Um avião cai ao pé de uma ilha. Salva-se toda a gente. Era-lhe recorrente este sonho. Salva-se toda a gente.
- Olá, senhor Pedro. Já sabe onde está?
Os olhos semicerrados, embaciados. A voz ao longe, como que vinda de um túnel.
- Está no Hospital de Santa Maria, nos cuidados intensivos.
- Sei, sei.
E sabia, ao fim de dois dias a ouvir a mesma lenga-lenga, sabia. Mas da primeira vez que acordou ali, pensou estar no El Corte Inglês. “O teto era todo branco e o ar condicionado...”. Achou estranho, porém, “não ter roupa, estar só de fralda”.
Tirando este, o resto dos sonhos “era só desgraça”. Não havia muito com o que ocupar o subconsciente senão com desgraça. Afinal, estava a acordar de 24 dias em coma induzido, havia contraído o novo coronavírus e teve o azar de fazer parte da percentagem pequena de doentes com formas graves da doença. E, para si, ela “não é a doença de que se fala, porque isto não é tão simples quanto as pessoas possam achar”. Apanhou-lhe os músculos, apanhou-lhe o equilíbrio, apanhou-lhe o braço esquerdo, apanhou-lhe o pulmão, e o coração. Este último não literalmente, mas literalmente também, porque teve dois enfartes, para além de uma infeção urinária e de duas pneumonias - a covid-19 e uma “hospitalar, ligada ao ventilador”. Depois, “em termos musculares, foi o braço esquerdo que teve uma distensão e não mexia”.
Passaram já dois meses desde que Pedro Silva teve alta hospitalar e já consegue levantar alguma carga com o braço, meio quilo. Já consegue tomar banho sozinho e levantar-se da cadeira de rodas para a cama ou para o sofá. Já consegue amarrar os sapatos aos pés e fazer caminhadas de 50 minutos.
Passou e derrubou
A Pedro Silva, 51 anos, foram as febres, “na ordem dos 38.5º”, e a falta de ar, que o fizeram culminar numa convulsão. Deu entrada no Hospital de Santa Maria a 16 de março, segunda-feira. depois de ter perdido o apetite e passado o fim de semana “praticamente deitado na cama”. Ligou para o SNS24 às 6h da manhã, nesse início de semana. Encaminharam-no para o hospital Santa Maria, em Lisboa. Só que, ao tomar o pequeno almoço, teve uma convulsão. A esposa chamou o INEM. Pedro entrou no hospital pela porta das urgências covid, fez um teste zaragatoa. “Lembro-me do oxigénio e de me custar muito respirar. Penso que a máscara de oxigénio devia ter anestesia, porque não me lembro de mais nada”. Não lhe disseram, mas tinha-se despegado de segurar a consciência. Estava em coma.
Noutro ponto do país e uma semana depois, Vicente Marques, 46 anos, andava há alguns dias com falta de ar, ao ponto de não conseguir falar. Deu entrada no hospital da Póvoa do Varzim no dia 23 de março, também segunda-feira. Fez um raio X, mediram-lhe a temperatura e transferiram-no para o hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. “Foi mesmo rápido. Só me lembro de ter chegado lá, de me fazerem um raio X e um TAC e a partir daí, recordo-me de entrar numa sala azulada, eles todos camuflados. Fiquei um bocado assustado, o que é que estava a acontecer? Pediram-me um segundo contacto, dei o do meu filho mais velho, Nuno André, e a partir daí puseram-me logo a dormir”. Não lho disseram, porém. “Ligaram-me a umas máquinas, adormeci logo. Acordei passado um mês e meio, já no Hospital de São João, no Porto”.
A história de Ana Patrícia não difere muito. No início de maio, andava com muita tosse, “daquela seca e irritativa”. Sentia-se cansada e custava-lhe respirar. Chegou ao hospital de Santo António, no Porto, no dia 4 de maio, outra segunda-feira. “Fui logo encaminhada para a área da covid-19, porque já ia com indicação da saúde 24. Fizeram análises ao sangue, o teste da covid e um raio X. Depois, a única coisa que me lembro é de me pedirem para despir a roupa e vestir a bata de lá. Já não me lembro de mais nada”. Não se lembra, mas nessa manhã, a enfermeira de 29 anos ainda pegou no telefone para informar a mãe de que ia ficar internada. Acordou quinze dias depois, já no Hospital de São João.
"Há um apagamento da memória para os momentos anteriores à sedação", garante José Artur Paiva, diretor do serviço de Medicina Intensiva do hospital de São João, no Porto. “O nosso cérebro tem uma capacidade extraordinária para apagar as coisas que nos são mais dolorosas”.
