ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de música de 9 a 15 de Janeiro de 2010

Definitivamente sem luvas 

O segundo álbum dos Vampire Weekend deixa "Graceland" de Paul Simon a perder de vista.

Desde o início da década de 80, momento de erupção do pós-punk, do mítico "eixo-Liverpool/Manchester" (Joy Division, Echo & The Bunnymen, The Teardrop Explodes, Smiths) e do experimentalismo 'industrial' de Sheffield (Cabaret Voltaire, Clock DVA, The Human League), que não emergia nada com a semelhança de uma scene, incluindo o melhor que, quando autênticas, elas possuem: energia, diversidade, espírito de aventura e pouca vontade de se resignar aos padrões de criação e consumo dos mainstreams das várias épocas. O grunge de Seattle, o frenesim dançante de Madchester, a saturnidade de Bristol poderão ter tido, na origem, um código genético fértil, mas demasiado rapidamente, de vítimas/cúmplices do hype, se converteram em marcas registadas, facilmente esterilizadas e normalizadas pelas cadeias de montagem da indústria discográfica. Não espanta, assim, que, quando os primeiros rumores acerca do surgimento de uma "Brooklyn scene" começaram a fazer cócegas nos ouvidos, a atitude sensata fosse ficar de pé atrás: outra???!!!...

Pois bem, dois anos e tal após os zunzuns, pode confirmar-se: sim, ela existe, é musicalmente rica como poucas, o espírito de rebanho parece encontrar-se higienicamente ausente e, realmente de comum - para além da localização geográfica no borough mais populoso de Nova Iorque - a músicos e bandas como St. Vincent, Yeasayer, Animal Collective, Au Revoir Simone, Sufjan Stevens, My Brightest Diamond, Grizzly Bear, Dirty Projectors, The National ou High Places, apenas há o desejo de individualidade criativa sem mimetismos tribais. Ah!... e não esqueçamos os Vampire Weekend, com os National, talvez os casos de maior relevo de uma cena indie que - outra diferença - não se acanha excessivamente com a ideia de poder ser popular. E de ostentar currículos académicos. E de (ao contrário dos Strokes que levavam a mal o facto de serem encarados como punks betos) lhes carimbarem na testa o selo de - falo dos Vampire - Columbia-rich-kid-afro-indie-pioneers. Eles são, sem dúvida, tudo isso e é para o lado que dormem melhor.

Em Janeiro de 2008, "Vampire Weekend" despia o último par de cerimoniosas luvas com que a pop - de Paul Simon a Peter Gabriel ou mesmo David Byrne - sempre manuseara a coisa 'étnica': uma serpentina de guitarras da Orchestra Baobab é tão respeitável quanto a hiperactividade dos Feelies, o soukous congolês não é incompatível com literatas ironias sobre intimidades chiques do Upper West Side e uma sequência de arpejos mozartianos não tem que se sentir incomodada por se descobrir reclinada sobre uma rede rítmica de highlife. O álbum de estreia da banda de Ezra Koenig, Chris Tomson, Chris Baio e Rostam Batmanglij era impuríssima matéria-pop em permanente celebração da inteligência, da nonchalance sofisticada e da urgência de inventar música, e adubou o terreno para que, mal surgiram, em Setembro passado, os primeiros indícios de que o segundo tomo estava para breve, meia Internet tenha uivado apelos para que, nas habituais esquinas mal frequentadas, algum dealer mais expedito permitisse que se espreitasse o tesouro. Uma semana antes da data oficial de publicação, porém, os próprios Vampire o colocaram, integralmente, em streaming na sua página do MySpace. Diga-se, então, que "Contra" refina esplendorosamente os sabores e aromas da investida inicial, em dois ou três instantes (White Sky, Diplomat s Son, I Think Ur a Contra), viaja umas boas léguas adiante do que Paul Simon sonhou em "Graceland" e, na trovoada percussiva aspirada por túneis digitais de Giving Up the Gun, deixa-o mesmo a perder de vista. Só isso já seria óptimo. Mas há ainda que reparar nos delirantes ziguezagues da arquitectura sonora, nas alusões barrocas, nos subtilíssimos reichianismos, nos divertimentos electro que Rostam carreou de "Discovery" ou na adrenalina ska-punk que borbulha, aqui e ali. Haveria melhor forma de inaugurar 2010? João Lisboa

