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Chico Buarque em Lisboa: o malandro e o clássico, o crítico e o sonhador num abraço terno entre Brasil e Portugal

Na primeira de três noites no Campo Pequeno, em Lisboa, e depois de dois concertos no Porto, Chico Buarque ofereceu um espetáculo generoso e terno, onde couberam mais de 30 canções, entre clássicos e pérolas mais ou menos esquecidas. Agradecido e emocionado, o público que encheu a sala aplaudiu a obra - e a vida

Para quem passou boa parte da carreira a cantar as mulheres, assumindo inclusivamente um singular “eu feminino” em muitas das suas canções, a decisão de entregar a uma cantora - a paulista Mônica Salmaso - a tarefa de abrir os espetáculos da sua nova digressão faz especial sentido. À artista de 53 anos, conhecida por interpretar o repertório de numerosos gigantes da MPB, coube mais do que o simples papel de convidada da primeira parte: foi ela quem deu voz aos primeiros seis temas do alinhamento, todos de Chico Buarque, emprestando especial beleza ao clássico ‘Mar e Lua’, história de amor entre duas mulheres e uma das criações mais incrivelmente visuais do veterano, ou ‘Beatriz’, tema cuja letra se alterou subtilmente na presente digressão “Que Tal um Samba?” (em vez de vida, a atriz passou a ter uma “sina”, mudança que o autor justificou lembrando o estranho caso do pintor francês Pierre Bonnard, que fazia - às escondidas - retoques nas suas próprias pinturas, expostas em museus).

Depois desta espécie de prólogo, ou aquecimento, por onde passaram ainda a ecológica ‘Passaredo’ ou, logo na abertura, a ladainha infantil ‘Todos Juntos’, escrita para o musical “Os Saltimbancos”, em 1977, chegou o homem que todos aguardavam: com tímidos passos de dança, Francisco Buarque de Hollanda, 79 primaveras para celebrar daqui a poucos dias, entrou em palco a meio de ‘Para Todos’, canção que dá título a um dos álbuns mais representados no concerto desta noite. Não será coincidência que o carioca faça a sua entrada “em campo” enquanto Mônica Salmaso desfila, na letra da canção de 1993, o elenco do Olimpo da MPB: "Fume Ary, cheire Vinícius/ Beba Nelson Cavaquinho/ Para um coração mesquinho Contra a solidão agreste/ Luiz Gonzaga é tiro certo/ Pixinguinha é inconteste/ Tome Noel, Cartola, Orestes/ Caetano e João Gilberto." A este receituário, que pode continuar a consultar aqui, só falta mesmo acrescentar o nome de Chico que, depois de dois concertos no Porto, esta quinta-feira deu o primeiro de três espetáculos em Lisboa.

Tal como Bob Dylan, que mal o brasileiro “liberte” o Campo Pequeno se apresentará ao vivo nesta sala, também Chico Buarque faz uma seleção criteriosa, ou até caprichosa, das canções que traz consigo para os palcos. Seria fácil construir um alinhamento apenas por clássicos: e a reação da plateia do Campo Pequeno a ‘João e Maria’, a última canção da noite, ou à breve interpelação de ‘Deus lhe Pague’, do clássico de 1971, “Construção”, mostra que esse seria um caminho fácil para a rendição absoluta. Porém, um dos grandes escritores de canções da sua geração prefere montar um espetáculo diferente, que passa mais por um discreto fio conceptual do que (apenas) por refrões para cantar em uníssono. Nesta digressão que agora chega ao fim, ancorada no tema lançado no ano passado, ‘Que Tal um Samba?’, um dos motes parece ser o do otimismo com o Brasil pós-Bolsonaro (nesta canção, fala-se em “espantar o mau tempo”; resgatado a 1968, o quarto tema do serão, ‘Bom Tempo’, estabelece uma ligação com essa bonança após a tempestade política).