Passou e debilitou
Acordou e estava amarrada, “era uma tábua, um peso morto. Mesmo para rodar a cabeça, era um esforço enorme. Tenho ideia que só a meio da semana em que estive acordada é que consegui levantar o braço”, descreve Patrícia. A primeira preocupação, típica de quem conhece demasiado bem os processos por onde se via passar, “foi pensar que ia ficar ali para sempre”. “Que dia é hoje?”, surgia a pergunta por baixo da máscara de um dos profissionais de saúde que a rodeavam. Não sabia. “As colegas enfermeiras disseram-me que era dia 19 de maio”. Tinham-lhe fugido quinze dias e dez quilos por entre as horas que passou inconsciente.
“Não é raro, no alívio do coma, vermos emergir alguma confusão mental, alguma desestruturação do pensamento ou da resposta emocional ao meio exterior”, lamenta, com vocabulário complexo, o diretor do serviço de medicina intensiva do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, João Ribeiro. “Tentamos orientar a pessoa no tempo e no espaço, explicando-lhe o dia, mostrando-lhe as horas”, conta Maria do Céu Rocha, que coordena a equipa de enfermagem do mesmo serviço. Horas. É para saberem as horas que há relógios espalhados nos serviços de cuidados intensivos. “Muitos não conseguem orientar-se logo. A maior parte está dois ou três dias completamente desorientado”, lamenta a enfermeira.
Mesmo antes de abrir os olhos, Vicente começou a ouvir vozes.
- Está a acordar, está a acordar!
Viu enfermeiros, médicos, auxiliares, todos à sua volta, “para aí uns quatro ou cinco”. Lembra-se dos tubos: um entre as cordas vocais, outro na perna, do ECMO. “Era fios por tudo quanto era lado”.
- Se conseguir ouvir-nos, pisque os olhos.
Piscou. Pediram-lhe, depois, para fazer certos movimentos. Conseguia mexer a perna e o braço direitos, tal como a cabeça, mas entrou “em pânico por não conseguir mexer a perna e o braço esquerdos”. Deram-lhe um calmante. O segundo choque chegou quando perguntou a quantos estava do mês. Responderam-lhe 5 de maio. Como? Tinha dado entrada num hospital no final de março. Estava no terceiro hospital e tinham passado, naquele mês, demasiadas horas sem que desse conta delas. Ligaram-lhe a televisão no Primeiro Jornal. Não se lembra das notícias. Passaram dois dias até chegar a tão esperada reação do lado esquerdo do corpo às ordens do cérebro. Aí, Vicente conseguiu relaxar a mente, exceto de noite. Podem ser rijas, as noites, e Vicente, em 46 anos de vida, sempre saudável e apenas com algum excesso de peso, que já estava a controlar com idas ao ginásio, nunca tinha experimentado uma cama daquelas.
Passou e revolucionou
Ao acordar de um coma, há um tubo - entre muitos - que impede os doentes de conseguirem falar. É o tubo do ventilador, que auxilia os pulmões a respirarem, e que ocupa a traqueia, interferindo com as cordas vocais. Por causa desse tubo, Patrícia não conseguia perguntar pelos pais e pelo irmão. “Chorava todos os dias e várias vezes ao dia". Sentia-se sozinha, sem entender bem a razão de ali estar, ela que foi sempre uma pessoa saudável, e sem entender também o motivo pelo qual não tinha quaisquer visitas. “Foi um dia, dois dias, três dias, não via ninguém, não ouvia ninguém dizer que o meu pai tinha ligado. Isso estava a remoer em mim”, descreve Patrícia. Foi um tormento ver-se “dependente dos enfermeiros e auxiliares para tudo” e não saber o que esperar de um futuro, mas tudo se torna pior quando desconhece o estado do resto da família e não consegue perguntar. “Quando me tiraram a traqueostomia [abertura cirúrgica feita na traqueia para colocar o tubo do ventilador], no dia 22 de maio, pedi logo para ligarem aos meus pais”, asserva. Só nesse momento descobriu que a mãe e o irmão também estiveram internados no mesmo hospital, em serviços próximos, com formas menos graves de covid-19 e, ainda assim, impedidos de a visitarem.
