ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de música de 22 a 28 de Agosto

Nada será como antes 

Um arrebatador ensaio do Kronos Quartet sobre um mundo sonoro em dramática extinção

Pegando na metáfora sugerida pelo título deste álbum, há algum tempo que na discografia do Kronos Quartet crescia o murmúrio das águas. Bastava ignorar uma fidalguia estilística aqui ou o indulgente culto do exotismo acolá para que a bonomia face ao seu mitificado eclectismo não desviasse a atenção do essencial. E adivinhava-se que - correndo fragas, escavando as vertentes das montanhas, alagando pauis e estremecendo as profundezas do remanso - haveria a torrente criativa de galgar as margens e, na sua passagem, tudo arrastar até que nada ficasse como antes. Terá tanto de previsto quanto de fortuito que a ideia se concretize plenamente num disco transnacional consagrado às planícies de inundação e à consequência das cheias. E também na análise póstuma da obra do quarteto se reconhecerá este ponto como o do definitivo ensaio sobre a fertilidade. Mas ao impulso cumulativo normalmente patente nas suas acções acrescenta-se agora uma subversiva visão que, de tão urgente e vigorosa, dispensa a piedade. É essa a característica que com maior exactidão confirma a sua presente clarividência intelectual.

Naturalmente, olhando para 35 anos de comportamentos artísticos de risco, não deixa de impressionar que uma fortaleza estética desta magnitude se prove tão flexível. Para tal contribuirá uma prática de nomadismo cultural que - de "Pieces of Africa" (1992) a "Kronos Caravan" (2000) - se manifestou singularmente inclusiva e de indiscretíssima exuberância. É aliás a gravação de 2000, ao vasculhar recantos do globo em peregrina missão de salvamento, que mais se presta à pretérita categorização de "Floodplain". Mas aí, a reflexão sobre realidades periféricas aos centros de poder - do português Carlos Paredes ao húngaro Rezsö Seress - era acessória da quimera, insistindo-se num tom de efabulação sujeito ao facciosismo e à dramatização que atraiçoava as origens. Ainda assim, há entre esse e este registo um contínuo de justificável evidência: abria um e fecha o outro com peças da sérvia Aleksandra Vrebalov. Aqui, '...hold me, neighbor, in this storm...' é paradigmática: quase uma trágica parábola para a desintegração política, ao longo de 21 minutos nela retumbam trovões, soam os plangentes sinos das igrejas ortodoxas, clamam nas mesquitas os muezzin e uma oração é declamada pela avó da compositora, enquanto as cordas, entre a mais pérfida cacofonia folclórica e uma ventosa fremência soprada da Panónia, flutuam entre os tambores da guerra dos Balcãs.

Mas as ribas do Danúbio são apenas a derradeira paragem. Antes, numa 'Ya Habibi Ta'ala' para sempre ajustada ao seu estilo, haverá de se lembrar o Nilo e a voz de Asmahan - ela que em 1944 no 'grande rio' encontrou a morte - ou sugerir uma página sálmica cantada na Sexta-feira Santa pela libanesa Fairuz ('Wa Habibi'). E - com Alim Qasimov - reproduzir com fidúcia o monódico mugham do Azerbaijão numa ondeante versão comparável aos meandros fluviais do mar Cáspio ou - numa composição de Ram Narayan com Terry Riley na tambura - evocar Udaipur, a indiana cidade dos lagos. Não ignorando o drama das regiões permeáveis à devastação das enchentes, importará nestes exemplos - como nos temas provenientes do Iraque, Irão, Etiópia, Turquia ou Cazaquistão - validar, mais que o seu panegírico teor, a total imersão regional e a revelação de tradições musicais ameaçadas por conflitos. E, sobretudo, louvar um audaz controlo narrativo que sobrevive ao cisma, reconhecendo que estas interpretações não diluem fronteiras - destilam-nas naquilo que possuem de mais maculado. Porque, num poético delíquio, o Kronos Quartet mostra hoje o que tantos insistem em ocultar: o arrebatamento de um Mundo em extinção. João Santos

