ARQUIVO Escolhas Expresso

Crítica de livros de 23 a 29 de Janeiro de 2010

A vulnerável metafísica da terceira idade 

Na sua nova editora, valter hugo mãe assina um romance poderoso sobre a vida num lar de idosos, tão perto da morte. "é o mais pessoal dos meus livros", admite o escritor.

"o apocalipse dos trabalhadores" (QuidNovi, 2008), o anterior romance de valter hugo mãe, um ucraniano com nome de craque do Dínamo de Kiev (Andriy Shevshenko) explica a dada altura que "para abrir caminho na ferocidade de um país alheio" é preciso alcançar a "felicidade das máquinas". No novo livro do escritor de Vila do Conde há uma extrapolação desta metáfora, se entendermos a ideia de máquina como uma entidade abstracta, composta por peças muitas vezes à mercê de uma lógica e de uma energia cinética que as ultrapassa.

A primeira máquina com que nos deparamos no livro é um lar de idosos, com o habitual nome eufemístico - Lar da Feliz Idade - e uma espécie de funcionamento para a morte. O número de residentes é fixo (93), as camas só vagam quando alguém morre, e por isso impera uma rotatividade que começa com a entrada para um dos melhores quartos (em frente ao jardim onde passam crianças) e termina na ala esquerda (com vista para o cemitério, em mórbida antecipação do fim).

É a este mundo opressivo que chega, ainda atropelado de dor pela morte da mulher (Laura), o protagonista do romance, António Silva, 84 anos, antigo barbeiro com problemas de consciência que nem o tempo foi capaz de sarar. De início, ele recusa a vida colectiva da casa, mas depois integra-se num grupo de homens palradores, quase todos partilhando o seu apelido, portugueses de gema que passam os dias a discutir justamente o que é isto de ser português, sobretudo quando todos levaram com quase meio século de fascismo em cima. Um fascismo que deixou a raiz podre dentro das cabeças, dentro dos "bons homens" que não mexeram um dedo contra Salazar, que aceitaram uma "cidadania de abstenção", por medo ou apego à família, e ainda hoje são habitados pelo fantasma do que não tiveram coragem de fazer; ou que cobardemente permitiram que se fizesse.

A segunda máquina, a que dá título ao livro, é então Portugal, esse eterno problema que temos connosco mesmos e que valter hugo mãe aborda com raro desassombro. Há ainda uma terceira máquina: a "máquina que tira a metafísica". Sem metafísica, os velhos deixam de ter algo a que se agarrar e resvalam de vez para a morte. Um tal engenho, entrevisto em delírios por alguns dos residentes, pode ser uma mera fantasia senil ou um inesperado objecto real, posto ao serviço de uma rentabilidade económica de contornos criminosos.

No seu projecto de huis clos, valter hugo mãe deparou-se com um problema. A tremenda intensidade dramática com que descreve o sofrimento das personagens (o colapso dos corpos, a solidão, a loucura, as arestas cruéis da memória) depressa se torna insustentável, demasiado violenta, irrespirável. Para escapar a isto, o autor criou então pontos de fuga, mudanças de ritmo narrativo, jogos metaliterários (como o de incorporar na história Jaime Ramos e Isaltino de Jesus, agentes da PJ saídos dos livros de Francisco José Viegas, em dois capítulos que quebram a regra de só escrever com minúsculas). Acontece que estas soluções criam por sua vez novos problemas de equilíbrio e consistência narrativa, nalguns casos resolvidos de forma pouco satisfatória. O forte deste escritor, diga-se, não é a estrutura. É o estilo. Como perceberá o leitor, ao deparar neste livro com algumas das páginas mais devastadoramente belas da ficção portuguesa recente. José Mário Silva

valter hugo mãe

Alfaguara

2009

307 págs.

€17

Em "a máquina de fazer espanhóis", romance que marca a passagem da editora QuidNovi para a Objectiva (chancela Alfaguara), valter hugo mãe criou um grupo de idosos para perceber, enquanto escritor, "que violência é essa de pensar a morte mesmo ao pé dela", ali no extremo da vida, quando o corpo se torna um inimigo e um traidor. Paradoxalmente, embora esteja muito distante de uma tal realidade crepuscular (tem 38 anos), o autor de "o remorso de baltazar serapião" considera ser este o seu livro mais autobiográfico: "É o mais pessoal, o que mais me magoou, aquele em que chorei mais; e é também o que mais se aproxima da minha intimidade, ou do meu medo de estar vivo."

