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“Cristina, não vais levar a mal...”: a história de Midus, do adro da igreja da Moita aos grandes palcos de Londres e do mundo

Baixista e vocalista, Midus esteve no boom do rock português dos anos 80 com os Roquivários, fixando no imaginário coletivo o imorredouro refrão “Cristina, não vais levar a mal/ mas beleza é fundamental”. Gravou depois dois singles a solo e “desapareceu”, rumo a Londres, onde acabou por se estabelecer e tocar com grandes estrelas, de Bryan Ferry a Melanie C., das Spice Girls. 40 anos depois dos primeiros passos, lança o primeiro álbum a solo e conta, na primeira pessoa, uma história desconhecida

Midus
Stuart Anning

Midus foi um dos primeiros ícones rock femininos, uma artista cuja imagem marcou incontáveis adolescentes portugueses quando surgiu na cena como parte dos Roquivários, no arranque dos anos 80.

Nasceu em Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa. Os pais viviam então na Amadora, mas mudaram-se para a Moita quando ela contava apenas 4 anos. Quando tinha 9 anos, a família foi para Almada, mas a futura artista continuou a ir ter com os amigos à Moita regularmente para aí ensaiar os primeiros passos na música. Mais tarde, no início dos anos 80, correu Portugal de lés a lés, no tempo em que se começou a desenhar uma verdadeira cultura juvenil, com malhas orelhudas que tocavam na rádio, posters que se colavam nas paredes e concertos que se viviam na fila da frente. Lembra-se de ‘Cristina (Beleza É Fundamental)’, cujo refrão, uma década depois, Herman José reviveu vezes sem conta no programa “Roda da Sorte”? Era ela que o cantava.

Midus Guerreiro esteve no boom do rock português, antes de encetar carreira em Londres como baixista profissional. Nessa qualidadem tocou com grandes estrelas, de Tanita Tikaram a Mel C, das Spice Girls, mas só agora, no arranque de 2023, tem finalmente um álbum a solo, “Minhas Canções, Meus Amigos”. Nesse trabalho reúne um conjunto de pessoas que são marcas de um percurso rico que teve início no adro de uma igreja e se estendeu aos maiores palcos nacionais e internacionais. A história, conta-a ela mesmo, numa tarde em que voltou ao mesmo Chiado onde há muitos anos folheava revistas estrangeiras e sonhava com uma carreira profissional na música.

Como é que a música entrou na sua vida?
Quando tinha seis anos, os meus pais deram-me uma viola de caixa e eu comecei então a tirar linhas de baixo dos discos, de ouvido. Coisas do Santana, aqueles grooves que eu achava giros. Entretanto, como eu tinha algum jeito, comecei a tocar com mais dois amigos na igreja. Estávamos no início dos anos 70.

Havia algum contexto musical em casa? Algum dos seus pais tocava algum instrumento, cantava?
Não, nada. Quer dizer, a minha mãe, a minha avó, a minha tia... todas tinham boa voz, cantavam nas lides da casa, fados e isso. E cantavam bem. Mas eu desde os 4 anos, contavam-me as pessoas de família, já juntava os copos na mesa e tentava fazer pequenas melodias. Tudo tinha som, para mim. Acho que foi aí que eles perceberam que eu tinha alguma inclinação musical e daí terem-me oferecido a viola. Havia ainda memória de um tio-avô, que eu não conheci, que tocava violoncelo e que esteve ligado a uma filarmónica, em Lisboa. Mas pronto, as minhas prendas de Natal passaram a ser coisas ligadas à música, guitarrinhas de lata, com que eu aprendia a tocar coisas simples, como a “Parabéns a Você”, só numa corda.

