Desportista, Tiago é conhecido nas praias à volta do Porto pela boa disposição. Há dois anos, entrou no mar para surfar mas a dor tirou-o da água. Percebeu que algo de errado se passava e, ainda a conduzir, foi ao Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde lhe foi diagnosticado um enfarte agudo do miocárdio. A principal causa de morte em Portugal tocara-lhe de forma abrupta aos 37 anos e os médicos avançaram para um cateterismo. O que não era bom, ficou pior: durante a preparação do exame, sofreu uma arritmia grave com paragem cardíaca. As hipóteses de sobrevivência reduziram-se a quase nada.
Foram iniciadas as manobras de reanimação para reverter a paragem, mas o coração não voltou a bater sozinho. Foi então chamada a equipa do Hospital de São João, no Porto, e após mais de 30 minutos de compressões torácicas, os médicos ligaram-no a uma máquina — ECMO — que substitui o coração e os pulmões. Tiago voltou à vida.
O surfista foi um dos 50 doentes ressuscitados no São João, desde 2009, data em que se iniciou um programa pioneiro a nível nacional de utilização do ECMO em doentes em falência respiratória e/ou cardíaca a quem não restavam outras alternativas. Daí que a palavra ressuscitação não seja exagerada.
O ECMO é um circuito formado por uma membrana extracorporal que bombeia o sangue e faz as vezes do coração e/ou do pulmão. Na verdade, o que este equipamento garante aos doentes é tempo para os órgãos voltarem a funcionar sozinhos. No caso de Tiago foram precisos dias para o miocárdio acordar, mas o professor de Educação Física venceu as estatísticas e, dois anos depois, corre e voltou a surfar.
Histórias como esta correspondem a 10% das ressuscitações com o ECMO. “A paragem cardíaca é a pior causa de admissão numa unidade de cuidados intensivos”, explica Nuno Príncipe, médico e bodyboarder que acompanhou de perto a evolução do doente, dizendo que este era “um bom hospedeiro”, por ser jovem e praticante de desporto.
Tiago conta que a recuperação de uma ressuscitação avançada — termo técnico para a recuperação de paragens cardiocirculatórias refratárias, isto é, que não revertem depois de mais de 30 minutos de manobras de reanimação convencionais — é uma superação mais do que física, é todo um reaprender a ser. “Perdi a confiança. Antes, sentia-me um super-homem e só agora volto a acreditar em mim. Começou quando dei o primeiro passo numa corrida; não foi fácil mas já estou a relaxar.”
PROGRAMA DE RESSUSCITAÇÃO
Há uma década, Roberto Roncon, então um médico internista com pouco mais de 30 anos, recém-chegado ao São João de um doutoramento na área dos Cuidados Intensivos na Alemanha, propôs que as máquinas de suporte vital extracorporal — usadas apenas para apoio cirúrgico — passassem a ser utilizadas como equipamento de auxílio a doentes em falência respiratória e/ou cardíaca. “As dúvidas sobre a eficácia eram muitas”, conta. Roncon insistiu. O atual coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João ouviu que a técnica era “cara, complicada, que os cateteres eram demasiado grandes, difíceis de implantar”. Vivia-se a pandemia da Gripe A, com óbitos de jovens.
“Desde o início da nossa atividade podemos afirmar ter salvo mais de 50 doentes em contexto de colapso cardíaco ou paragem cardiocirculatória”, afirma Roncon. Em 2017, o programa foi alargado aos hospitais de São José e de Santa Maria, em Lisboa, devido aos bons resultados alcançados no Porto. Um ano depois de ter começado a utilizar o ECMO como forma de salvar doentes com graves problemas respiratórios, o centro do São João começou a atender pessoas com problemas cardíacos, ainda mais difíceis de salvar. Outro passo determinante só foi dado quase sete anos depois, no final de 2016, quando retiraram os rins a um doente ligado ao ECMO que não conseguiram salvar mas que ajudou a melhorar a vida de outros à espera de um transplante (ver texto ao lado).
Na última década, mais de 400 pessoas foram tratadas no centro e muitas histórias passaram pela equipa de cerca de 20 profissionais. Uma das que mais os marcou foi a de Liliana Figueiredo, 34 anos, contabilista de uma tecelagem em Barcelos. Tudo começou, pareceu-lhe, pela profunda sensação de cansaço, quando subir escadas tornou-se um esforço quase impossível de ultrapassar. Adiou enquanto pôde a ida ao médico, mas quando foi, não mais de lá saiu. De Barcelos seguiu para Braga e de Braga para o São João, já ligada ao ECMO, Liliana foi assistindo, sem saber, à dilatação e à inflamação do coração. “Tudo doía, tudo magoava.” Até que o “doutor Roberto” explicou: “O coração está muito fraquinho, terá de fazer um transplante.” “Estive em coma quase um mês, morri não sei quantas vezes”, conta. Dez cicatrizes provam o que passou para poder dizer: “Devo a minha vida a essa gente.”
