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"Em Portugal, sou o senegalês Fary. No Senegal, Fary, o português"

Chegou a Portugal há 20 anos. Aos 40, Fary é o capitão do Boavista, e o jogador mais popular do clube. Tem o sonho de entrar na história do futebol português como o mais velho jogador que marca um golo na I Liga

Chegou a Portugal há quase duas décadas, convencido de que ia jogar na I Liga. Ficou dois anos no União de Montemor, onde ainda tem amigos. Em 2003, foi o melhor marcador nacional pelo Beira Mar, equipa pela qual ganhou ainda a Taça de Portugal. Aos 40 anos, Fary é o capitão do Boavista, o clube do seu coração, e o mais popular jogador do Bessa. Antes de pendurar as botas, tem um sonho: ficar na história do futebol português como o mais velho jogador a marcar um golo na I Liga.

 

É o jogador mais velho da I Liga. O que é que ainda o faz jogar?

40 anos [risos]. É o amor ao futebol e a este clube. Deus ajudou-me a chegar até aqui, conheço o Boavista como pouca gente, porque estive aqui nas coisas boas e más. Joguei à borla nos piores momentos, mas os adeptos pediram-me para ajudar no regresso à I Liga e fiquei. Posso jogar ou não, para eles sou sempre o 'Fary-golos'.

Li na sua página no Facebook comentários de adeptos a dizer: "Fary, mete a reforma, és mais velho do que o treinador"...

Não tenho Facebook, é alguém que se faz passar por mim. Nenhum adepto me diz isso. Acreditei que ia jogar mais, mas lesionei-me em outubro. Deus assim quis, e estou feliz na mesma por participar na reconstrução do Boavista.

O que pode ainda dar à equipa?

Ser um exemplo para a juventude. Quero que saibam que tenho uma longa carreira porque não tenho vícios. Não fumo, não bebo, não conheço a noite e descanso muito. É casa, treino, treino, casa.

É verdade que o seu sonho é marcar um golo na I Liga aos 40 anos?

Nunca se viu tal coisa. O que quero com isso? Ficar na história deste clube. Será um marco para que os adeptos nunca esqueçam que, se não tivéssemos ido lá ao fundo, não estaria hoje aqui. Assim, os portugueses vão lembrar-se de que um dia chegou cá um senegalês e jogou até aos 40.

Há um culto excessivo da juventude?

Não é no futebol, é na vida. É outra mentalidade. Dantes, um jogador para ser experiente tinha de ter 26 ou 27 anos, ter feito grandes épocas para chegar a um grande. Uma equipa deve ter juventude e veterania. O novo tem velocidade, vai com tudo, enquanto à medida que os anos avançam pensa-se mais. Sabe-se em 70% dos casos onde a bola vai parar e a jogada vai acabar. Se tivesse agora vinte e tal anos, seria um jogador fenomenal.

Sente-se mais português ou senegalês?

Sou um senegalês-português. Não é por acaso que aqui dizem o senegalês Fary e no Senegal dizem Fary, o português. A minha esposa é senegalesa, mas os meus três filhos nasceram cá, e tudo o que consegui na vida foi neste país.

Alguma vez foi alvo de atitudes racistas?

No dia a dia, não. Mas já ouvi cânticos racistas em vários estádios. Faziam aqueles gritos, "oh, oh", a imitar um macaco. Nunca reagi mal nem me chateei com os adeptos. Virava-me para eles e dizia: "Eh, pá, não façam isso, somos todos iguais." Muitos nem racistas são, é só para desestabilizar o jogador. Mas faço um apelo: não façam isso, é errado, e nem todos os jogadores desvalorizam isso como eu.

O seu filho mais velho, Ibrahimi, é jogador do Boavista...

Está emprestado à Oliveirense. Chegámos a treinar juntos no Bessa e joguei contra ele quando estava no Gondomar...

E como é?

Eh, pá, é uma coisa estranha. Eu quis ganhar, ele também, demos o máximo. Ganhámos no Bessa e ele lá. Foi bom assim.

Vai falhar o jogo com o FC Porto...

Só volto a jogar em março. É pena, pois jogar com o Benfica, o Guimarães e, em especial, o FC Porto sempre mexeu comigo. Somos rivais e irmãos da mesma cidade. O Porto é um exemplo de como se consegue vencer na Europa. O Boavista, de como um clube de bairro chegou a campeão nacional.

Os dragões são favoritos?

No Bessa nunca será fácil. Eles são melhores, mas podem ter um dia mau e nós um dia bom. Espero que seja assim na segunda-feira.

Como é ser treinado por um ex-colega de equipa?

Muito bom. O Petit é meu amigo e um grande treinador. Pegou numa equipa de 26 novos jogadores, onde muitos nunca tinham jogado na I Liga, e está a lutar firme pela manutenção.

Veio para Portugal convencido de que ia jogar na I divisão?

Foi. Só depois de 15 dias é que soube que não estava no União de Montemor só para treinar. E que a II B não era sequer a II Liga. Descobri isso quando perguntei em que canal davam os nossos jogos. Andei triste uma semana, mas acabei por passar lá dois anos maravilhosos. Até hoje, tenho bons amigos no Alentejo.

É verdade que o seu pai não queria que fosse futebolista?

Como era bom aluno a matemática, o meu pai queria que fosse engenheiro, até ministro, e não me deixava jogar futebol. Em Dacar, jogava em clubes às escondidas dele, com a ajuda da minha mãe, até ser convocado para a seleção de sub-18. Aí, tive de lhe dizer. A seguir, quando chumbei o ano, até me quis pôr fora de casa.

Este é o seu último ano?

É. João Loureiro e Álvaro Braga, os grandes responsáveis por este clube estar vivo, têm planos para mim. No Senegal e amigos meus em França também têm projetos para o meu futuro, mas ainda não sei o que vou fazer. Peço a Deus para me guiar. Graças a Ele tenho uma vida boa e ajudei a pagar os estudos a oito irmãs e ao meu irmão mais novo.

É muçulmano praticante?

Sou, mas os meus pais são cristãos e somos uma família unida. Respeito os hábitos do país onde estou, pratico a minha religião em paz, nunca ninguém me incomodou. Se Deus quisesse que todos os homens tivessem um só credo, tinha criado uma só religião.

Como se combate o radicalismo?

O mundo tem de ser mais inteligente. Em minha opinião, o que tem acontecido são atos condenáveis de pessoas que se dizem muçulmanas. Matar não é solução para nada. Não acredito que quem mata entrará no paraíso.