Kronos Quartet

Nonesuch/Warner

Florence + The Machine

Island/Universal

Florence Welch tem, de facto, atrás de si, uma máquina. Que, mesmo nestes anos do estertor final da indústria discográfica dominada pelas majors tal como as conhecíamos (à indústria e às majors, continua a carburar de acordo com as antigas normas e ainda mantém o engenho suficientemente lubrificado para, aqui e ali, ir produzindo resultados. No caso de Florence, o design do projecto é absolutamente transparente: conceber um ersatz de estrela indie com motor turbo industrial. Calculado ao pormenor, diga-se. Primeiro, a biografia: filha de Evelyn Welch - historiadora de arte norte-americana e habituée do Studio 54 - e do publicitário Nick Welch, com infância e juventude protegidas mas apropriadamente 'perturbadas' e passagem pelo Camberwell College of Arts no currículo, o que fica sempre bem no retrato de uma would-be-pop-star com pedigree. Naturalmente, alguém cuja mãe-historiadora de arte baptizou como Florence só poderia ser devota da arte do Renascimento italiano e, em particular (oh quão popmente conveniente!), da "Circuncisão de Cristo", de Mantegna. Ou assim os spin doctors discográficos nos pretendem fazer crer. A composição da personagem salta, depois, sem grandes sobressaltos, para um registo pré-rafaelita destrambelhado com imprescindíveis laivos 'góticos', referências dispersas a Edgar Allan Poe e Tim Burton e a informação adicional de que Miss Welch iniciou a carreira cantando em casamentos e funerais de família, mas "especialmente, funerais". Nada disto teria o mínimo problema - indústria é indústria e, de Tin Pan Alley aos ABBA, muito devemos à pop industrial - se "Lungs" fosse luva de dimensão adequada a esta mão e, como nos garantem, descendente directo de uma ilustre linhagem que incluiria Nick Cave, Tom Waits, Björk, Kate Bush e Siouxsie. A última, conceda-se, é marginalmente plausível: 'Kiss with a Fist', o primeiro single, é uma tentativa, vá lá, decente de cruzar os Banshees com os White Stripes. Bastante mais difícil é engolir que, de um composto de riot grrrl pop caricatural, garage rock com esteróides, soul-baunilha e os menos recomendáveis traços de uma Patti Smith de cartoon, todos cerzidos em canções com títulos como 'Cosmic Love' ou 'My Boy Builds Coffins', possa resultar algo de vagamente associável ao quinteto supramencionado e não apenas uma ruiva, giraça, de pernas até ao pescoço e com um vozeirão que berra histórias de lobisomens e corações em sangue. João Lisboa

David Bowie

DVD + CD EMI

Não é necessária uma exploração demasiado exaustiva das entranhas do YouTube para nos apercebermos de como, actualmente, muito do que mais interessante acontece em matéria de música ocorre no interior dos estúdios de televisão de diversos canais (tradicionais e online) e sob os mais variados formatos. Isto, claro, naquelas zonas libertadas do universo que não estão submetidas à dominação exclusiva do conceito de televisão enquanto contentor de resíduos audiovisuais. O "VH1 Storytellers" é uma delas, desafiando os artistas que nele se apresentam perante um público quase de sala-de-estar a combinar canções e as histórias a elas associadas. Este, com David Bowie, de 1999, foi o 40º da série, que já vai em 70. Talvez porque date da altura do pouco memorável "Hours...", não é, seguramente, um Bowie vintage aquele que aqui parece, ainda que, desse álbum, apenas inclua dois temas. A faceta de adult entertainer assenta-lhe desconfortavelmente e, se alguns dos episódios que conta (envolvendo Iggy Pop, Steve Marriott, Marc Bolan) conseguem provocar dois ou três sorrisos, esta sua versão de crooner passado a ferro para público complacente não é um dos seus (nem do "VH1 Storytellers") melhores momentos. J.L.

