ARQUIVO Desporto - Tribuna

"Sinto que marquei um golo naquele lance do Kelvin"

Não é preciso um lead para explicar quem é o senhor que se segue: Liedson, o Levezinho, aquele que era sempre um 31 para o Benfica, recorda a vida que passou em Portugal.

FOTO NACHO DOCE/REUTERS

Sabes que há FC Porto-Sporting no domingo?

Cara, não sabia não. Domingo?

Sim, domingo. Vais torcer por quem?

Óbvio que vou torcer pelo Sporting. Quer dizer, eu respeito todos os clubes por onde passei - e foram alguns, Pedro -, mas o Sporting é um lugar especial para mim. Foi bem legal.

E o que sabes deste Sporting?

Que é uma equipa bem jovenzinha. Não sei se vai dar para chegar ao título, mas... pelo menos para garantir uma vaga na Champions tem de dar. Sabe, é preciso dar tempo para as coisas funcionarem direito, mas gosto de ver o Nani e o Carrillo. Dá até uma certa saudade de Alvalade, de Alcochete, dos ovos mexidos que eu comia lá na Academia.

Deixaste de jogar há dois anos, mas em dezembro último falou-se que podias estar a caminho do Sporting... de Macau.

[risos] É verdade. Cara, falaram com o meu empresário e houve mesmo interesse, mas eu já não sou jogador de futebol. Se me sentisse em condições eu iria, mas Deus me livre de ir para um clube e enganar o clube. Tenho 37 anos, um joelho machucado e até por respeito à carreira que fiz nunca poderia aceitar esse convite.

E a vida corre-te bem?

Sim, tudo normal. Juntei o meu dinheiro enquanto fui jogador e estou de bem com a vida. Mas tenho de arrumar um jeito de começar a entrar mais dinheiro, porque agora só sai, só sai. Estou pensando numa escolinha  de futebol com o Corinthians [onde jogou em 2003, 2011 e 2012], mas, para já, ainda nada.

A tua carreira não foi longa.

Pois não, pois não. Toda a gente sabe da minha história. Eu trabalhava num supermercado até aos 22 anos e não era caixa - em Portugal isso não existe, mas aqui no Brasil há um cara que fica na caixa à espera para embalar as compras do cliente. Eu fazia isso, primeiro, e depois subi na vida [risos]: fui para repositor. É um trabalho honesto e não tem nada de mal, mas eu queria mesmo era jogar futebol. Felizmente, deu sorte.

Voltaste ao supermercado?

Claro! Vou lá sempre, até para fazer as minhas compras, e reencontro antigos colegas meus que trabalhavam comigo na altura. Alguns deles, continuam a fazer a mesma coisa; outro é agora gerente. Você já viu? Engraçado, não é? Fico lá com eles a bater um papo, falar de histórias de futebol.

Falas muito de Portugal?

Óbvio que sim. Devo muito a Portugal e sobretudo ao Sporting, que apareceu na minha vida depois de uma experiência má lá na Ucrânia, no Dínamo de Kiev, do qual acabei por sair. Era muito frio, os números do contrato não eram aqueles que eu tinha acertado e a comida não era boa - e se você não come direito não treina direito, certo? [gargalhada]. Depois, estava no Corinthians e me falaram do Sporting, e eu disse logo que sim: bom salário, a mesma língua, sol - e comida boa. Mas a adaptação não foi fácil, porque o Fernando Santos não confiou logo em mim. Cheguei mesmo a pensar voltar.

Qual o treinador que mais te marcou?

A resposta mais fácil é Paulo Bento, porque conquistei duas Taças de Portugal e duas Supertaças com ele. Mas também gostei muito do [José] Peseiro - marquei 34 golos naquela época, em que chegámos à final da Taça UEFA em Alvalade. Você se lembra?

Se bem me lembro, contaram-se histórias dessa final - que o plantel estava contra o treinador.

É sempre o 'diz que disse'. O que aconteceu foi o seguinte: na manhã do jogo, o Peseiro decidiu fazer um treino, só que estava um baita do calor do car**** e toda a gente ficou meio sentida com aquilo. Que loucura, treinar com aquele sol. Mas não houve falta de respeito... Agora, quanto ao jogo, houve aquela troca do Polga pelo Enakarhire (que tinha saído de uma lesão). Podíamos ter ganho, mas não vou culpar o Peseiro, porque a culpa é de todos.

O Sá Pinto deu-te um murro?

Não, imagina. Houve troca de palavras duras, sim, mas nada de agressões. Estou falando sério.

Tinhas muitos amigos nos clubes rivais?

Nem por isso. Os meus amigos eram os do Sporting e a gente costumava jantar juntos. Em casa. Você nunca ouviu que o Liedson andava aí na noite e bebendo copos porque sempre fui profissional. Me pagavam para fazer uma coisa e eu fazia essa coisa.

E o Luisão?

Gente boa, respeitadora e muito profissional.

Achas que ele tinha medo de ti?

[gargalhada] Acho que não, não sei... Pergunta para ele! A verdade é que eu marcava golos ao Benfica, sei lá, tinha essa sorte. O Luisão era um defesa leal - duro, mas leal. A verdade é que eu tomei muita porrada em Portugal, talvez por ser leve e magrinho e rápido. Eles chegavam e viravam e não te posso dizer quem me deu mais porque foram tantos que não me lembro. A propósito, eu gostava de ser o Levezinho - uma boa alcunha.

Acabaste por ser campeão no FC Porto.

É a vida... O FC Porto procurou o meu representante na altura, mas eu tinha uma cláusula que vinha da rescisão de contrato com o Sporting - se voltasse a Portugal, o Sporting tinha preferência. Eu disse ao Sporting que o FC Porto estava interessado e o Sporting não me quis. E fui para o Porto e fui campeão. Fiz aquele passe para o Kelvin no jogo em que o Jesus ajoelhou. Sinto que marquei um golo naquele lance. É um enorme orgulho ter representado o FC Porto.

E a seleção?

Um orgulho ainda maior... Imagine que você vai para outro país que não o seu e que esse país depois lhe pergunta se você não estaria interessado em representá-lo. Cara, eu já tinha mais de 30 anos e a Federação quis que eu fosse português. E joguei numa Copa do Mundo [África do Sul, em 2010].

Mas esperavas jogar mais.

Foi isso que não entendi bem. Primeiro fizeram força por mim e depois... O Carlos Queiroz nunca me deu satisfação de nada e eu de repente deixei de contar para ele. Mas não me queixo, nem posso queixar. Foi que nem no FC Porto, quando o Vítor Pereira também não me pôs a jogar. Eu sabia que não tinha condições para ser titular, 90 minutos [no total, fez 53 minutos na Liga, em seis jogos], mas queria ter jogado mais.

A vida de futebolista é aborrecida?

Olha, se não for casado e tiver filhos e quiser ser profissional pode ser bastante chata. Eu, por exemplo, quando cheguei ao Sporting estava sozinho e vivia num hotel, em Alcochete. E o que há para fazer em Alcochete? Nada. Portanto, a minha vida era treinar, comer e dormir a tarde toda para depois acordar para jantar, ver um pouco de televisão e... cochilar. Depois, com mulher e filhos a coisa muda e melhora e vai jantar fora de vez em quando.

Falaste muitas vezes em comer.

É, gosto muito de comer. E quer saber uma coisa? Continuo levezinho. Ainda há pouco fui à balança e marcava 74 quilos, o meu peso de sempre. Deus foi bom para a minha genética.