ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de livros de 9 a 15 de Janeiro de 2010

O escritor que corre maratonas 

Num registo levezinho, Murakami recorda o seu percurso de fundista e o modo como a corrida influencia a escrita.

No final da década de 70, Haruki Murakami geria um clube de jazz perto da estação de Sendagaya, em Tóquio. Foi então que decidiu escrever um romance, ideia que lhe ocorreu enquanto assistia a um jogo de basebol. A maior parte das pessoas que decidem escrever um romance nunca chegam a escrever um romance, mas Murakami, na altura quase a fazer trinta anos, não é como a maior parte das pessoas. E lá escreveu, madrugada fora e à mão, depois de fechar as contas do dia, o seu primeiro livro ("Escutem o Canto do Vento", nunca traduzido para português). Seguiu-se um outro ("Pinball, 1973"), redigido nas mesmas precárias condições, pelo que Murakami decidiu, "contra tudo e contra todos", abandonar os negócios da noite para viver apenas da escrita. Opção arriscada mas acertadíssima, até porque o terceiro romance ("Em Busca do Carneiro Selvagem") marcou o início da sua rápida ascensão no meio literário.

Estávamos em 1982 e Murakami, para se manter em forma, cortou com o tabaco (fumava três maços por dia) e começou a correr todos os dias. De então para cá, mantém uma média semanal de 60 quilómetros e disputa uma maratona por ano. Embora não seja um Carlos Lopes, ou sequer um Toshihiko Seko (para referir um dos melhores fundistas japoneses, com quem por vezes se cruzou), o escritor leva muito a sério a sua actividade desportiva, preparando-se para cada corrida com um regime de treinos rigorosos, aqui e ali complementados com umas sessões de squash e umas provas de triatlo.

É justamente a longa preparação para uma maratona específica (a de Nova Iorque, em Novembro de 2005) que estrutura esta "espécie de livro de memórias" em que Murakami reúne "reflexões pessoais sobre a corrida". Ao longo de vários meses, com passagens pela ilha de Kauai (Havai), por Tóquio e Cambridge (Massachusetts), acompanhamos em detalhe as suas rotinas diárias, as suas obsessões e idiossincrasias. Em excessivo detalhe, diga-se. Sobre o desportista, ficamos a saber quase tudo: que aprecia o balouçar dos rabos-de-cavalo das alunas de Harvard, quando estas o deixam para trás nos trilhos junto ao rio Charles; que a música escutada no seu leitor de minidiscos (Lovin' Spoonful e Red Hot Chili Peppers, mas também Creedence Clearwater Revival e Eric Clapton) o ajuda a manter o ritmo das passadas; que usa sapatilhas Mizuno; que tem o título de uma canção de Bryan Adams ("18 Til I Die") inscrito na sua bicicleta de titânio; etc. Sobre o escritor, porém, ficamos a saber quase nada.

Parte da desilusão que o livro nos provoca nasce desta opacidade, deste exibicionismo um pouco fútil, que se perde em irrelevâncias enfadonhas e faz até da insistência nas próprias limitações - as marcas da idade, o sofrimento físico, o declínio atlético - uma espécie de retorcida glorificação pessoal. Murakami acredita que "escrever romances e correr a maratona são coisas muito parecidas", porque em ambos os casos é necessária "uma motivação interior, uma força calma que não precisa de aprovação nem de ser validada através de critérios exteriores". A analogia é legítima, claro, mas Murakami nunca a aprofunda, ficando-se por generalidades, pensamentos soltos e descosidos, frases de efeito fácil. Às tantas, por exemplo, afirma: "Quase tudo o que sei como escritor aprendi-o correndo na rua todos os dias". Refere-se à concentração, à persistência, à vontade de superar os objectivos a que se propõe. Mas não imaginamos Nabokov a dizer "quase tudo o que sei como escritor aprendi-o a apanhar lepidópteros nos bosques", pois não?

Nalguns capítulos, Murakami consegue ser brilhante. Veja-se o relato do percurso feito entre Atenas e Maratona, num tórrido verão grego; ou a épica narrativa da ultramaratona de cem quilómetros, à volta do lago Saroma, na ilha de Hokkaido. Infelizmente, 90% deste livro foi escrito pelo Murakami-atleta, muito menos interessante do que o Murakami-escritor. José Mário Silva

Haruki Murakami

Casa das Letras

2009

trad. de Maria João Lourenço

186 págs.

€15

General Loureiro dos Santos

Europa-América

2009

384 págs.

€21,50

Ensaio Abordagem estratégica do novo mundo que nos espera.