E gira-discos lá em casa, havia?
Isso sim, e sempre a tocar música. Sempre se ouviu muito a rádio lá em casa, também. E a música que tocava sempre me fascinou, comecei a compreender que era capaz de ouvir os diferentes instrumentos separadamente. E curiosamente era o baixo e as linhas de baixo que mais me puxavam a atenção, era a escuta dessas linhas de baixo que me acelerava o coração. E nesse tempo, a música dos Rolling Stones ou do Santana, por exemplo, tinha sempre linhas de baixo bem pronunciadas, muito melódicas. Portanto, o início foi assim e a dada altura acontece que o padre lá da Moita, que era muito novinho e tinha acabado de ser colocado lá, entusiasmou-se e comprou uma aparelhagem e instrumentos para podermos tocar: comprou uma bateria, uma guitarra elétrica, um baixo Ibañez que era ótimo... E então começámos a variar o que tocávamos, não apenas as músicas na Igreja, mas também algumas versões nas festas da catequese no adro da igreja. E foi aí que eu e o Pedro Flores, que era o guitarrista, conhecemos uma pessoa especial. Ele tinha conhecido o Tim, na Zambujeira. Eu teria nessa altura uns 12 ou 13 anos. Quando eu não conseguia ir de Almada para a Moita para fazer esses bailinhos, era o Tim que me substituía. É desse tempo que vem a minha amizade com o Tim, que depois formou os Xutos [& Pontapés] e se tornou no que nós todos sabemos.

“Na praia íamos ao mar molhar as calças de ganga, que depois esfregávamos na areia para ficarem ruças. Rock and roll! passadas umas horas lá íamos para o liceu fingir que tínhamos ido às aulas. Claro que nesse ano chumbei...”

Que tipo de adolescente foi? Era rebelde?
Bem, só não dei dores de cabeça aos meus pais porque eles não sabiam o que eu fazia, só muito mais tarde perceberam nas conversas com amigos, quando já dava para rir com as histórias. Mas naquela altura, é verdade, havia sempre alguém que preferia ficar no recreio, nalguma zona mais escondida da escola, a tocar guitarra em vez de ir às aulas. O Jorge Loução era esse tipo de pessoa. Foi com ele que formámos os Roquivários. Ele é que era o verdadeiro rebelde da escola. E nós íamos atrás dele para todo o lado (risos). E acontecia muto, já no final das aulas, perto do verão, sairmos de manhã de casa, mas em vez de irmos para a escola apanhávamos o autocarro e íamos para a Costa da Caparica, para a praia. Eu já levava, sem os meus pais saberem, o bikini vestido e na praia tirávamos as calças de ganga e íamos ao mar molhá-las e depois esfregávamos as calças na areia para ficarem ruças... mais rock and roll (risos). E passadas umas horas lá íamos para o liceu fingir que tínhamos ido às aulas. Claro que nesse ano chumbei... Os meus pais, e outros, foram chamados à escola e disseram-lhes que nós éramos os “turistas” que preferiam passear a ir às aulas...

Isto corresponde ao período em que se deu o 25 de Abril. Sentiu algo a mudar? Sentiu que havia mais liberdade, até para os adolescentes?
Bem, para nós era uma festa, não é? Não havia aulas, muitas greves por tudo e por nada, os próprios alunos faziam greve. Essa recusa era novidade e nós usávamos essa possibilidade sempre que nos apetecia. Em retrospectiva, devo dizer que também fizemos os professores passarem por muito nesse tempo. A verdade é que tínhamos 13 ou 14 anos e não tínhamos propriamente uma consciência política.

Ter conhecido o Jorge Loução foi o primeiro passo para a formação dos Roquivários?
Foi lá no Liceu Dom João de Castro, que já não existe, que nos conhecemos todos. Em torno do Jorge apareceram mais pessoas, cada um trazia a sua guitarra, e os “grupinhos” começaram a formar-se. Íamos para o café Bairrada e tocávamos mesmo por ali. Sempre que havia Santos Populares ou outra ocasião festiva lá íamos nós. Tocávamos versões de temas conhecidos. O baterista de um desses primeiros grupinhos era o Zé Carvalho, mais tarde dos UHF. Foi nesse tempo que o Mário Gramaço começou a aparecer, sempre com o saxofone atrás. Ele saía do Hot Clube e ia para Almada ter com a malta. Ele falou com o Jorge e começou a desenhar-se a vontade de criar uma banda. Eu e o Jorge namorávamos e ele disse logo ao Gramaço: “bem, a minha namorada toca baixo”. Ele disse que conhecia um baterista, o Fernando Rabanal, que tinha passado pelos Tantra, e lá fomos fazer uns ensaios em que percebemos que a coisa funcionava, que nos dávamos bem musicalmente. E foi assim que nasceram os Roquivários, estaríamos em finais de 1980. O Gramaço tinha uma sala vazia nas traseiras da casa dele e foi aí que criámos a sala de ensaios. Os temas nasceram aí, todos muito rápido. O Pedro Castro [Membro dos Petrus Castrus que foi também manager de Rui Veloso no início da sua carreira] foi lá à sala de ensaios, ouviu os temas que andávamos a trabalhar e marcou logo estúdio. Aconteceu tudo muito rápido. Gravámos na Rádio Triunfo, em quatro dias (risos). Nós todos contentes, claro, apesar de não termos qualquer experiência: claro que os temas deveriam ter rodado ao vivo primeiro, mas pronto.