DOENTES DE OLHOS ABERTOS
É no serviço de urgência que começa o processo de salvar vidas com o ECMO. O doente entra e à espera tem uma equipa preparada para iniciar o tratamento e chamar os médicos do Centro de Referência. As especificidades do equipamento exigem formação especial, sobretudo para o delicado processo de canalização, isto é, de introdução de cânulas de grande calibre nas artérias e veias, na unidade de Cuidados Intensivos. “Um processo que pode durar mais de uma hora”, explica Roberto Roncon.
São crescentes as evidências sobre o papel do ECMO como técnica de ressuscitação avançada mas também da escassez de recursos humanos e logísticos para a sua generalização. Entre os riscos e complicações que podem surgir estão uma descanulação acidental, uma embolia, formação de coágulos nos circuitos, hemorragia cerebral, AVC, infeções e hipertensão. O São João é o único hospital do país que tem uma equipa especializada a funcionar 24 sobre 24 horas e por mais de uma vez foram buscar doentes aos Açores.
Faz parte da rotina da equipa ir ter com os doentes onde eles estão. Como a jovem do concelho do Fundão, a quem o sintoma inicial foi o de uma banal, embora intensa, dor nas costas. Os pais contam a história da filha de 23 anos mas pedem para não serem identificados porque sabem que a privacidade importa à rapariga deitada nos Cuidados Intensivos. Passam ali os dias, as horas escoam-lhes pelos olhos. O pai fechou o café, a mãe deixou o emprego na farmácia e prometem que só sairão com a filha, que, para lá do vidro, está de olhos abertos. Como a maior parte dos doentes que parecem ter ultrapassado o pior, mas para quem o risco de morte continua demasiado presente.
Uma pneumonia de manifestação fulminante e um choque sético deitaram a jovem abaixo. Foi internada no Hospital da Cova da Beira com os pulmões comprometidos e, depois de se ter tentado de tudo, inclusive uma entubação e ventilação em decúbito ventral (de barriga para baixo), os pais são avisados da gravidade da situação e o São João foi chamado. A equipa de Roncon demorou uma hora e meia para conseguir iniciar o ECMO. Seguiram-se três horas até ao Porto. A taxa de mortalidade nestes casos é 80%, sem o equipamento. “Com o ECMO, a mortalidade diminui, mas não vai para zero”, explica o médico. Mais uma vez, as estatísticas foram vencidas e duas semanas depois de chegar, a jovem teve alta. Como os pais tinham prometido, voltaram juntos para casa.
Quem morre, pode salvar
Na passagem do ano de 2016 para 2017 foi feita a primeira recolha de rins no São João de um doente em paragem cardiocirculatória não programada (quando a paragem cardíaca é inesperada, habitualmente fora do hospital). Foi decretado o óbito e o doente ligado ao ECMO, para manter a circulação e os órgãos poderem ser recolhidos em melhor estado. O procedimento entrou na rotina do centro, mas Roberto Roncon, o coordenador, não se dá por satisfeito e quer avançar para o transplante de pulmões e para a recolha de órgãos de doentes em paragem cardiocirculatória programada (quando a paragem é prevista e ocorre no hospital, normalmente com doentes com hemorragias cerebrais catastróficas que não evoluem para morte cerebral mas que não recuperam a consciência). Não há data para os próximos passos e, até lá, é com o transplante de rins que a “tropa” — como Roncon define a equipa — continuará a mudar vidas.
Como a de Carlos Freitas, que desde 2013 passou mais de quatro mil horas sentado a filtrar o sangue. Com uma doença poliquística hereditária, o eletricista de 55 anos fazia diálise três vezes por semana. Uma rotina pesada até que, em janeiro do ano passado, Carlos foi chamado ao São João para receber um novo rim. Uma mulher de 67 anos entrara em paragem cardiocirculatória e foi ligada ao ECMO, permitindo que duas pessoas beneficiassem dos seus rins. Carlos teve então oportunidade para mudar de vida: “Voltei a ser dono do meu tempo.”
A extração de órgãos só pode acontecer em Portugal de dadores vivos, em morte cerebral e em paragem cardiocirculatória não programada. No entanto, o número de órgãos colhidos é insuficiente para responder às necessidades crescentes, sobretudo porque diminuíram os óbitos de origem traumática, como os acidentes de viação. Os especialistas reconhecem que é preciso encontrar alternativas. Um despacho de 2017 do então secretário de Estado-adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, afirma que “um programa nacional de colheita de órgãos em dadores em paragem cardiocirculatória é um objetivo fundamental para melhorar a resposta às necessidades dos doentes que carecem de um transplante”.
