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Idles no Coliseu de Lisboa: um comício rock em nome do amor

Depois de dois adiamentos causados pelo vírus que parou o mundo, os Idles vieram finalmente fazer a festa no Coliseu de Lisboa. Junto da sua tribo, os homens de “Crawler” mostraram, mais uma vez, que a união faz a força

Idles no Coliseu dos Recreios, Lisboa
Rita Carmo

“Que sala dos diabos”, escrevia ontem à tarde, no grupo de fãs dos Idles no Facebook, o baixista Adam Devonshire, como legenda de uma foto tirada do palco ao qual a banda subiria horas mais tarde. É sem dúvida uma bela sala, o nosso Coliseu dos Recreios, e ainda mais impressionante se torna quando, como aconteceu esta sexta-feira, se enche de gente e emoção. Pouco antes de os Idles tomarem os seus lugares num palco mergulhado na penumbra, já a excitação, percetível através de palmas espontâneas e até do carinho emprestado às bandas da primeira parte, se sentia no ar. Depois de dois anos em que o mais perto que tivemos destes minutos de expectativa foram os compassos de espera antes das conferências da DGS, que arrepio é ver as luzes a apagarem-se, os braços a lançarem-se ao ar e os corações a entregarem-se à tempestade. Esta noite, como nas melhores noites, o público saiu de casa para amar, e os Idles foram o recetáculo perfeito para essa generosidade.

Quando anunciaram pela primeira vez um concerto no Coliseu de Lisboa, o quinteto liderado por Joe Talbot e Mark Bowen (são eles que se assumem como timoneiros da banda, como explicaram na entrevista à BLITZ) vinha apresentar “Ultra Mono”, o seu álbum de 2020. Dois adiamentos mais tarde e os rapazes de Bristol regressam a Portugal, onde já haviam sido felizes por quatro vezes, com mais um longa-duração para apresentar: “Crawler”, editado no ano passado e feliz exercício de reinvenção, conjugando o peso que caracteriza a banda com uma subtil exploração de texturas e algumas pinceladas eletrónicas. Talvez por estarem mais rodadas, contudo, foram as canções dos primeiros dois discos, “Brutalism” (2017) e especialmente “Joy As An Act of Resistance” (2018), que os deu a conhecer o grupo de Bristol ao mundo, que nos soaram mais infalíveis neste serão de sexta.

Depois do concerto, subindo a Avenida da Liberdade, ouvimos um casal a comentar em simultâneo a 'aparição' da mesma canção, 'Mother', um dos hinos de “Brutalism”, no alinhamento: “Eu nessa fiquei em êxtase”, dizia ela. “Eu nessa fiquei sem voz!”, contrapôs ele. Foi sem dúvida um dos momentos altos do concerto, como seria de esperar de uma canção que reúne todos os pontos fortes dos Idles: sumo, mensagem, energia e até algum humor, tudo concentrado em três minutos e meio de tensão & libertação. Outro momento incrível, antecipado pelo público, que começou a cantar a letra antes do próprio Joe Talbot, foi 'Never Fight A Man With a Perm', clássico de “Joy...” e um dos sismos mais divertidos dos últimos anos. No escorregão que conduz ao refrão, então, a loucura estava perfeitamente instalada na plateia, e ninguém se importaria de ficar a viver naquele momento mais uns dias.

Mas voltemos ao começo do concerto, quando uma só nota de baixo, repetida até à exaustão, disse aos fãs portugueses (e não só; havia muitos ingleses e espanhóis no público) aquilo que precisavam de saber: vinha aí 'Colossus', o petardo que abre “Joy as An Act of Resistance” e que, entre a ameaça e a explosão, tem feito as honras de abertura da maior parte dos concertos desta digressão. “It's coming”, promete Joe Talbot, e de repente a sua voz torna-se muitas, numa união palco-plateia que se manterá ao longo da noite. Vestindo a pele do vocalista enjaulado, o galês irá proceder à “divisão das águas” (dividindo a massa de espectadores em duas metades) para a celebrada segunda metade de 'Colossus', com tiradas como “I put homophobes in coffins” a serem entoadas a plenos pulmões. É tonto, é bruto, é lindo. E é também o caos, sobretudo na frente do palco, onde o mosh e o crowdsurfing se acentuam, numa libertação há tanto aguardada.