Os temas eram criações coletivas?
O Gramaço tinha alguns dos temas, já, as letras eram feitas entre ele e o Jorge, e eu e o Rabanal íamos fazendo umas sugestões e ajustes aqui e ali. Mas o Jorge e o Gramaço assumiam boa parte desse lado da escrita, embora tivessem ajuda nas letras de um amigo, o Paulo Corval, que tinha um caderno cheio de letras já escritas em cima das quais foram feitas algumas músicas.

Esta história já foi muitas vezes contada, mas essa é a era da explosão do denominado rock português. Vocês sentiam-se no olho do furacão, sentiam-se parte de um movimento?
Mais ou menos... Os Xutos estavam a aparecer, os UHF já tinham coisas na rua, mas ainda não tinham rebentado... Por isso não se sentiu logo esse impacto, se bem me lembro. O disco do Rui [Veloso] saiu mais ou menos ao mesmo tempo e depois fizemos muitos concertos com ele. Eu confesso que só me apetecia tocar, nem ligava muito à forma como as coisas aconteciam. Mas sim, dividimos muitos palcos com o Rui, com os Salada de Frutas e outros…

E havia rivalidades? As dinâmicas de bastidores, os jogos de poder... Como se lidava com isso na época?
Bem... nós tocávamos com muita gente, além dos que já mencionei também grupos como os Táxi, por exemplo. Os GNR. Até os Xutos, que chegaram a fazer algumas das nossas primeiras partes. Não sentíamos rivalidade com essas bandas, devo dizer. Acho que havia até uma certa irmandade: eu gostava muito da Lena [D’Água] nos Salada, por exemplo. Dávamo-nos muito bem. Mas com os UHF, talvez por sermos ambos de Almada, já havia alguma... fricção, vá lá. Chegámos a abrir para eles na Incrível Almadense. Lembro-me de ter feito questão de ir ver o concerto quando terminámos para perceber o que eram os UHF e como se comportava em palco o António Manuel Ribeiro, e nessa ocasião ele foi mesmo incrível: ele levava aquela malta toda com ele, levava-os ao rubro. Mas pronto isso era eu, já os meus colegas, bem, às vezes diziam certas coisas que me deixavam... espantada. Mas isso eram os egos.

“Nunca me apercebi que a Lena D’Água tinha tido um problema com drogas até ela mo ter contado mais tarde. O António Manuel Ribeiro fala agora dos excessos de juventude, mas na altura eu não me apercebi de nada. Se calhar sou muito quadrada”

O rock como contracultura, capaz de afrontar, de incomodar os pais e as gerações anteriores, surgiu por cá sobretudo nesta altura, no final dos anos 70 e arranque dos anos 80. Como era o ambiente nos backstages das Incríveis Almadenses da vida? O que é que rodava aí? O que é que se fumava?
Connosco isso nunca foi uma questão. O nosso raider pedia cerveja, água e sumos, mas não se ia além disso. E a cerveja era sobretudo para a equipa técnica. Não éramos de fumar, nem nada disso...

O que é que funcionava aí como travão? O vosso passado na igreja?
Eu ao longo dos anos vi de tudo, vi muita gente à volta a consumir todo o tipo de coisas, mas eu nunca me aproximei disso, nunca gostei, nunca quis experimentar. Sempre fui muito pelas coisas naturais, nunca quis meter químicos no meu corpo. Devo dizer que nem na nossa banda nem com as outras com que nos cruzávamos mais – o Rui Veloso, os Salada, Táxi... – alguma vez senti esse tipo de coisa. Aliás, eu nunca me apercebi que a Lena D’Água tinha tido um problema com drogas até ela mo ter contado mais tarde. Eu sei que há músicos, por exemplo o António Manuel Ribeiro, que agora falam dos seus excessos de juventude, mas na altura eu não me apercebi de nada. Se calhar sou muito quadrada, não sei (risos). Só me lembro de uma vez em Murça, onde conhecemos o presidente que nos falou do vinho do Porto de produção local, me terem metido vinho no palco em vez de água que era o que eu costumava beber. E pronto, a dada altura eu já nem sabia muito bem onde estava, mas correu tudo bem na mesma. Se calhar essa foi a minha maior loucura... Acabámos a noite no centro de Murça, onde está a estátua da Porca, a rir com o Gramaço sentado em cima da estátua do bicho. Nada de mais.