Por ter estado menos tempo em coma e pelo peso leve dos 29 anos, Ana Patrícia reeducou os músculos do corpo com alguma rapidez e dez quilos a menos que perdeu durante o coma. (Antes de contrair o novo coronavírus, se tinha algum problema de saúde era somente o excesso de peso.) Já de volta ao hospital de Santo António, no serviço de enfermaria, conseguiu autonomia para “ir ao corredor, por vezes agarrada ao corrimão”. Conseguia tomar banho e vestir-se sem ajuda. Ia vendo caras conhecidas apenas nos colegas enfermeiros - “parecendo que não, ver uma cara conhecida ao fim de tanto tempo é fantástico” - mas o Santo António não seria a sua última paragem, antes de voltar a casa. Faltava uma curta passagem, de 15 dias, pelo Centro de Reabilitação do Norte, para alinhavar a parte do cansaço, do equilíbrio e da autonomia nos pequenos movimentos. Fazia-lhe falta a família, com quem ia falando apenas por videochamadas. E o médico João Ribeiro resume o que só lá se sente: “Os doentes ficaram completamente isolados, internados num ambiente com uma cenografia muito tecnológica, com profissionais que se apresentavam completamente equipados, irreconhecíveis. Era quase como se estivessem numa nave espacial”. Fintar a presença física com um tablet “permite que os doentes vejam a sua casa, os seus livros, a sua biblioteca, os seus netos, os seus filhos, os animais domésticos. Esta comunicação à distância traz o lar ao doente”, completa José Artur Paiva.
Com a chegada do fisioterapeuta, ainda nos cuidados intensivos “foi uma evolução diária” para Vicente.” Todos os dias o meu corpo reagia melhor, ao acordar”, recorda. A reabilitação não começa no momento em que o doente se levanta, começa quase sempre com ele deitado na cama e sem força para se mexer. “Estamos sempre a mobilizar-lhe os membros, para facilitar a altura em que ele depois sai da cama”, explica a enfermeira Maria do Céu Rocha. Dois dias antes de sair dos cuidados intensivos, Vicente já se conseguia sentar. Mas falar, só quando lhe retiraram o tubo, estava já de volta ao hospital Pedro Hispano, passado quase um mês.
- Já pode falar, Vicente.
- Falei. Disse “boa tarde”.
Logo a seguir, os nomes dos filhos: Nuno André, de 23 anos, e Paulo Ricardo, de 20. “Consegui logo, com as dificuldades lógicas”. Os músculos da garganta como que tinham desaprendido a fazer força e as mesmas dificuldades são válidas para comer. “Nunca dei valor à gelatina e agora dou. Ainda como, de vez em quando”, brinca, porque no início apenas podia ingerir líquidos, como iogurtes, e gelatina. Só voltou a comer pão e a beber água já no Centro de Reabilitação do Norte, onde chegou no início do mês de junho, já a saber como se levantar sozinho e com menos 25 quilos, que perdeu num mês e meio em coma. Foi preciso recuperar alguns deles, ensaiar os músculos, ensiná-los da força que conseguem ter e educar a cabeça a não pensar tanto durante a noite, quando “sonhava coisas macabras, violentas”, “tinha medo de dormir” e “preferia mil vezes contar botões”.
“Não é à toa que no dia 13 de maio me desligaram o ventilador”. Apresenta-se, assim, Pedro Silva, católico, “uma pessoa de fé”. Nesse dia, “tinha um grupo de oração a rezar” por si, era imperativo não recuar. “Dia 13 de maio para mim foi um marco importantíssimo. Para já, gosto de ir a Fátima nesse dia. Depois, eu sabia que alguém estava lá para me ajudar. E foi, não tenho dúvida”.
Não recuou mais. Ainda nos cuidados intensivos, começou a andar, agarrado a um carrinho e com um ventilador portátil, “com toda a panóplia das máquinas e de tudo”, e muito medo. Doente com hipertensão, diabetes tipo II e algum excesso de peso, nessa altura cansava-se como se tivesse corrido a maratona, mas “foi aí foi quando espoletou tudo”: conseguia caminhar, era capaz. Só a 17 de maio, dois meses depois de ter entrado naquele serviço, num domingo à noite, passou para um serviço de enfermaria, onde só se aguentou quatro dias. “Tinha de estar o dia inteiro naquela cama para fazer uma hora de fisioterapia”, descreve.
Adquiriu o equipamento todo de que precisava para recuperar em casa. Comprou uma cadeira de rodas, um adaptador para a sanita, um banco para tomar banho, um oxímetro, um termómetro e um andarilho, que mais tarde ofereceu ao hospital que o soube cuidar. Equipou casa e a família como se fossem enfermeiros. “Eles fizeram tudo comigo", congratula-se. Quando ia para a fisioterapia, a mulher levava-lhe o oxigénio, a filha empurrava-lhe a cadeira. Fazia fisioterapia três vezes por semana e cinesioterapia às terças-feiras. Na primeira caminhada que fez sem auxílio, já no dia 17 de junho, aguentou seis minutos, 270 metros. A 14 de julho, um mês depois, fez a segunda prova de marcha e, em seis minutos, conseguiu 386 metros. Nesse mesmo mês “a 20 e qualquer coisa”, na terceira prova, atingiu 616 metros em seis minutos, três vezes mais.
Passou. E o que deixou?