Ao moldar o protagonista, valter teve presente a figura do pai, desaparecido há precisamente dez anos, sobre quem até hoje nunca conseguira escrever. "A última palavra do livro coincide com a última palavra que o meu pai disse: 'angústia'. Em três anos e meio de cancro, foi a única vez que verbalizou o seu estado de doença, como se antes não nos quisesse passar o ónus de um qualquer sofrimento." Na nota final do romance, o escritor abre o jogo: "lamento muito que o meu pai não esteja a viver a terceira idade, por isso decidi inventar uma".

A terceira idade inventada por valter, porém, não é a mera réplica do cenário triste dos lares reais, onde os idosos vegetam em frente à televisão, esperando comida e medicamentos a horas certas. Ao visitar uma dessas casas, não aguentou mais do que vinte minutos de tamanha claustrofobia. "Foi muito intenso, não quis repetir." Depois, no processo de escrita, se por um lado tentou "prender o leitor dentro daquelas paredes, obrigá-lo a viver um pouco aquela clausura", por outro foi libertando os idosos do seu torpor existencial. "Quis atribuir-lhes uma perigosidade que já não lhes reconhecemos, mostrar que nas suas cabeças ainda pode haver turbilhões, por mais que os seus corpos se tenham transformado nuns sacos imprestáveis, à beira da ruína final."

O primeiro capítulo de "a máquina de fazer espanhóis" foi escrito no próprio dia em que valter terminou "o apocalipse dos trabalhadores". Talvez por isso, existem vários pontos de contacto entre os dois romances: "São ambos sobre morrer de amor. E os dois abordam a questão da portugalidade, embora de modo muito diferente." No primeiro, Portugal era nome de cão, um "ridículo rectângulo castanho" cheio de pulgas, melancólico e metafórico. Agora a reflexão identitária é mais concreta, há vários capítulos sobre o Estado Novo e sobre esse fascismo (o escritor não tem medo da palavra) que perdura dentro de muitas cabeças, imune aos já muitos anos de democracia.

No dia 25 de Abril de 1974, valter não tinha ainda sequer três anos. Lembra-se de estar em Lisboa, vindo de Paços de Ferreira, onde vivia. Brincava num parque, "com um menino muito louro, de olhos azuis, demasiado branco para quem chegara recentemente de Angola", quando ouviu o pai, sem saber ao certo o que se passava, gritar para a mãe: "Foge, Antónia, é a guerra, é a guerra". Entre as pessoas da sua geração, habituou-se a ser o único que se lembrava desse dia, o único cuja primeira memória coincide com a data em que a ditadura caiu. Talvez assim se explique que seja dos poucos autores com menos de quarenta anos a olhar de frente o período salazarista. "Sempre me interessou perceber do que é que fugiram as pessoas, ao conquistarem aquela liberdade toda."

Quanto à transformação do Esteves sem metafísica, do poema "A Tabacaria", em personagem do livro, correspondeu a uma vontade de convocar Pessoa, de o homenagear. "Fascina-me a capacidade da literatura transformar o quotidiano em mitologia. É aquele toque de Midas dos escritores, capazes de passar tão rente e tão pequeninamente ao pé de alguma coisa e mesmo assim elevarem-na a algo de fundamental para o nosso imaginário." J.M.S.

F. Mora Ramos, A. Rodrigues, J.L. Ferreira e M. Portela

Cotovia

2009

208 págs.

€14

Ensaio

Sobre o teatro e a política teatral.