Se o octagenário Bob Dylan, companheiro de geração e das letras de Chico Buarque (um tem um Nobel da Literatura, outro veio a Portugal buscar o Prémio Camões), é conhecido (e nem sempre aplaudido) por realizar alterações radicais aos seus próprios temas, o homem que temos perante nós, esta noite, revela-se mais conservador nessas reinvenções. Mas, provando a intemporalidade da sua obra, vai redescobrindo, e partilhando, novos sentidos para as suas composições. ‘Bom Tempo’, por exemplo, foi lançada em plena ditadura militar brasileira, e serve agora de metáfora (mais) feliz para a época que o país atravessa. Nas primeiras palavras que profere nesta “residência” lisboeta, o autor escolhe recordar as palavras d' ‘O Velho Francisco’, um ex-escravo idoso, em fim de vida. No clássico de 1987, as memórias amargas do homem a quem já nem a memória resta são cantadas com uma alegria musical que só pode ser fruto da imensa riqueza do planeta Brasil, que Chico e Mônica tinham acabado de glosar em ‘Para Todos’. E, prosseguindo com o plano de dar voz a quem menos pode, ‘engata’ em ‘Sinhá’, tema do bem mais recente “Chico”, de 2011, mais uma vez relatando a vida de um homem não livre (urgência que, de resto, abordou no discurso de agradecimento do Prémio Camões).

Além da alegria e esperança que o Brasil lhe inspira em 2023, e da omnipresente preocupação com as questões sociais, Chico Buarque introduz com subtileza, nos espetáculos que Lisboa poderá ver até sábado, outros temas: há os autorretratos algo depreciativos (com a ótima ‘Bastidores’, de 1980), as canções mais meta, nas quais reflete sobre o seu ofício e sua matéria-prima (como a genial ‘Choro Bandido’, na qual se assume como cantor “falso”, capaz das mais belas criações), e o amor, sempre o amor. Por vezes, esse amor surge cruzado com humor, como na jovialíssima ‘Biscate’, originalmente cantada com Gal Costa e hoje partilhada com Mônica Salmaso, ou em ‘Imagina’, na qual brinca, sobre um arranjo mavioso de flautas em riste: “Sabe que o menino que passar debaixo do arco-íris vira moça, vira/ A menina que cruzar de volta o arco-íris rapidinho vira volta a ser rapaz”. Noutros casos, o amor é puro drama vertido em poesia. Liberta dos seus arranjos algo datados de 1993, ‘Futuros Amantes’ é dessa intensidade o melhor exemplo. Aqui, Chico Buarque imagina um futuro em que o seu Rio de Janeiro será uma cidade submersa, onde escafandristas descobrirão não só vestígios de uma estranha civilização como resquícios de um amor não correspondido, que poderá ser usado pelos humanos desse futuro, sem custos acrescidos. É uma canção que descobre o altruísmo no desespero, e uma das mais belas deste homem que, com uma imagem da Cidade Maravilhosa no fundo do palco, se revela ele próprio uma espécie de maravilha da natureza.

Que Chico Buarque - “o nosso Chico”, como muitos se lhe referem com carinho - escolha este repertório terá a ver com uma preocupação conceptual, como vem sendo hábito ao longo dos anos, mas possivelmente também com a necessidade de adaptar as canções à voz, que vai mostrando as limitações próprias da idade (e que a acústica do Campo Pequeno também não trata especialmente bem). É com ternura e inteligência que Mônica Salmaso se lhe junta, em canções como ‘Sem Fantasia’ ou ‘Injuriado’, partilhando com o seu mestre momentos que, mais do que duetos, parecem suaves despiques, ou até diálogos. A fragilidade que, ocasionalmente, Chico Buarque revela ("Cometo meus errinhos", brincará, perto do final) contrasta com a generosidade da sua entrega. Pelo Campo Pequeno passaram o Chico clássico e o Chico malandro, a crítica e o sonho, a utopia e o desalento.

