De todos os concertos previstos para a estreia do Sónar em Lisboa, talvez o de Thundercat fosse o mais imprevisto de todos já que o músico, ainda que alinhado com a modernidade e integrado numa editora que é um dos expoentes contemporâneos da eletrónica – a Brainfeeder de Flying Lotus – não oferece exatamente aquele pulsar sintético e insistente que comanda membros e músculos e faz corpos dançar. Apresenta uma fluída, ainda que enérgica, versão destilada de uma fórmula altamente personalizada e que inclui elementos de jazz e R&B, de yacht rock e funk, de hip hop e música de jogos de computador e o que mais a sua imaginação conseguir importar para dentro do seu universo singular. E apesar de tudo isso, a multidão concentrada na frente do palco montado no interior do Pavilhão Carlos Lopes na primeira Sónar moveu-se. Ou, vá lá, ondulou.
Stephen Lee Bruner surgiu em palco com os seus dreads amarelos adornados por orelhas de gato de anime – a sua imagem de marca – ostentando um fato de treino à Bruce Lee em "Game of Death" e com o seu baixo massivo de seis cordas a tiracolo, a brilhar mais do que uma árvore de Natal gigante no Terreiro do Paço em noite de consoada. Ao seu lado dois incríveis músicos: o teclista Dennis Hamm (que soma créditos em trabalhos de India Arie, Miguel Atwood Ferguson, Kenny Loggins, Louis Cole, Janelle Monae, Cinematic Orchestra ou FlyLo, além, claro do próprio Thundercat) e ainda o mega-baterista Justin Brown (que, e citando apenas créditos já de 2022, surge nos novos álbuns de Gerald Clayton na Blue Note e de Tigran Hamasyan na Nonesuch – credenciais jazz muito, muito sérias).
A música de Thundercat é altamente técnica e ritmicamente complexa. Como se espera, o homem de "It Is What It Is" – o disco central no alinhamento de ontem – eleva o seu instrumento à condição de solista aproveitando ao máximo a base freneticamente propulsiva montada por Brown e o amplo manto harmónico servido por Hamm, extraindo do seu gigantesco baixo (o braço parece ser tão largo como uma autoestrada americana de 8 vias) uma torrente de notas que se fazem ouvir com um som mais médio do que grave – por vezes, aliás, o baixo soa como um híbrido entre uma guitarra e um piano elétrico ou um sintetizador até, subvertendo o carácter de sombreado de graves que lhe costumamos atribuir.
Talvez porque a sala que tem um tamanho considerável não estivesse completamente cheia, o som do concerto estava algo reverberante e, por vezes, tornava-se difícil escutar as múltiplas intervenções de Thundercat. Ainda assim percebeu-se claramente a sua declaração de amor a Louis Cole antes do tema 'I Love Louis Cole', uma das melhores peças do alinhamento de "It Is What It Is" que, como Bruner ontem explicou, foi escrita em colaboração estreita com o próprio multi-instrumentista que também é parte dos Knower.
A música de Thundercat faz-se muito naturalmente de uma energia emocional profunda – há vénias a Mac Miller pelo meio – e o trio sabe perder-se em orgânicas e estonteantes jams que cortam a respiração, mas acaba sempre por se encontrar a meio das canções regressando à Terra a tempo de recolher aplausos. E isso faz dele um artista singular. Que já podia regressar para concerto em nome próprio e em sala de dimensões mais reduzidas para que não percamos pitada. É que das suas mãos escorre ouro.