Nas entrevistas que têm dado para promover “Crawler”, os Idles garantem que o seu antecessor, “Ultra Mono”, recebido com alguma frieza pela crítica, é propositadamente caricatural. A banda, dizem eles, quis construir um retrato exagerado de si mesma para poder afastar-se dele e seguir um novo caminho. Truque de comunicação ou não, a verdade é que, em palco, as canções de “Ultra Mono” parecem ter levado um banho de agressividade e negrume que só lhes fica bem. É o caso de 'Mr. Motivator', que faz o chão do Coliseu trepidar com o som de mil 'patadas', ou 'Grounds', cuja frase “do you hear that thunder?” parece cada vez mais traduzir o som dos Idles, uma tempestade sobrevoada por um helicóptero (o baixo de Adam Devonshire) e pelas guitarras ora cortantes, ora cirúrgicas, de Mark Bowen e Lee Kiernan. Lá atrás, firme e hirto como um metrónomo, o baterista John Beavis transporta esta ruidosa máquina de amor com segurança, através de estradas tão díspares como a serena 'Beachland Ballroom', espécie de balada punk-soul dedicada por Joe Talbot às bandas da primeira parte, Witch Fever e Bambara, ou como as tonitruantes 'Divide and Conquer' e 'War', cuja atualidade dispensa explicações.

Batendo no peito, apontando para o céu (ou para o teto do Coliseu) e rodopiando o fio do microfone de forma frenética, Joe Talbot pode não ser, como ele mesmo admite, o vocalista mais dotado do mundo, mas aguenta de forma notável o esforço bruto de um concerto com 20 canções quase todas gritadas, muitas delas de forma catártica. É o caso de uma das faixas de “Crawler”, 'The Wheel', que dedica à sua mãe. Nesta letra, Joe Talbot volta aos tempos em que, ainda criança, implorava à mãe que deixasse de beber, para depois refletir sobre a forma como a adição é um ciclo (a “wheel” do título) que se perpetua nas famílias.

Histórias tristes em canções ao som das quais podemos abanar a cabeça são uma das especialidades dos Idles, como se prova logo a seguir, com a delirante 'Television', mas do seu arsenal constam ainda belas quase-baladas como 'Hymns', de “Ultra Mono”, ou a hilariante 'Love Song', que descambou num momento de karaoke itinerante. A meio da canção onde se canta “I wrote a love song, cause you're so loveable/I carried a watermenlon, I wanna be vulnerable”, Joe Talbot começou a percorrer um repertório que passou por '(I've Had) The Time of My Life', do filme “Dirty Dancing”; 'Linger', dos Cranberries, ou 'All I Want For Christmas Is You”, de Mariah Carey. Enquanto isso, os seus 'enviados especiais', Mark Bowen e Lee Kiernan, percorriam a plateia, tendo o segundo dos guitarristas subido mesmo às bancadas, onde delicadamente declinou uma cerveja que lhe ofereceram.

É o lado mais 'clownesco' dos Idles que, enquanto alguém perdia um sapato que vimos a voar à frente do palco, seguiram a toda a velocidade para 'I'm Scum', que Joe Talbot cantou de forma estoica com um rapaz (presumivelmente membro da sua equipa) às cavalitas. Esta foi também a canção em que a idade de parte da plateia foi desvendada, quando a banda mandou o público agachar-se por uns segundos e muitos à nossa volta se queixaram das costas, dos joelhos e do cansaço de uma semana de trabalho.

Com as articulações mais ou menos cuidadas, todos aguentaram, porém, mais duas canções: as que fechariam com estrondo a porta do Coliseu. Primeiro houve um tema “sobre amor, sobre empatia e sobre a incrível coragem dos nossos imigrantes”, ou seja, 'Danny Nedelko', um dos primeiros êxitos dos Idles e pretexto para vermos, com emoção, o Coliseu a gritar o nome do amigo ucraniano da banda. Foi aqui que a sala nobre da capital mais se aproximou de um verdadeiro comício pelo amor, com cerveja voadora e pelo menos uma muleta erguida no ar fazendo as vezes de pombas da paz. O ponto de exclamação parágrafo desenhou-se com 'Rottweiler', “uma canção anti-fascista”, apresentou a banda, antes da despedida – sem encore, sem fita, com todo o ruído e a intenção do mundo.

Há exatamente dois anos, não resistimos a espreitar na chegada a casa, havia 78 infetados com covid em Portugal e o Governo mandava fechar escolas e discotecas; também os campeonatos de futebol eram suspensos, neste país onde o futebol é rei. A 12 de março de 2022, o mundo é um local cada vez mais estranho, mas no meio do caos já podemos dançar e receber o abraço anárquico dos Idles. É sempre muito bem-vindo.

Alinhamento:

1. Colossus
2. Car Crash
3. Mr. Motivator
4. Grounds
5. Mother
6. Meds
7. Divide and Conquer
8. Beachland Ballroom
9. Never Fight a Man With a Perm
10. Crawl!
11. 1049 Gotho
12. The Wheel
13. Television
14. A Hymn
15. War
16. Wizz
17. Love Song
18. I'm Scum
19. Danny Nedelko
20. Rottweiler