Apesar do viço das primeiras décadas da sua discografia, é também de notar a excelente figura que canções de colheitas mais recentes fazem: ‘Tipo um Baião’, por exemplo, tem pouco mais de dez anos e arranca com uma das deixas mais memoráveis da noite. “Não sei para quê outra história de amor a esta hora”, reconhece o narrador, antes de apresentar a sua eficaz mistura de amor & humor, numa canção sedutoramente enxuta (e que prova que a mutação do vocábulo “tipo” aconteceu, aparentemente, em paralelo dos dois lados do Atlântico). Com o tempo, reconhece o próprio Chico Buarque, a sua produção tornou-se mais escassa, mas mais apurada. Lançada no ano passado, a canção ‘Que Tal um Samba?’, que dá nome a esta digressão, é disso uma evidência: breve e aparentemente singela, é um prodígio de contenção & conteúdo, pintando com traços certeiros, quase impiedosos, um momento de alegria. Como se, para celebrar, não devêssemos fazer tábua rasa da dor que ficou para trás - pelo contrário, sublimá-la é o caminho da luz.

Com esta carta de amor pelo Brasil, Chico despediu-se pela primeira vez do público de Lisboa, muito rico em fãs brasileiros. No regresso, lembrou a irmã Miúcha, a também cantora desaparecida em 2018, com ‘Maninha’, e balanceou-se suavemente em ‘Noite dos Mascarados’, cuja evocação de Carnaval levantou a plateia numa dança feliz. Já esperada, a atracagem de ‘Tanto Mar’ no Campo Pequeno veio espalhar pela sala sorrisos de felicidade e comunhão. Lançada em Portugal em 1975, e “liberada” no Brasil três anos mais tarde, é uma dedicatória ao 25 de Abril e a mais bela ilustração do abraço fraterno entre países irmãos. Depois desse monumento à liberdade, ‘João e Maria’ juntou os milhares que enchiam a primeira noite alfacinha do carioca no mais doce e memorável dos coros.

Belíssimamente acompanhado por uma banda de sete elementos, e encontrando um porto seguro na voz segura e presença sóbria de Mônica Salmaso, Chico Buarque ouviu algumas das maiores ovações quando, sozinho, se sentou a cantar as suas próprias palavras. Voz e violão é, aqui, uma receita tão singela e infalível como pão com manteiga (ou outra iguaria da predileção do leitor). Mostrando o critério e a parcimónia habituais - assim sacrificando eventuais lampejos de espontaneidade -, derramou poesia em ‘Todo o Sentimento’, brincou com o público em ‘Bancarrota Blues’, lembrou Gal Costa em ‘Mil Perdões’, imaginou o seu fim em ‘Assentamento’. Veio, uma vez mais, ao país que (também) o ama celebrar um milagre chamado Brasil. Antes do primeiro encore, as palmas ecoavam com peso e força sob o teto do Campo Pequeno. Mais do que a ótima música que acabarámos de ouvir, aplaudia-se uma vida.

Chico Buarque em Lisboa, 1 de junho de 2023 - alinhamento

Mônica Salmaso
1. Todos Juntos
2. Mar e Lua
3. Passaredo
4. Bom Tempo
5. Beatriz
6. Para todos

Chico Buarque e Mônica Salmaso
7. O Velho Francisco
8. Sinhá
9. Sem Fantasia
10. Biscate
11. Imagina

Chico Buarque
12. Choro Bandido
13. Sob Medida
14. Bastidores
15. Mil Perdões
16. Samba do Grande Amor
17. Injuriado - com Mônica Salmaso
18. Tipo um Baião
19. As Minhas Meninas
20. Uma Canção Desnaturada - com Mônica Salmaso
21. Morro Dois Irmãos
22. Futuros Amantes
23. Assentamento
24. Bancarrota Blues
25. Com Todo o Sentimento
26. O Meu Guri
27. As Caravanas (com ‘Deus lhe Pague’)
28. Que Tal um Samba? (com ‘Samba da Bênção’ e ‘O Samba da Minha Terra’) - com Mônica Salmaso


Encore
Chico Buarque e Mônica Salmaso
29. Maninha
30. Noite dos Mascarados
31. Tanto Mar
32. João e Maria