O título, em si, é quase uma condenação. Se há coisa que se tem por certo é que os políticos, infelizmente, não mudam. E, por isso, será talvez boa ideia precavermo-nos e informarmo-nos sobre estas guerras "que já aí estão" e mais as que nos esperam. Também desta vez, o general Loureiro dos Santos, estratego de mérito, não desilude. Diz o general que a História mundial não conhece uma alteração de forças tão global em tão curto período. Este mundo em transição, em que o eixo central muda a olhos vistos, em direcção a um mundo de blocos, de "ilhas de poder global" (as grandes potências - EUA, Brasil, China, Índia, Rússia), apoiadas em "ilhéus ou quase ilhéus de poder global", as médias potências. Os objectivos das guerras não mudaram, mas os seus espaços alargaram-se e os instrumentos sofisticaram-se, ao ponto de como nunca na História as estratégias subversivas (insurreição) serem altamente eficazes. Já não é preciso ser-se um David de inspiração divina para derrubar Golias. Mas o facto tem consequências profundas na organização da guerra e na exigência das tropas e coloca problemas sérios aos exércitos de profissionais, e questões complicadas no campo dos Direitos Humanos (vide Afeganistão e Iraque). Construído em torno de artigos e intervenções feitas ao longo dos últimos dois anos, o livro beneficia de alguns textos aprofundados e inclui uma parte dedicada ao legado do último Governo em matéria de Defesa. "Oportunidade perdida", assim a qualifica de modo pouco abonatório, sobretudo pela má gestão em torno dos recursos humanos. Céptico em relação ao desenho da União Europeia pós-Tratado de Lisboa, Loureiro dos Santos deixa o seu recado: Portugal e a Europa só contarão neste novo mundo se se ligarem ao Atlântico Sul, a África e à América Latina. Luísa Meireles

João Paulo Guerra

Oficina do Livro

2009

252 págs.

€14

História A descolonização contada pelos seus protagonistas e observadores privilegiados.

Lê-se no destaque de capa que este livro de João Paulo Guerra (JPG) trata de "um dos maiores dramas da História de Portugal". Não é hipérbole. O que está em causa é um momento dramático de viragem da história do país, de redefinição nacional; no fundo, é o fim de um certo país. Trinta e cinco anos após o 25 de Abril, a descolonização que se lhe seguiu é uma ferida que não sarou e cumpre a sua sina de tema maldito. Como escreve JPG, "antes do 25 de Abril, o Ultramar não se discutia por imposição do regime e, depois, também não se discutiu a descolonização". Contrariando essa aversão em tocar na ferida, "O Regresso das Caravelas" começou por ser, a meio da década passada, um conjunto de reportagens de JPG para a TSF. A partir de uma série de entrevistas feitas até 1995 com alguns dos principais protagonistas da descolonização (e, necessariamente, da revolução) e outros observadores do processo, JPG foi juntando as peças do puzzle. Os múltiplos testemunhos (de Spínola a Costa Gomes, de Salgueiro Maia a Savimbi, Luís Cabral ou Pedro Pires) vão tecendo uma narrativa polifónica, que JPG manuseia com destreza, contrapondo pontos de vista, combinando perspectivas macro e micro, a História e as estórias: as oportunidades perdidas de Marcello Caetano, a impreparação de Portugal para uma guerra longa e longínqua, a decadência de um regime esgotado e isolado, os desentendimentos entre os protagonistas da nova ordem pós-revolucionária... Foram essas reportagens radiofónicas que JPG adaptou para livro, em 1996, e agora reedita, em versão revista e bastante aumentada. Para além de depoimentos inéditos, Guerra acrescenta dois capítulos: uma reportagem feita em 1999 em Timor-Leste, após o referendo, e uma longa cronologia da "descolonização e percursos das independências", que começa em Abril de 1974 e se estende até 2009. Os novos capítulos rompem a unidade formal e conceptual dos originais e, nesse sentido, parecem objectos estranhos. Apesar disso, JPG é um excelente repórter e o texto de Timor faz sentido enquanto último capítulo da descolonização. Filipe Santos Costa

John Keane

Edições 70

2009

trad. de Nuno Castelo-Branco

1184 págs.

€44

Ensaio

História de uma ideia absolutamente vital para nós, mas acerca da qual pouco sabemos.