E ganhou-se dinheiro, nesse tempo?
Deu para comprarmos o nosso PA, mas não havia lugar a grandes extravagâncias. Era eu que tomava conta dessa parte, que garantia que os cachês serviam antes de mais para pagar as prestações do equipamento e que só depois se dividia o que restava. Ainda vivíamos todos com os pais, não deu para comprar casas ou carros de luxo.

Ainda hoje se fala da questão da diversidade e do défice de nomes femininos em cartazes de grandes festivais, mas no arranque dos anos 80 uma mulher em palcos rock seria algo ainda mais raro. Como lidou com essa condição
Digo sempre que nunca pensei em mim como “uma mulher no rock” antes como um músico no rock. Sei que as pessoas olhavam para mim com essa dose de espanto: “ah, é uma rapariga”. Mas eu sentia-me apenas mais um músico, queria era tocar bem e não limitar-me a ser uma exceção.

Mas havia até que lidar com questões práticas – só há uma casa de banho nos bastidores ou o camarim não tem privacidade... Isso nunca levantou problemas?
Bem, aí uma pessoa também tem que se dar ao respeito, não é? A banda sempre compreendeu isso e deu-me o espaço que eu precisava, guardavam-me a porta enquanto eu trocava de roupa ou assim. Lidei com pessoal que me teve sempre muito respeito, felizmente. Podemos ser excelentes músicos, mas ter a personalidade e o feitio certo também é importante. Caso contrário, não dá.

Midus em meados dos anos 80
José Carlos Nascimento

Outro lado com que certamente teve que lidar, uma camada adicional ao facto de ser mulher, era ter o baixo como instrumento quando boa parte das mulheres no rock eram sobretudo vocalistas. Que tipo de coisas ouvia? “Para rapariga até nem toca mal?”
Isso acontecia, de facto. Quando me viam a entrar em palco, percebia-se que havia quem dissesse: “deixa cá ver o que é que ela sabe fazer”. Quando cheguei a Londres, nas minhas andanças iniciais, mesmo aí isso acontecia. Sabia de uma banda que ia tocar num pub e que estava aberta a que aparecessem pessoas para tocar com eles e quando eu ia a esses sítios e tirava o meu baixo da caixa havia sempre uma reação de espanto: “hum, ok... vamos lá ver...”.

E tinha consciência de que, ainda assim, não era caso único? Que havia a Tina Weymouth a tocar baixo nos Talking Heads? Que havia bandas como as Runaways ou as Raincoats, para dar dois exemplos bem diferentes?
Claro que tinha essa noção e aprendi muito a ver o que elas faziam. Tentava seguir essas bandas sempre que as escutava na rádio: lembro-me de ouvir canais do Luxemburgo, com a rádio debaixo da minha almofada, a altas horas da noite. Aprendi muito dessa maneira. Ia muito a uma loja na zona do Chiado que tinha revistas estrangeiras e passava horas a folhear, a ver as fotos, a estudar os instrumentos que usavam. Eu estava muito a par da cena, subia a rua e ia à Custódio Cardoso Pereira experimentar instrumentos. Sempre fiz questão de ter a lição bem estudada. Apanhei a Tina nos Talking Heads, a Suzi Quatro vi-a a primeira vez num programa de Tops na TV. Até pensei, ao vê-la, “afinal aquilo que eu faço não é assim tão estranho”.