Estes quatro ensaios têm um carácter interventivo e programático, como indica o subtítulo: "Para uma Política Teatral e da Programação"; e provêm simultaneamente de uma reflexão teórica e de um saber informado pela prática. Na verdade, os quatros autores do livro, entre os vários modos de ligação ao teatro que apresentam no currículo, exerceram ou exercem a actividade de directores de teatro, encenadores, programadores, em cidades como Coimbra, Guarda e Porto. Esta geografia cultural, não centrada em Lisboa, não é um pormenor sem importância nas questões de que tratam estes ensaios, sobretudo quando se faz uma defesa da descentralização e se reflecte sobre o que significa uma Rede Nacional de Teatros, que existe enquanto nome mas "não corresponde a nenhuma prática e, muito menos, a nenhuma política" (quem o diz é Américo Rodrigues na sua contribuição, que tem por título "A Descentralização. A Rede. As Políticas Culturais"). Exceptuando o último ensaio, de Manuel Portela, centrado numa "Experiência Interrompida" de gestão artística no Teatro Académico de Gil Vicente (o que não o impede de ter um alto nível de elaboração teórica), todos os outros são bastante explícitos quanto à visão do estado do teatro em Portugal. Fernando Mora Ramos fala mesmo do "desalentado estado anímico" e da "gangrena" duma "parte do teatro português". Assim, este livro aplica-se a fazer o diagnóstico de uma doença, a sugerir remédios para a cura e a colocar a exigência de uma relação entre o teatro e a polis que esteja à altura do papel artístico, cultural, social e político que esta arte sempre desempenhou. Passam por aqui, com grande incidência, questões de política cultural (e impiedosa é a análise do que tem sido essa política), mas também comparecem outras questões importantes e pertinentes: qual a relevância do teatro numa sociedade onde o espectáculo se deslocou para a esfera separada do consumo?; como pode ele confrontar-se com um capitalismo estético?; como é que as "indústrias criativas" e da ficção o empurram para um terreno altamente minoritário? Como é fácil perceber, está em jogo nos quatro ensaios uma concepção do teatro que o vê como um instrumento fundamental de uma sociedade democrática, em que a eficácia política coincide com a eficácia artística (o que não é a mesma coisa que fazer a defesa de um teatro de tendência). Quem está fora do meio ou se limita a frequentar algumas salas - ou companhias - de que se tornou fiel, dificilmente poderá avaliar até que ponto o diagnóstico e a análise do sistema, que aqui se apresenta, são correctos. Mas, enquanto gesto crítico, eles surgem com um grande poder de interpelação. Por isso é que José Gil, no prefácio ao livro, termina com esta consideração: "Ouso esperar que, depois da sua recepção pública, nada será como dantes, no mundo do teatro." O problema é que um livro sobre teatro (assim como os livros sobre muitas outras coisas) nem sequer chegam a ter uma "recepção pública" digna desse nome. António Guerreiro

Joshua Cooper Ramo

Casa das Letras

2010

272 págs.

€16

Ensaio

Tentativa sugestiva de explicar

A nova configuração das relações internacionais a partir de uma metáfora visual.

Já tivemos a cauda longa, o mundo plano, o piscar de olhos (Blink), o tipping point. Agora temos o monte de areia. Por uma vez não vem no título do livro, o que poderá ser problema em termos de marketing, mas temos de reconhecer que "A Era do Imprevisível" é mais adequado para uma obra que tem por tema oficial a nova forma das relações internacionais. Digo oficial porque, na realidade, o livro é sobre muitas outras coisas: física, matemática, biologia, sistemas financeiros, lixo, jardins... As comparações ocorrem constantemente, a propósito de tudo e de nada. A metáfora central é o monte de areia. Joshua Cooper Ramo contrasta um estado de coisas anterior, em que os governos eram os actores determinantes e praticamente exclusivos, com o estado actual, em que uma variedade de outros actores e factores - incluindo os tecnológicos - são tão ou mais importantes. Nesse sentido, pode dizer-se que é como um monte de areia; qualquer grão a mais o faz desabar. Segundo os estudos de Per Bak, um monte de areia é o exemplo perfeito de um sistema em estabilidade crítica; isto é, no qual a estabilidade se alimenta de um jogo de tensões que a cada momento podem ser fatais. Assim é o mundo hoje em dia. Ramo, que ocupa um alto cargo na Kissinger Associates e vive na China, também é jornalista de magazine, o que se reflecte no texto. O seu método é o mesmo de Malcolm Gladwell e de outros que actualmente fazem estes livros, do tipo 'grande ideia explicadora', usando metáforas visuais e ligações com diferentes áreas do conhecimento para ilustrar a sua tese. Além das metáforas, outro elemento fundamental da receita são as vinhetas e, em especial, as entrevistas com pessoas famosas. Aqui temos Gorbachov, um estratega do Hezbollah (cujos segredos de gestão o autor procura) e um responsável da espionagem israelita, entre outros. Se o livro não fosse escrito com tanta elegância, podia tornar-se maçador. Mas o relevante é menos a 'ideia explicadora', em si mesma banal, do que todo o material informativo que nos é fornecido. Quanto à originalidade das intuições, veja-se este exemplo: "O colapso da URSS não foi uma prova de determinismo (introduzam a democracia, obtenham estabilidade), mas sim uma prova do contrário (introduzam a democracia, obtenham o inimaginável). E é esta lição que é útil quando olhamos para lugares tão diferentes como o Médio Oriente e a China. A mudança produz imprevisibilidade e surpresa." Luís M. Faria

Marina Costa Lobo e Octavio Amorim Neto (org.)