Vampire Weekend

XL Recordings/Popstock

(á venda dia 11) 

Espers

Wichita/Nuevos Medios

Abençoado seja Charles Darwin! Mesmo nos nichos ecológicos mais geneticamente desfavorecidos a selecção natural consegue operar pequenos milagres de identificação dos mais aptos. Tome-se o caso do freak-folk: de um acampamento de maltrapilhos, perdidos entre a última bad trip de Syd Barrett, o colar de missangas de Donovan e os restos do estufado de tofu que Jimmy Page deixara colados às páginas do "Book of Thelema", de Aleister Crowley, dificilmente poderia sair coisa decente. Com o tempo, no entanto, do infecto caldo cultural, seres pluricelulares dotados de um módico de inteligência e sensibilidade acabaram por emergir. Os Espers são um dos exemplos mais significativos. Recordam-se como os Fairport Convention iniciais imaginavam ser os Jefferson Airplane britânicos? Pois é justamente nesse interstício Fairport-Airplane que, ao terceiro álbum, a banda de Meg Baird, Greg Weeks e Helena Espvall labora. Claro que Meg não é Sandy Denny nem Grace Slick e Greg ainda tem de roer muita côdea de pãozinho integral para sonhar caminhar na sombra de Richard Thompson ou Jorma Kaukonen. Mas, se recordarmos as humildes origens, até nem se safam nada mal. J.L.

Martha Wainwright>

V2/Nuevos Medios

Dizer família disfuncional é, como se sabe, uma redundância. Mas ainda que, desde Adão, Eva, Caim e Abel, nesse imaginário pilar da sociedade, as coisas nunca tenham, realmente, corrido bem, há casos em que se abusa. O casal Loudon Wainwright III (aliás, um retinto freak-folker bastante avant la lettre) e Kate McGarrigle, antes de violar os sagrados votos do matrimónio, divorciando-se, reproduziu-se por duas vezes. Da primeira, nasceu Rufus Wainwright, um moço que se imagina dotado de um gigantesco talento de compositor e intérprete operático mas que, lá no fundo, gostava era de ser Judy Garland (e foi-o, recriando ao vivo o famoso concerto desta em 1961 no Carnegie Hall). A mana mais nova, Martha, pelo seu lado, folk-rockou sofrivelmente em dois álbuns, até ter descoberto a sua verdadeira vocação: montar um gigantesco chuva de estrelas a solo, macaqueando Édith Piaf. Na produção do espectáculo (apresentado no Dixon Place, de Nova Iorque, em Junho passado), Hal Willner fez o que foi capaz para segurar as pontas, houve imitações mais conseguidas do que outras, mas, essencialmente, o que se deve perguntar é: não seria mais do que oportuno um referendo sobre a ilegalização do casamento heterossexual? J.L.

Rihanna

Def Jam/Universal

Já se sabe que nada se julga pela capa. E da contracapa nem será bom falar. Para além, claro, do que se diz das aparências. A primeira novidade, aqui, reside no facto de que aquilo que se vê é - sem tirar nem pôr - aquilo que se ouve. E a segunda, na circunstância de não haver qualquer intenção de contrariar um conjunto de sinais (consultar o libreto) que transmite de Rihanna a ideia de um símbolo de transgressão moral da era Obama do calibre da Madonna dos dias de Reagan. Terá sido por isso que a cantora dos Barbados chegou a gozar de um estatuto próximo do de quem cruza os mares da aventura estética movido pelos ventos da contracultura? Mistério. Ou terá sido a qualidade do 'produto' (e tudo indica que este termo vindo das profundezas da pop art seja o maior elogio que alguém lhe pode fazer)? É verdade que será difícil imaginar uma encenação mais mainstream desta nova área de confluência de canção pop, gospel, heavy-rock, hip-hop, tecno, experimentalismo-quanto-baste e ambição sinfónica. Mas também seria injusto tudo resumir a uma galeria de clichés-para-grandes-superfícies e ignorar uma aptidão (por vezes, até, invenção) para incutir alguma credibilidade estética num corpo musical que lhe parece imune. Ricardo Saló