A idade tenra de Ana Patrícia fá-la estar praticamente 100% recuperada quatro meses após ter sido internada. A idade, 30 anos já feitos em casa, mas também o tempo encurtado de sedação, já que "a sedação é o elemento fundamental para as sequelas. Se reduzirmos o nível de sedação, conseguimos evitar sequelas”, refere José Artur Paiva. Quando chegou a casa, pegou devagarinho no carro para se certificar de que ainda sabia conduzir. Os fisioterapeutas avisaram-na, no entanto, que “não podia fazer exercício como fazia antigamente, porque não iria ter a capacidade de aguentar, ou até podia aguentar, mas iria demorar muito mais tempo a recuperar”. Começou recentemente a trabalhar num novo serviço, um bloco operatório, com a certeza de que ter passado pela experiência a mudou enquanto enfermeira.
Para Vicente e Pedro, a recuperação está longe de estar terminada. Talvez lhes restem até sequelas para a vida.
Passados mais de cinco meses, Vicente Marques mantém-se de baixa médica com fisioterapia todos os dias. Os músculos só o permitem levantar dois quilos em cada braço, sendo que não consegue subir o esquerdo na totalidade. A coluna cervical dói-lhe, se se mantiver muito tempo na mesma posição. A voz ainda rouqueia. Só “pouco a pouco” vai ganhando forma. “Antes, não era nenhum Pavarotti, mas não era assim rouca. Ainda bem para mim que não ganho a vida a cantar”, ironiza. Psicologicamente, está mais forte, mas “há momentos do dia em que os fantasmas voltam”. Se dorme quatro ou cinco horas por dia, “é o máximo”, mesmo sob efeito de medicação para dormir. Vêm-lhe sempre coisas à cabeça.
Embora nos inquéritos telefónicos que os hospitais têm feito aos doentes, para lhes seguirem os passos da recuperação em casa, não indiquem “nada de significativamente diferente aos doentes não covid-19 que ficavam prolongadamente e cuidados intensivos”, refere o diretor do serviço de medicina intensiva do Hospital de São João, sobre lesões pulmonares, "a resposta honesta é "não sabemos". A literatura vinda de países como a China, que já lidam com a doença há mais de meio ano, diz que “o regresso à normalidade é lento e que, semanas após doença covid-19, em termos de pulmão, ainda há sequelas visíveis, mas que, na maioria dos casos, o pulmão pode voltar à normalidade total”. João Ribeiro, diretor do serviço de medicina intensiva do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, é mais cauteloso: embora “felizmente, a maioria dos doentes tenha uma recuperação para um estado de saúde muito próximo do prévio, nalguns casos temos assistido a uma lesão pulmonar limitadora da recuperação e impeditiva da condição prévia de saúde”, sublinha.
Talvez por sentir que a caminhada já vai longa sem ver-lhe ainda resquício de fim, Pedro Silva admite estar “preparado para seis meses a um ano de recuperação”, sem saber se recuperará algum dia a vida que tinha e recorda como “uma vida ativa, em que não precisava de pensar antes de fazer algumas coisas, como abrir uma garrafa de água”.
Já passaram dois meses e meio e já tem autonomia para tomar banho sozinho, para se sentar ou levantar, para amarrar os sapatos aos pés. A rotina passa por “muita, muita fisioterapia, quer para a parte muscular quer para a parte pulmonar”, e caminhadas de 50 minutos dia sim, dia não. Completa o lote de exercícios com algum localizados que aprendeu fazer em casa, “para os braços, para a voz, para o equilíbrio”.
Quer agora reduzir um dia de fisioterapia. “Falei com a médica e vamos reduzir, porque a fisioterapia faz falta mas o tempo comigo também me faz falta. É preciso gozar a vida e não só a doença”. Passados mais de cinco meses desde que foi internado, Pedro recorda com facilidade cada cara escondida por detrás de uma máscara. As vozes, os toques de quem, ali sozinho, na sala nave-espacial, lhe amparou as quedas. A enfermeira Diana, a primeira a ligar para a família, a enfermeira Andreia, que raramente lhe saiu da vista, e a Joana, que mora na sua rua mas só conheceu no hospital, como a auxiliar Tânia, que lhe cortava as unhas. “Quando eu agradeci, eles disseram que fizeram o trabalho deles. É verdade, fizeram o trabalho deles, mas fizeram bem feito”.
“Tenho doentes que ainda nos vêm ver, depois disto tudo, e aí sentimos um prazer imenso. Sabe o que é?”, questiona-se Maria do Céu, como se soubéssemos mesmo o que é. “Chegamos a ver pessoas que, ao acordarem do coma, nem conseguem pegar numa colher. E agora já fazem tudo autonomamente. É aquele trabalho como vocês, jornalistas, quando fazem uma peça espetacular e ganham prémios. Nós não ganhamos prémios, o prémio é o próprio doente. Ganhamos ‘Nobéis’ com cada um deles”.