Blitz

A suave loucura dos Kings of Convenience no Coliseu de Lisboa

Na segunda de duas noites no Coliseu de Lisboa, os Kings of Convenience foram recebidos em delírio por um público cheio de saudades e de vontade de fazer a festa. Primeiro a sós, depois acompanhados, os noruegueses de tudo fizeram para merecer o carinho, desde cantar em português a dançar com fãs na plateia

"Isto parece fácil, mas não é!", comenta entusiasmada, a certa altura, uma espectadora do segundo concerto dos Kings of Convenience no Coliseu de Lisboa. Esta fã ainda não sabe mas, na última canção da noite, Erlend Oye, um dos obreiros desta simplicidade apenas aparente, descerá do palco para dançar com ela: de mãos dadas, livre (da guitarra), leve e solto, saltitando entre as cadeiras então já abandonadas por todos os que, de pé, vibram com os últimos minutos do reencontro com os noruegueses. "A última vez que tocámos aqui foi em 2009", recorda a outra metade dos Kings of Convenience, Eirik Glambek Boe, referindo-se à derradeira vez que, com o amigo, pisara o Coliseu dos Recreios (desde então, passaram por Paredes de Coura, em 2011, e pelo Primavera Sound, no ano seguinte). "Gostamos de fazer as coisas com tempo", acrescenta, partilhando que o álbum do ano passado, "Peace or Love", foi gravado cinco vezes, em diferentes pontos do planeta. "Para no fim percebermos que a melhor versão era a primeira", completa Erlend Oye, para gargalhada de uma plateia efervescente.

Em 2022 como em 2002, ano em que deram o primeiro concerto de sempre em Portugal, curiosamente num festival de música eletrónica no Meco, assim é um concerto dos Kings of Convenience. Entre o humor (discreto) e a introspeção (intensa), os dois amigos navegam com mestria da segurança à surpresa, escondendo sempre algum negrume na doçura que transborda das suas canções acústicas. Nesta segunda noite no Coliseu de Lisboa, é pelas 21h20 que as guitarras pousadas em palco ganham vida; mirando-se de forma serena, mas concentrada, os dois músicos da mesma 'colheita' — ambos nasceram em 1975 — começam a tecer as teias sobre as quais se deitarão melodias agridoces. Esta é uma tristeza confortável, sem tempo, que funciona como afago sobre qualquer coração minimamente rachado. Mas, de volta às guitarras, há coisa de um ano Erlend Oye falou à BLITZ dos seus guitarristas favoritos e garantiu que o perfecionismo da banda com as seis cordas é um dos motivos pelos quais os Kings of Convenience são uma banda tão frugal em edições. Ao vê-los voltados um para o outro, espelhando uma simbiose de almas gémeas musicais, não custa a crer que seja minuciosa, mas proveitosa, essa busca.

Perante uma plateia algo internacional (os músicos garantem ter sido abordados, nas ruas de Lisboa, por fãs da Colômbia, Argentina, Israel e Estados Unidos, e outras nacionalidades se revelaram no breve 'referendo' conduzido em palco), as canções sucedem-se sem sobressaltos mas com emoção, sendo recebidas pelos fãs como velhos amigos, neste que parece ser o ano de todos os regressos e reencontros. Assim acontece com 'Cayman Islands', de 2004, mas também com 'Rocky Road', a canção-jóia que, em 2021, marcou o regresso dos noruegueses aos discos. Pintando um universo em tons pastel, os Kings of Convenience navegam num lago plácido, mas sem cair na modorra. Ainda que, nesta aguarela, a folk e o songwriting acústico sejam as tonalidades mais evidentes, há uma pitada de bossa nova que empresta um swing discreto à música destes nórdicos, o suficiente, pelo menos, para deixar uma ou outra fã a dançar nas bancadas, mesmo na fase mais pacata do concerto.

Após mais uma grande ovação, desta feita à canção 'Love is a Lonely Thing' que, em estúdio, conta com a participação de Leslie Feist, Eirik Glambek Boe agradece com a mão no peito, apenas. A emoção corre fundo por aqui, mas sem nunca extravasar; talvez por isso, partilha o músico, há quem já tenha descrito os Kings of Convenience como secos e cínicos. "O cinismo para mim é uma coisa positiva, por isso encarei o comentário como um elogio", sentencia, continuando a afinar a guitarra. Mais adiante, confessará ter reparado numa palavra omnipresente nas canções em português que conhece: "coração". "Acho que nunca usámos a palavra 'heart' nas nossas canções", comenta. Mesmo que isso seja verdade, e apesar das 'acusações' de cinismo, os Kings of Convenience têm muito amor para dar, como se comprovou na fase final do concerto, uma espécie de encore mesmo antes de a banda sair de palco. Pela primeira vez acompanhados — por Tobias Hett na viola (a 'prima' do violino) e David Bertolini no contrabaixo e, mais tarde, no baixo elétrico —, libertaram-se em palco e levaram a uma loucura controlada na plateia.

O respeitinho de um público sentado pode ser muito lindo, mas o êxtase desta quinta-feira primaveril aconteceu, de facto, quando a banda convidou os fãs a levantarem-se e engrossarem o som e a energia que vinham do palco. Ajudou, claro, que as canções que começaram por se ouvir, neste momento de libertação, tenham sido 'Stay Out of Trouble' e 'Misread', puro ouro de 2004. De repente, o sussurro que acompanhara o concerto tornou-se num coro quente, juntando-se ao pulsar do baixo e às reviengas da viola de Tobias Hett, reminiscente no seu ímpeto rock de Padma Newsome, que em tempos acompanhou os The National, ou de Boyd Tinsley, violinista da Dave Matthews Band. 'Boat Behind', de "Declaration of Dependence", de 2009, e o clássico "I'd Rather Dance", do seu antecessor, prolongaram a celebração até ao encore. No regresso solitário, Eirik Glambek Boe confirmou a ligação transatlântica cantando, num português encantador, o hino 'Corcovado'.

Quando livre da guitarra, Erlend Oye faz jus aos seus talentos de bailarino em estilo livre e maravilha os fãs, dançando em palco e não só. Na última canção da noite, "Little Kids", resgatada ao álbum-manifesto com que toda esta aventura começou — "Quiet Is The New Loud", de 2001 —, o mais extrovertido da dupla desceu à plateia e dançou com duas fãs. Em palco, Tobias Hett piscava o olho, na sua viola 'repenicada', a 'Get Up Stand Up', de Bob Marley; no público, o delírio com a proximidade de um ídolo tão real instalava o delírio.

Quente-frio, agridoce, lusco-fusco. Na música, como na vida, a beleza (e a felicidade) residem muitas vezes no que não é evidente à primeira vista. Mestres da subtileza, os Kings of Convenience proporcionaram ao público português quase duas horas de alegria de todas as cores.

Kings of Convenience no Coliseu de Lisboa, 19 de maio de 2022

Comb My Hair
Rocky Road
Cayman Islands
Angel
Killers
Love Is a Lonely Thing
Catholic Country
Mrs. Cold
Know-How
Homesick
Stay Out of Trouble
Misread
Boat Behind
I'd Rather Dance

Encore

Corcovado
Renegades
Little Kids