“Em Londres era fácil encontrar trabalho. Mas era preciso ir às audições, não havia net para perceber de que tipo de música se tratava. Às vezes descobria que aquilo não dava comigo: grunge, metal, jazz”

Os Roquivários fizeram dois álbuns, em 1981 e 1982, e a coisa depois abrandou. Porquê? Foi logo para Londres a seguir?
Bem, o namoro acabou e a banda não prosseguiu. Ainda tivemos que cumprir contrato de alguns concertos com o ambiente já muito estranho. Adiante... Depois veio o meu primeiro single a solo, o ‘Lá Longe’, que foi escrito pelo Fernando António dos Santos. Com isso fomos à PolyGram, o Tozé Brito e o António Pinho gostaram e assinaram contrato comigo. Depois desse veio, já em 1988, o ‘Amazónia’, um single com produção do Luís Jardim que já é o resultado das minhas andanças por Londres. Eu tinha dito ao Tozé que gostaria de gravar com o Luís em Londres, mas tive que arranjar um esquema e pedi um patrocínio à TAP que me deu na altura seis viagens de ida e volta. Arranjei também um patrocínio numa agência de viagens para o hotel e foi assim que comecei a ir a Londres. O logo da TAP até aparece na contracapa do disco e tudo. Mas nessas idas comecei a perceber que havia ali muitas portas para abrir. Aproveitei parte das viagens para gravar com o Luís e as restantes serviram para ir conhecer a cidade, marcar reuniões com editoras, cheguei a ir a estúdio gravar um tema a pedido da Zomba. Nessa altura conheci também alguns produtores e mesmo depois de acabarem as viagens que me foram dadas pela TAP continuei a ir e de cada vez ia ficando mais tempo.

Porquê Londres? A sua carreira não poderia ter crescido mais em Portugal
Aqui já me começava a sentir um pouco um produto. Queria voltar às raízes, queria voltar a andar na estrada, a andar nas carrinhas para cima e para baixo, a fazer audições para bandas. Primeiro andei entre cá e lá e depois em 1991 comprei lá casa. Maida Vale, onde estavam os estúdios da BBC, foi onde vivi primeiro.

A cena em Londres devia ser muito diferente…
Sobretudo pela dimensão: havia muito de tudo. Eu pegava nos jornais e havia muitos anúncios a pedirem baixistas para digressões. Era fácil encontrar trabalho. Mas era preciso ir às audições para descobrir, porque não havia net para conferir de que tipo de música se tratava em cada um dos casos. Às vezes ia às audições só para descobrir que aquilo não dava comigo…

Isso acontecia com que tipo de música?
Coisas mais para o metal, para o grunge. Cenas mais próximas do jazz – que eu adoro, mas não é algo que eu toque. Eu encaixava nas coisas mais indie, pop-rock, um pouco de blues-rock. Nesta fase ainda eram bandas algo anónimas, não toquei assim com ninguém conhecido. Bandas que tinham management, estavam a tentar encontrar editora, que faziam pequenos concertos. Eu andava sempre envolvida em três ou quatro projetos em simultâneo. Mas de tanto andar, a minha cara foi ficando mais conhecida no meio. E isso levou a que alguns músicos me começassem a chamar, para coisas já com mais alguma visibilidade. E foi assim que descobri que havia agências de músicos para trabalho de sessão ao vivo. Fiquei em três e fui sendo chamada.

Com quem começou a tocar nessa fase?
O Luís Jardim gravou um álbum com a Tanita Tikaram, e nesse disco foi ele que tocou o baixo. Como ele já me conhecia, sugeriu-me para a banda que foi com ela para a estrada. Fui fazer uma audição e fiquei na banda. Andei um ano na estrada a tocar o “Capuccino Songs”, já em finais dos anos 90.

Também tocou com Anne Clark, certo?
Isso foi antes. Estava com uma banda chamada Coming Up Roses, muito gira. Gravámos um álbum, “I Said Ballroom”, para a editora do Billy Bragg. A baterista dessa banda dividia apartamento com a baterista da Anne Clark e a dada altura ela perdeu o baixista, por razões de saúde mental. E foi assim que fiz uma audição para a Anne e fiquei com ela. Estávamos em 1993. Depois da Tanita, fiz uma tournée mundial com a Mel C, toquei com uma artista chamada Kim Marsh, fiz uma tournée na Alemanha com o Bryan Ferry.

Alguma vez lhe aconteceu ficar assim assoberbada por conhecer uma estrela?
Aconteceu com a Macy Gray e com o Sting num programa de televisão que fui fazer. Quis tirar uma fotografia, mas a equipa da Mel C era... diferente. O road manager achou que iria incomodar ao pedir para fazer uma foto e acabei por não ir. Mas ainda dividi um elevador com a Macy e disse-lhe o quanto era fã.