Rui Maia

Optimus/Compact

Bezegol

Optimus/ Compact

Um diz que bastou um telefonema; o outro, ou alguém por ele, que "já chegámos à Madeira" (Londres e Nova Iorque, neste caso). Seria bom que a estratégia de detecção das melhores ideias não desse lugar à irreflectida atitude de abertura das comportas da qual resultou o súbito afogamento do famoso rock de 80. Porque, embora o convite para a gravação de um disco não tenha que seguir por mala diplomática nem a pop lusa deva abdicar da ambição de se bater com as de maior reputação, convirá manter viva esta consciência enquanto há mais trigo que joio. E, mesmo sem que surjam aqui novas razões para a entrada definitiva no estado de euforia, nada justifica - ainda - a declaração do alerta laranja. De Rui Maia (X-Wife) se dirá que mergulha num electropop de matriz Moroder/Depeche Mode sem grandes ideias na frente formal mas ciente da difícil arte da maximização do groove numa realidade estética movida a energia melódica. Mais quentes são os mares da predilecção de Bezegol e scuba diving a forma escolhida para neles se entregar a um exercício de reconstituição do roots reggae pelos olhos de um rapper mais apto a daí retirar matéria de sonhos mainstream que a lançar sobre esta uma nova luz (fosse o fado oblíquo de 'Rude Sentido' a regra e a conversa seria outra). Ricardo Saló

"Time Out" faz 50 anos

Edição tripla comemora aniversário da obra de Dave Brubeck.

No meu artigo sobre 1959 ("Actual", 9/5/09), segundo muitos o ano mais importante da história do jazz, cometi um erro lapidar. Não incluí Dave Brubeck. Todavia, a importância de "Time Out", gravado em 1959, foi imensa. Não apenas porque o seu single 'Take Five' foi o primeiro hit do jazz moderno, vendendo mais de um milhão de exemplares, mas porque o álbum marcou um tempo no jazz em que a temática recorrente a novas métricas rítmicas passou a ser usual.

O grupo do pianista Dave Brubeck, que incluía o saxofonista alto Paul Desmond, o contrabaixista Eugene Wright e o baterista Joe Morello, há muito que vinha criando obras de grande integridade jazzística, onde o lirismo e som de Desmond se conciliavam com a força harmónica de Brubeck e com a fluência do par Wright/Morello. Uma análise histórica não pode deixar de concordar que a promoção do grupo pela Columbia funcionava na perfeição (Brubeck até foi capa da revista "Time"), em detrimento dum jazz com raízes mais afro-americanas. Tal não impede uma valoração do jazz de Brubeck, que se apresentava com um trunfo fundamental: Paul Desmond. Músico com um timbre quase à Getz, tinha uma expressividade e imaginação melódica capaz de enaltecer qualquer peça. Como a dupla rítmica sabia funcionar com vibração e swing, o quarteto não podia falhar. A parte mais frágil eram mesmo as intervenções do piano. O conceito rítmico de Brubeck era muito acentuado, inspirado no pianismo clássico do jazz (do stride a Earl Hines), que, inserido na maior fluência do jazz mais moderno, constituía quase um travão. O carácter pesado das improvisações surgia, na maior parte dos casos, a meio dos seus solos, quando começava a funcionar em acordes. Compare-se o seu processo de acordes e os de Bill Evans ou Red Garland.

Ressalve-se que Brubeck, como se comprova em "Time Out", é um excelente compositor - vide todas as composições de sua autoria, com excepção de 'Take Five', que é de Paul Desmond. Já em fase anterior da sua carreira Brubeck criara um grande tema, 'In Your Own Sweet Way', abordado por muitos grandes músicos de jazz. Não querendo ser injusto, convém destacar que, com a idade, o músico transformou-se. Hoje, com 88 anos, os seus processos pianísticos são mais elegantes e variados.