Syran Mbenza & Ensemble Rumba Kongo

World Music Network/Megamúsica

Com a sua morte, em 1989, caiu a noite sobre uma nação em ruínas. E - à excepção da que, estando já em parte alguma, se baseava em valores de produção importados - não se vislumbrava que a música no Congo sobrevivesse ao desaparecimento de Franco. Passadas duas décadas está ainda por se refazer o país, mas pela primeira vez desde a saída do poder de Mobutu chega em paz o mês de Janeiro. Talvez por isso tenha 2009 (com o segundo volume de "Francophonic", a compilação "Cubanismo from the Congo" ou a descoberta de Staff Benda Bilili) prenunciado o regresso da antiga colónia belga ao mapa mundial de distinção estética. Também Syran Mbenza - com um punhado de veteranos das TPOK Jazz, Quatre Étoiles e Kékélé a seu lado - relembra as lições do seu malogrado líder, puxando o lustro a clássicos do seu repertório e renovando-lhe características essenciais: irresignável sentido rítmico em síncopes de voluptuosa elegância, transparente delicadeza em harmonias de eterna deriva atlântica, gorjeados vapores extraídos a febris braços de guitarra, deslizantes melodias suspensas em colares de atóis, sopros de panteão a balançar as ancas ao equador, prosódicos jogos de palavras a escarnecer linguistas. Tão simples quanto a rotação da Terra. João Santos

Vero e ben trovato

No seu novo disco, Renée Fleming veste o Verismo com as cores do Bel Canto.

Quando se fala de verismo em ópera, pensa-se logo no realismo cru de Zola e Verga, em personagens cheios de problemas sentimentais e que precisam de trabalhar para comer, em vozes grandes que dão tudo por tudo, num canto de meia bola e força. Há, no entanto, uma outra tradição, vinda do belcanto, praticada por Callas, Zeani, Scotto, etc., neste repertório - a do respeito pelas palavras e notas. É este o ataque da Fleming. Quando, há um ano, a entrevistei em Nova Iorque, a gravação deste disco estava ainda fresca e falámos dele. Confesso que a primeira leitura, agora, me deixou um tudo-nada desapontado. Parecia-me um CD de compromisso, misturando a novidade (nem sempre música do melhor quilate) com os bombons do costume. Depois, o disco foi-se entranhando. Perdoa-se ouvir novamente as duas árias de Mimi de "La Bohème", de Puccini, quando são tão bem cantadas. E há agora a oportunidade de comparação com duas árias da ópera homónima de Leoncavallo - uma caracterização de Musette, em tempo de valsa, cantada por Mimi, e uma perceptiva descrição desta, na voz de Musette. E, se é verdade que a ária de Liù se presta a todos os maneirismos da cantora, a vocalização da ária de Suor Angelica é perfeição absoluta, culminando numa flutuação sublime da última palavra, 'amor'. Também é bom ouvir a versão original do 'Sola, perduta, abbandonata!', da "Manon Lescaut".

Outra mais-valia deste disco está na inclusão das deixas e interjeições dos outros personagens (embora quase aposte que as vozes foram gravadas em separado, com diferente acústica). Os acólitos portam-se bem, com destaque para o tenor mexicano Arturo Chacón-Cruz (um protegido de Domingo e Vargas); surpreendentemente, a estrela Jonas Kaufmann (o Ruggero de "La rondine") não está em boa forma. As cenas estão completas e a mais longa e impressionante é o encontro de Zazà (Leoncavallo) com a filha do amante, Totò, que entrelaça o canto da protagonista com a fala da criança. De resto, impera a diversidade dramática - dos arranques passionais de Lodoletta (Mascagni) e da Wally (Catalani) à suave cantilena narrativa de Iris (Mascagni); do patriotismo de Gloria, fiel à sua Siena natal, agora cercada, à espanholice de Conchita (Zandonai), uma 'filha' sadomasoquista da Carmen (a ária é brilhantemente rematada). Vários destes libretos passaram pelas mãos de Puccini, que rejeitou o da "Lodoletta", mas chegou a considerar o de "Conchita". Marco Armiliato dirige tudo com muita verve. Altamente recomendável. Jorge Calado