O documento cita a experiência do São João e refere que “tendo sido previsto inicialmente oito casos por ano de dadores em paragem cardiocirculatória, registaram-se 27 casos de potenciais dadores” e que “encontrando-se prevista a colheita inicial de 16 rins por ano, registou-se a colheita de 44”. E dos 13 transplantes previstos, ocorreram 30. Com os olhos nestes resultados, a experiência do Porto foi exportada para Lisboa (para os centros hospitalares Lisboa Norte e Lisboa Central).
Questionado pelo Expresso sobre o alargamento do programa de recolha de órgãos aos pulmões, o conselho diretivo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) explica que “a menor qualidade de alguns órgãos traduz-se em limitações na sua utilização para transplantação” e que “a experiência de menos de três anos [do São João] poderá vir a permitir que a colheita seja alargada no futuro a outros órgãos”. Quando? O IPST não é claro: “Todos os processos melhoram com a experiência e este caso não será diferente.” Mais distante ainda parece estar a possibilidade de recorrer à paragem cardiocirculatória programada, que, para ser adotada em Portugal, exige, primeiro, uma alteração legislativa (ver entrevista).
Cinco perguntas a Roberto Roncon, Coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João
A utilização do equipamento que substitui, fora do corpo, o coração e os pulmões [ECMO] deve ser generalizado a todo o país?
Atualmente, temos uma equipa no Porto e duas em Lisboa. Coimbra também quer, mas ainda não tem. Há dilemas éticos ligados à justiça distributiva, e temos de ponderar que Portugal não é um país rico, sofre com escassez de recursos, e por isso não é possível distribuir um equipamento como este por vários hospitais. Defendo a concentração em poucas unidades hospitalares, de forma a aumentar a experiência casuística dos centros que tiverem ECMO. Os doentes com quem usamos a técnica são considerados caros, porque a duração do internamento aumenta com o aumento da sobrevida.
O ECMO pode ser uma solução generalizada para os casos mais graves?
Na Alemanha, metade dos doentes que utilizavam o ECMO morriam ao fim de 24 horas, porque não eram os mais indicados para receber o tratamento. A seleção dos doentes é determinante para o sucesso desta técnica. O ECMO não pode ser considerado uma panaceia. Também temos de considerar que o objetivo não é o tratamento em excesso. O equipamento só deve ser utilizado enquanto há hipóteses de recuperação.
Por que razão os rins são os únicos órgãos colhidos pelo São João para transplante?
Em 2016, aceitámos o princípio de começar a recolha de órgãos pelos rins, não porque seja mais fácil, mas porque são doentes que sobrevivem se o transplante não funcionar. Mas três anos já é tempo em demasia, até porque há doentes a morrer à espera de órgãos como o pulmão [no fim de 2018, havia 57 pessoas à espera de transplante pulmonar]. Atualmente, só se faz transplante de pulmão no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, mas há casuística suficiente [mais de 20 casos/ano] para existirem dois centros em Portugal.
O que falta para avançar com o transplante pulmonar no São João?
O nosso interlocutor é o Instituto Português do Sangue e da Transplantação, e o que falta é uma recomendação e vontade política de designar o Hospital de São João como centro de transplantação pulmonar. O pulmão é o único órgão que tem apenas um centro em Portugal. Além do mais, continuamos a enviar doentes para Espanha. A equipa do centro está preparada para avançar, mas, se isso acontecer, será necessário recorrer a um reforço de recursos humanos.
Há outras técnicas que permitiriam aumentar a capacidade nacional de transplantação de órgãos?
O recurso à doação de órgãos de doentes em paragem circulatória controlada. Mas para este caso não existe quadro legal em Portugal, embora a técnica seja utilizada em Espanha, França, Reino Unido e Itália, por exemplo. São doentes que sofrem uma hemorragia cerebral grave, chegam em coma ao hospital, mas são jovens, não têm outras doenças associadas, e a sua probabilidade de sucesso numa cirurgia é de 10% a 20%, mas têm risco baixo de entrarem em morte cerebral. A maioria destes doentes, internados nos Cuidados Intensivos, não vai recuperar a consciência, porque ficaram com sequelas demasiado graves. As máquinas de suporte de vida só devem permanecer ligadas quando há hipóteses de recuperação, caso contrário são situações de futilidade médica. Mas a lei pode permitir que, nestes casos, após verificado o óbito, o doente seja ligado ao ECMO para permitir a recolha de órgãos. No Reino Unido já há mais transplantes em resultado de paragem circulatória programada do que em morte cerebral. Apresentei um estudo à ministra da Saúde, mostrando que o país poderia aumentar em 30% a 40% o número de transplantes renais com esta técnica. No início da nova legislatura, com o arranque de um novo ciclo político, deveríamos abrir uma discussão pública sobre esta alteração legislativa, mais urgente de debater do que a eutanásia.