Este triplo CD inclui um disco com peças inéditas repescadas de actuações do quarteto em festivais de Newport da década de 60, onde estão todas as virtudes e também os defeitos: um Desmond imperial e um Brubeck excessivamente entusiasta no seu jogo de acordes. O terceiro CD contém uma entrevista com o pianista, para além duma galeria de fotos. Raul Vaz Bernardo

The Dave Brubeck Quartet

3 CD Legacy/Sony

Philharmonia Hungarica, Antal Dorati (d)

33 CD Decca/Universal

Confesso o meu fraquinho por estas gravações: foi com elas que aprendi a amar Haydn, no princípio dos anos 70. Era a primeira gravação completa das 104 sinfonias, mais a concertante e a A e a B, incluindo versões alternativas. Nunca devia estar - como se diz dos livros - fora do mercado. Reaparece novamente, numa edição especial limitada de 33 discos (infelizmente sem as notas originais de H.C. Robbins Landon), comemorando os 200 anos da morte do compositor. Há quem se queixe que ouvir todas as sinfonias de Haydn é como ouvir só uma (ou vice-versa). São surdos, Senhor, que não sabem o que ouvem! Da singela primeira, composta em 1758, à glória da dúzia de sinfonias de Londres, de 1791-95, o espectro é rico e variadíssimo, cheio de surpresas tímbricas, harmónicas e outras. Há sinfonias para todos os gostos: filosóficos, pastorais, cinegéticos, mecânicos e militares; para a rainha e para o povo. E montes de humor: oiça-se o peido do fagote na Nº 93, em ré maior! Os puristas podem reclamar por versões historicamente mais informadas (mas possivelmente menos autênticas). Ao contrário do seu mais directo competidor - a versão de Adam Fischer, agora na Brilliant -, estas sinfonias não foram gravadas no Palácio Esterházy, em Eisenstadt (a base de Haydn durante três décadas). Os instrumentos não são de época, mas os músicos, genuinamente húngaros, têm esta música na massa do sangue. Dorati adopta tempi vivos, descontrai nos minuetos, escolhe o número certo de instrumentistas, arranca rusticidade aos sopros e metais, permeia tudo com um calor humano, muito próprio do compositor. Abençoado Haydn! Ou, como ele rematava as partituras, Louvado Seja Deus. Laos Deo. Jorge Calado

J.-G. Queyras (violoncelo); Maestros: G. Herbig, A. Briger, G. Amy; Rundfunk Sinfonieorchester Saarbrücken, Orchestre Philharmonique de Radio France, Orchestre de Paris

Harmonia Mundi

O violoncelista Jean-Guihen Queyras (Montréal, 1967) elegeu um trio de concertos de compositores contemporâneos de diferentes gerações: Gilbert Amy nasceu em 1936, Philippe Schoeller em 1957 e Bruno Mantovani em 1974. Os compositores, com ligações ao IRCAM, a Milhaud, Messiaen, Boulez e Xenakis, escreveram as obras para serem estreadas por Queyras, que também trabalhou durante uma década com Boulez e o Ensemble Intercontemporain. Três orquestras foram convocadas para a gravação dos concertos do século XXI: a Sinfónica de Saarbrücken (para o concerto de Mantovani), a Filarmónica da Radio France (Schoeller) e a Orquestra de Paris (dirigida pelo próprio Amy). Nos 18 minutos do concerto que Mantovani compôs em 2003, o músico pretendeu fazer uma homenagem deliberada ao concerto para violoncelo de Schumann, uma peça que Queyras tem no seu repertório. A orquestra é usada como um envelope ou uma caixa de ressonância que transforma e deforma o som do violoncelo. No seu concerto intitulado "The Eyes of the Wind", Schoeller pretendeu que a massa orquestral captasse "a misteriosa fúria da própria energia" e, numa obra de texturas delicadas, o silêncio é também um material usado como inspiração e fonte de energia pura. Em pano de fundo, a música tradicional japonesa percorre o concerto de Amy dedicado à memória do compositor Toru Takemitsu. O fraseado, a força expressiva, a clareza rítmica, a pulsação e, sobretudo, o arrojo artístico e o talento de Queyras constituem-se como a força motriz da gravação. Ana Rocha