no caso o jovem Íon: "Nunca te interrogaste qual é a tua origem?". É a pergunta que subjaz a qualquer fazer, a qualquer comemoração. Impossível responder? Ainda no "Íon", alguém diz que "nada há de humano que seja desprovido de esperança" (seguiu-se como música de fundo uma Avé Maria, de Schubert). E Mandela disse-o também nestas palavras: "Tudo é considerado impossível até acontecer". Verdade ou mentira?
Ana Maria Caetano e Otelo na mesma mesa? "Mas isso... não é possível." Mas foi. Na mesa que antecedeu a final, deram o seu testemunho acerca da ditadura, e no final, cumprimentaram-se sem formalismo. Referindo-se ao acontecimento disse Lourenço: "Foi um momento sublime de recordação". Do 25 de Abril? Sim. 25 de Abril que considerou como "uma divina surpresa". E, já mais para o fim da sua intervenção, fez votos para que saibamos estar à altura dos tempos. Para sermos "Memoráveis"- utilizou aqui intencionalmente o título do último livro da sua estimada Lídia Jorge.
Daqui a poucas horas virão os discursos das Comemorações. Eu? Deixo as palavras à Beleza que, como um dia disse Dostoievski, haveria de salvar o mundo. Do texto de Luis Miguel Cintra, de apresentação da peça que deve ser vista no S.Luis: "Foi em Pasolini, nas suas cartas a Gennariello, que fui encontrar os enxertos dramatúrgicos que fizemos ao Ion de Eurípides. Quase como se ele dissesse o que eu sentiria se fosse mais valente. Era também a esse nível que eu gostaria que andasse o pensamento dos que agora fazem política partidária. A política sem filosofia? Que contra-senso! Já no Génesis se diz que a árvore da serpente no Paraíso era a do conhecimento, a da sabedoria (...) Que nunca o computador e a internet nos limite a vida a um ecrã! Que nunca o pensamento se torne abstracto, que nunca a síntese nasça por falta de dinheiro para mais que o essencial ou para o pormenor! Mas corremos agora no teatro todos esse risco. Tudo conceptual, que é mais barato. E lá se vai o conceito para deixar em seu lugar o que dá jeito: nada, rotunda preta e nenhuma decoração, nem sequer uma cadeira. E cada vez mais igual a si próprio e cada vez mais uma solução para um problema de produção, e cada vez menos obra de criação, uma invenção. Todos teremos pelo menos de sentir na pele o problema. E é verdade que a pobreza aguça o engenho. Aguça mais o de quem tem mais para aguçar, claro, e aí vamos nós em mais uma competição: quem melhor se sai das condições difíceis de produção, e aí temos tudo a trabalhar para a eficácia em vez de coisa generosa por excelência, descoberta e aprendizagem do prazer. Mas de uma virtude tento não fugir: a lealdade para com o espectador, nosso igual e também nosso irmão, mais apanhado ainda que nós nesta aberração. E que diferença vai de igual a irmão, de uma palavra à outra? O afeto, o coração. Fraternidade sim, que de Igualdade estamos pelos cabelos porque é mentira e alibi, e quanto à Liberdade estamos falados. E esta era uma palavra de ordem de uma revolução de há 300 anos! Bem digo eu que é melhor desordem que formular palavras para uma ordem que tão facilmente degenera em absurda burocracia. Primeiro que tudo: perder o medo, expor-se. Aceitar riscos. Não são palavras de ordem. São desejos que aconteça. Viver a custo perdido. (...). Gosto cada vez mais que se ponham as cartas na mesa e que cada vez menos o teatro seja uma prestação de provas a um juiz. Que seja o que é: uma forma superior de estarmos com os outros. Tenho escolhido para esse encontro muitas vezes textos clássicos. Não há perigo assim de tomarmos gato por lebre e de, como às vezes acontece, pensarmos que, com qualquer guião de televisão se faz filosofia (...) É a memória do 25 de Abril que nos ajuda a entender Eurípides. E a arte daqueles que já são passado para uns mas aos mais velhos ainda nos parecem presente (a arte faz coisas destas): são a poesia de Sophia, as duas canções do Zeca, a melancolia do violoncelo de Casals, a citação do Evangelho de Pasolini com o mesmo "Sometimes i feel like a motherless Child", a sua lucidez revolucionária, quem dão forma à nossa tentativa de conhecer uma deceção antiga e de a tornarmos comparável com um novo presente: a da necessidade da mentira nos cargos de poder."