Há uns anos falou-se muito em levar a democracia - pela força se necessário - a lugares com duvidoso apetite pela mesma. Ignorando quaisquer cautelas, procedeu-se à tentativa, obviamente também por outros motivos. O resultado, no Iraque e não só, deixou pouca vontade de repetir. Mas fez reaparecer velhos argumentos sobre a diferença entre os 'valores ocidentais' e os do resto do mundo. Um dos méritos deste livro é apresentar a democracia como uma ideia muito mais geral, e portanto universal, do que a nossa concepção habitual dela implica. Democracia, no sentido de responsabilização do poder, existiu desde que existe civilização. Embora a democracia de assembleia seja vista como um produto grego, encontramos uma versão elementar dela na Suméria. Do mesmo modo, os primórdios da democracia representativa - a segunda grande encarnação da ideia - não se encontram em Inglaterra mas em Espanha, com as cortes e os homens-bons de Afonso XI. Pelo caminho houve teorização do poder e das suas obrigações no mundo islâmico; e não só teorização, como práticas correspondentes. Mas a democracia representativa no sentido moderno só apareceu verdadeiramente no século XVIII. Mesmo nessa altura ela suscitou dúvidas. Políticos da então nascente república dos EUA achavam que a massa do povo nunca teria o nível de conhecimento necessário para exercer os seus deveres cívicos. Afastada essa objecção, as novas instituições cresceram e espalharam-se pelo mundo, com interrupções frequentes e trágicas. Nos últimos 50 anos, segundo o autor, um terceiro tipo de democracia, dita monitorial, tem vindo a promover uma forma de exercício de poder mais 'humilde', permanentemente controlada. O autor desenha este longo percurso com o à-vontade de um cientista político que adora História. Sendo sugestivas as classificações, o mais interessante do livro são realmente os factos, que surgem em torrente e com frequência nos surpreendem. Quanto às 'regras' da parte final, podemos considerá-las, democraticamente, como um princípio de debate sobre as condições da democracia. Luís M. Faria

Jolly Bad

Rodrigues dos Santos prossegue a sua eficaz Jihad contra a prosa.

Uma das muitas características partilhadas por todas as personagens de "Fúria Divina" é a escabrosa incompetência nas funções que desempenham: os investigadores não sabem investigar, os sedutores não sabem seduzir, os terroristas não sabem aterrorizar. Curiosamente, algumas exibem os requisitos mínimos para serem críticos literários; embora nenhuma das personagens seja abençoada com a meta-revelação de que faz parte de um livro sofrível, três delas fazem a segunda observação mais pertinente que é possível fazer sobre o que está a acontecer à sua volta: "isto parece um filme".

Um filme, de facto, e não dos bons. Temos a vítima que aproveita o último fôlego para desenhar uma mensagem críptica no chão; temos o explosivo desactivado no último segundo; temos louras "parecidas" com Meg Ryan e coronéis russos que "dão ares" a Anthony Quinn. O resto do elenco é despachado com pinceladas Benetton: os americanos dizem "hell", "goddamn it", "fucking tarado" ou "fucking génio"; a professora inglesa diz "jolly good"; o cientista alemão diz "Gott in Himmell!"; o agente da Mossad diz "shalom"; o militar russo diz "previt"; um eventual bombista da ETA diria certamente "Olé!" antes de acender o rastilho.

A acção envolve as tentativas de um terrorista islâmico para detonar um engenho nuclear, e as tentativas de uma equipa multinacional para impedir o atentado. "Acção" é talvez um termo demasiado caridoso para aplicar ao que é essencialmente diálogo expositivo. Como num gymnasium para cretinos, as personagens passam grande parte do tempo a informarem-se umas às outras de coisas que já deviam saber, e a chegar às conclusões óbvias vinte páginas depois do leitor, não deixando, para o efeito, de se "fitarem interrogadoramente", ou de assumir "uma expressão interrogadora", ou "uma expressão interrogativa", ou até mesmo, se estiverem com pressa, "uma expressão inquisitiva". Em sucessivas visitas guiadas ao Museu de Pesquisa Rodrigues dos Santos, recebemos extensos memorandos sobre a construção de uma bomba nuclear, a história do Islão, a topografia de Veneza, e a gastronomia dos Açores.

Depois temos a prosa, que é fucking péssima.

Provavelmente consciente da sua deficiente imaginação auditiva e do seu espectacular anti-talento dramático, o autor desenvolveu uma técnica revolucionária de mímica literária, que consiste em distorcer a fisionomia das personagens até esta se acomodar àquilo que a prosa não consegue transmitir sozinha. Isto resulta em sucessivas catástrofes estilísticas, nas quais agentes da CIA e fanáticos religiosos são reduzidos a participantes num sketch dos "Malucos do Riso", "erguendo", "carregando" e "franzindo" as sobrancelhas, "virando", "revirando" e "arregalando" os olhos. O muzak inócuo do romance anterior do autor, "A Vida Num Sopro" (menos mau do que este, no sentido em que uma bomba convencional é "menos má" do que uma bomba nuclear), dá lugar à dissonância e ao feedback. Cabeças "giram pela sala" e olhares são "arremessados" pela janela, sem intervenção de qualquer engenho explosivo. Com o pé apoiado no pedal wah-wah, o autor rasga malhas inacreditáveis sobre, entre outras coisas, baratas que se peidam em francês; trucida frases com rimas internas ("pegou num bule fumegante e deitou chá na chávena do visitante"); e ergue andaimes desnecessários sempre que alguém abre a boca, recorrendo ao seu maneirismo predilecto, aqui completamente fora de controlo. (Uma amostra reduzida: "exclamou, intrigado", "murmurou, atónito", "sussurrou, pensativo", "suspirou, exasperado", "hesitou, desconcertado", "argumentou, combativo", "sorriu, benigno", "abanou a cabeça, frustrado", "gritou, escandalizado", "mordeu o lábio, hesitante", "abriu a boca, estupefacto". Este leitor contou mais dezassete exemplos antes de desfalecer, extenuado).