Renée Fleming, Coro e Orchestra Sinfonica di Milano Giuseppe Verdi, Armiliato (d)

Decca/Universal

 

Janine Jansen, Paavo Järvi, Orquestra Filarmónica de Câmara de Bremen, Orquestra Sinfónica de Londres

Decca/Universal

Após as suas festejadas gravações com peças de Bach, Vivaldi, Mendelssohn, Bruch e Tchaikovsky, a violinista holandesa regressa à ribalta com o concerto de Beethoven (acompanhada pela orquestra alemã) e com o de Britten (com a orquestra londrina). Depois do momento de excelente cumplicidade com Chailly e a orquestra da Gewandhaus de Leipzig, Janine Jansen (Soest, 1978) associa-se agora ao maestro nascido na Estónia, Paavo Järvi. No texto de apresentação, a violinista alude à estreia do concerto de Beethoven em 22 de Dezembro de 1806, altura em que foi dirigido pelo próprio compositor. O violinista Franz Clement teve de tocar a parte de solista à primeira leitura, pois Beethoven esteve a terminar o concerto até ao último instante. Janine produz um som muito doce, de ternura em júbilo, como se a sua preocupação fundamental fosse a de limar qualquer tipo de aspereza. Para contrabalançar, Järvi guia a orquestra com uma violência magnífica na introdução e no epílogo. Compreende-se que, para tais proezas, a Stradivari Society de Chicago continue a emprestar à holandesa o "Barrere" de Cremona, instrumento histórico de 1727, um violino fabricado por Antonio Stradivari. Guiada pelo gosto em tomar riscos artísticos, a jovem lança-se de forma fogosa no concerto de Britten, estreado em 1940, no Canadá, uma obra que constitui um enorme desafio técnico e estilístico tanto para a solista como para a orquestra. Em efervescência interior, a conjunção Jansen-Järvi produz momentos de apaixonante lirismo expressivo sobretudo no Allegro do concerto de Beethoven e no Vivace de Britten.Ana Rocha

Bill Frisell

Nonesuch/ Warner

Se há músico que pode autenticamente retratar a americana ao lado de Charles Ives, Woody Guthrie ou Hank Williams, ele é Bill Frisell. Frisell sempre soube dar um cunho de autenticidade country à sua música, um jazz com sabor a blues, folk ou bluegrass. Disfarmer foi um fotógrafo de nome Mike Meyers que viveu em Heber Springs, Arkansas. Como meier em alemão significa 'lavrador', Meyers resolveu mudar o seu nome para Disfarmer, para evidenciar que se queria distanciar do significado e ser fotógrafo. Mike Disfarmer, que viveu de 1884 a 1959, tomou a peito mostrar nas suas fotografias a pobre América rural em que vivia. Fotografava a preto e branco no estúdio, com enorme atenção à luz e à composição. Em 1976 foram descobertas as suas fotos com o seu enorme sentido estético e realismo. Em 2007, o director artístico duma instituição de Columbus, Ohio, resolveu montar uma exposição multimédia denominada "The Disfarmer Project". Pensou numa música para o efeito, e o nome de Bill Frisell veio imediatamente à baila. Frisell apaixonou-se pelas fotos e com um pequeno grupo de cordas (a sua guitarra, Greg Leisz na guitarra de metal, Viktor Krauss no contrabaixo e Jenny Scheinman no violino) resolveu traduzir em música o que sentia nas imagens de Disfarmer. Uma música duma beleza estranha, duma intensidade tranquila, que é tudo: blues, country e sentimento, entrelaçando-se em 28 peças. Três composições alheias, That's Alright Mama, de Arthur "Big Boy" Crudup (que Presley cantou), Lovesick Blues e I Can't Help It, do lendário Hank Williams, intercaladas pelas sensíveis peças de Frisell, confirmam que ele é um grande artista da americana que representa a outra América. Raul Vaz Bernardo