ICS

2009

306 págs.

€21

Ensaio

Portugal exportou o modelo político para os países lusófonos.

A comunidade de língua portuguesa, que se distribui oficialmente por oito países, tanto se espalha por um minúsculo São Tomé e Príncipe, com 200 mil habitantes, como pelo gigante Brasil, que abarca mais de 196 milhões de pessoas e se espraia por 8514 quilómetros quadrados, quase cem vezes a superfície da antiga mãe pátria, Portugal. Todos diferentes, seguramente, mas partilhando também algo mais do que a língua - o que já de si acarreta um saco pesado de heranças. Entre outras, foi essa uma das razões pela qual dois politólogos - uma portuguesa, Marina Costa Lobo, e um brasileiro, Octavio Amorim Neto - resolveram meter mãos à obra e tentar responder ao que chamam uma pergunta legítima: terá havido também uma 'herança' nos modelos institucionais? Os autores acham que sim, mas moderam a resposta. Portugal, com um regime semipresidencial em democracia consolidada, foi o primeiro país da lusofonia a democratizar-se nos últimos 35 anos e acabou por exportar a sua matriz política para as ex-colónias. Há a excepção brasileira, único país dos oito com uma Constituição presidencialista (apesar do debate sobre as eventuais vantagens de um modelo semipresidencial), mas isso não inviabiliza que se considere que, se não há um "modelo lusófono de semipresidencialismo", há certamente uma marca. A qual se revela pela concepção particular do semipresidencialismo à portuguesa, que é a de conceder poderes importantes ao Presidente da República de um ponto de vista não legislativo - uma 'herança militar' da democracia portuguesa. Foi, aliás, a versão constitucional de 1982 que mais influenciou, visto que a democratização dos países lusófonos se faz a partir dos anos 80. O livro parte de um estudo aprofundado sobre o modelo português (muito útil de se ler nestes tempos de intervenção presidencial acrescida) e inclui idênticos trabalhos sobre cada um dos outros sete, elaborados por diversos autores. Uma leitura muito actual, que explica e ilumina muito do que se tem passado nesses países, quatro dos quais fazem parte dos 50 Estados em vias de desenvolvimento mais fracos do mundo. Luísa Meireles

Antón Fortes & Joanna Concejo

OQO

2009

40 págs.

€20

Álbum Ilustrado

Um olhar sobre os campos de concentração, entre a inocência e o confronto com a barbárie.

Não é de mais insistir na falácia que se esconde no conceito de livros para crianças, aglutinando tudo o que tenha texto e imagem como se a curta sapiência dos mais novos não tolerasse mais do que bonecos e como se a cultura dos mais velhos não se dignasse a ler imagens. A mais recente edição da OQO corre o risco de ser ignorada graças a esse preconceito duplo: por um lado, não é um livro imediatamente recomendável para todas as crianças; por outro, a sua construção depende tanto do texto como das imagens, o que afastará boa parte dos adultos. E, no entanto, trata-se de um livro merecedor de uma leitura sem as baias da 'idade recomendada'. Levada para um campo de concentração, a criança que narra "Fumo" estrutura as suas impressões a partir do universo que lhe é familiar, onde não se vislumbra o edifício do horror com toda a crueza com que se afirmou nos campos de morte nazis. Não se trata, porém, de uma narrativa que filtre o caos a partir do engano, convertendo-o numa encenação (ao jeito do filme de Benigni que levou tantos espectadores às lágrimas); o narrador de "Fumo" não é poupado ao que vê e vive, mas a crueza do que o rodeia é interpretada a partir da infância que ainda não lhe foi totalmente roubada - como se percebe, por exemplo, na imagem em que a mãe, de cabelo rapado, sorri sobre um fundo florido depois de ter avistado o seu marido. A narrativa equilibra a extrema fragilidade de um olhar infantil, dividido entre a inocência e a cruel percepção da morte, com a brutalidade dos acontecimentos que descreve e que culminarão à entrada das câmaras de gás. A concisão do texto e a sua relação intrínseca com as imagens, belíssimas composições onde predominam os tons sépia e um uso parcimonioso da cor, definem uma narrativa visual/verbal que regista, na primeira pessoa, uma experiência dolorosa, transportando, por sinédoque, a experiência dos milhões de pessoas que passaram pelos mesmos campos, pelas mesmas atrocidades. Nenhuma viveu o mesmo, e todas o viveram, embora só o narrador de "Fumo" tenha visto dragões onde os outros viram corpos enforcados. Sara Figueiredo Costa