E é uma vida profissionalmente estável, essa de andar a tocar de forma mais ou menos anónima em bandas de outros músicos. Ganha-se o suficiente?
Em Londres há muito por onde escolher e trabalhando bem abrem-se muitas portas. Há sempre espetáculos para fazer. Normalmente tive sempre mais do que uma banda. E quando se fala de artistas já de uma certa dimensão ganha-se bem: há diferentes modelos – contratos à semana ou por cada concerto. E toca-se em todo o mundo.

E durante a pandemia, foi complicado?
Bem, eu fiz sempre tudo bem, paguei os meus impostos a tempo e horas e isso garantiu-me um bom grau de proteção, de acesso a ajudas.

Nunca deu aulas?
Não formalmente... Ensinei duas pessoas, amigas, que vinham a minha casa. Mas em escolas, não.

Tem algum setup especial, um baixo em particular que goste de tocar mais?
Nunca tive assim uma grande relação com marcas particulares, interessou-me sempre mais encontrar um certo tipo de som, independentemente da marca. Tenho uma torre Marshall e sempre ouvi bocas por causa disso: “ah, não é bom para baixistas”. Mas eu gosto desse som. Tenho vários baixos, vários feitos para mim. Muitos dos trabalhos que eu fiz requeriam baixo de cinco cordas, mas isso implicava um baixo mais pesado e como tenho nervos danificados, porque ainda são uns quilos, mandei fazer modelos mais leves para mim. Cheguei a ter 14 baixos, mas agora tenho 9. Mas a maior estão na parede e na verdade só preciso de um. Ao fim de anos lá encontrei um Fender Precision com o som que eu procurava e esse é o que eu isso mais. Uma reedição de um modelo de 1962. E depois encontrei uma coluna Markbass numa feira de instrumentos, nunca tinha experimentado, mas quando experimentei gostei tanto que é o que uso agora.

“Não estou à procura de uma nova carreira. Tenho que levar isto com muita calma, sem nervos”

Todos estes anos depois, tem finalmente um álbum a solo, “Minhas Canções, Meus Amigos”. Que disco é este?
O álbum começou, curiosamente, com a última canção do alinhamento, “Olhos Fechados”, que fiz dedicada a um amigo, um bailarino, o Benvindo Fonseca. Somos quase irmãos e ele há uns anos teve uma fase menos boa e esta canção foi como uma espécie de terapia, para o ajudar a ultrapassar esse momento. Foi escrita há 20 anos. Ele há três anos telefonou-me, no arranque da pandemia, a dizer que a Gulbenkian ia fazer-lhe um espectáculo de homenagem e ele disse-me que gostava que eu participasse e que apresentasse essa canção. Eu disse-lhe que iria tentar, porque de cada vez que voltava a essa canção fartava-me de chorar. Disse-lhe logo que gostaria de regravar a canção e assim foi. Na Gulbenkian depois correu muito bem, eu mostrei a canção ao Tozé Brito e isso fez-me pensar que poderia avançar para um álbum.

Imagino que seja preciso mudar um “chip” qualquer: passar de tocar confortavelmente na sombra, para voltar ao centro das atenções…
Pois, estar à frente pode implicar muitos stresses. Por isso encaro este disco como uma coisa pontual: não estou à procura de uma nova carreira. Tenho que levar isto com muita calma, sem nervos.

Mas está muita gente envolvida: Tim, Anne Clark, Teresa Maiuko, Tim Alford…
Tudo gente amiga. Pus-me a pensar: “aqui gostava de uma guitarra especial. Quem posso chamar? Ah, o meu amigo Dom Brown”. São pessoas ótimas que sentem o mesmo que eu, têm a mesma carga emocional. Se calhar destes todos, era com o Tim [dos Xutos] que eu não falava há mais tempo. Mas quando falamos, é como se nunca nos tivéssemos separado. Quando ele me convidou para ir ao [festival] O Sol da Caparica, com o projeto “À Sombra do Cristo Rei”, senti-me tão acarinhada que daí nasceu o ‘Gostas de Mim’. As canções nasceram todas assim, desses laços. Não sei fazer de outra maneira.