Exibindo todos os defeitos e nenhuma das virtudes do género a que tenta pertencer, "Fúria Divina" é uma guerra santa sem tréguas, na qual os únicos mártires são os leitores. Rogério Casanova

José Rodrigues dos Santos

Gradiva

2009

608 págs.

€23

Rosa Maria Martelo

Averno

2009

36 págs.

€9

Prosas

Imagens e pensamentos em escrita condensada.

Se ainda estou a tempo de corrigir a provisória lista de balanço do ano, não hesito em colocar este livro no lugar cimeiro da escrita de ficção. Antes de mais, porque não é exactamente um livro (nas suas trinta e poucas páginas, não aspira à completude, nem à unidade, nem ao fechamento); e porque também não se trata de ficção, muito embora mantenha com esta uma relação crítica e especulativa. Este estranho objecto vem por caminhos secretos, não se desvia do seu espaço, mas é difícil lê-lo sem pensar no seu negativo: a recuperação em curso, há longos anos, das formas inócuas e enfatuadas do 'livro' e do 'grande estilo' - essa noção oitocentista da qual o século XX se tinha desembaraçado. Reúnem-se aqui 17 textos em prosa, quase todos com menos de uma página. O primeiro, 'A Porta de Duchamp', dá o título ao volume e introduz um tema (ou melhor, um motivo, um elemento apto a um investimento alegórico) que ressurge noutros textos: a porta, o umbral, o limiar, a passagem. A lei da composição destes textos reside precisamente num diálogo críptico com escritos e autores eminentes da constelação moderna. A porta que aqui emerge de maneira recorrente remete para Kafka (para a parábola "Perante a Lei"), para Paul Celan (onde a questão do umbral, do limiar, deu título a um livro: "Von Schwelle zu Schwelle"); mas também para a Luiza Neto Jorge de "O Poema Ensina a Cair" e "A Porta Aporta" e para o Francis Ponge de "Le Parti Pris des Choses" (mas sem nunca os nomear, a não ser no texto que tem por título 'A Porta de Luiza'). E encontramos também Pessanha, Eliot, Carlos de Oliveira. De Rosa Maria Martelo conhecíamos os seus notáveis ensaios sobre a poesia portuguesa contemporânea. Este livro é um salto noutra dimensão, mas sem perder o apoio nesse terreno firme. A condição destes textos como imagens-leituras escritas - como escrita literária que participa do pensamento crítico-ensaístico - está bem patente em 'O Viajante', que é uma oculta Ekphrasis (descrição) de um quadro de Caspar David Friedrich. Experimentemos ler uma parte deste texto (aliás, um dos mais narrativos) para termos uma noção do registo: "Está acima das nuvens, no alto da montanha mais alta. Vemo-lo de costas, imóvel e contemplativo. Na sua sóbria elegância citadina, dir-se-ia que para ali chegar mais não lhe foi preciso que atravessar tranquilamente uma avenida. Está sozinho diante dos cumes mais altos, vestido como um filho pródigo que regressasse a casa trazendo todos os estigmas de quem vem de outro mundo (...). E como poderia ter chegado ali assim, sem trazer consigo nenhum rasto da poeira dos caminhos? 'Tudo é romântico desde que levado para longe', ter-nos-ia dito se verdadeiramente ali estivesse e agora olhasse para trás. Mas ele não pertence a esta paisagem, e por isso o vemos de costas, sem podermos adivinhar de que maneira o seu rosto procura enfrentar o brilho da neve, o reflexo da luz." A questão do género a que pertencem estes textos não pode ser negligenciada, porque esse género é consubstancial a um modo de pensar. Trata-se de uma forma de escrita epigramática, condensada em instantâneos textuais, em miniaturas filosóficas que podem ser pensadas como compromissos conceptuais com a escrita literária ou como compromissos estético-literários com o conceptual. Reconhecemos nesta dialéctica entre imagem e pensamento, entre ficção e reflexão, nestas prosas curtas que trabalham com e contra o pensamento conceptual um género literário tipicamente moderno que é o "Denkbild": o pensamento por imagens e sem conceitos a que aspirava Hofmannsthal e que Ernst Bloch dizia ser um modo de "pensar efabulando". António Guerreiro