ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de cinema de 9 a 15 de Janeiro de 2010

Imaginásio 

A Infância Segundo Spike Jonze

Juntamente com Michel Gondry ("O Despertar da Mente") e Charlie Kaufman ("Sinédoque", "Nova Iorque"), Adam Spiegel (a.k.a. Spike Jonze) parece formar uma 'banda à parte' no panorama do cinema contemporâneo. O traço comum que permite religar entre si os três cineastas radica - arriscaríamos - numa estética do imaginário onde cada linha de argumento e cada gesto de mise-en-scène obedecem à necessidade de instalar o inesperado no expectável à custa de um simulacro de escrita automática e de livre associação imagética que, na ausência de quaisquer pretensões ideológicas ou vanguardistas, revisita em estilo pós-moderno a herança dos dadaístas e dos surrealistas (note-se que a alcunha "Spike Jonze" reproduz, justamente, o nome de um músico dadaísta dos anos 40-50).

Neste contexto, a terceira longa-metragem para cinema de Jonze deixa inalterados os dados fundamentais da equação, adicionando-lhes, todavia, uma parcela infantil que Gondry explorara já em "A Ciência dos Sonhos" (2006). Entenda-se: "O Sítio das Coisas Selvagens" constitui uma tentativa de adaptação de um livro para crianças com o mesmo nome de Maurice Sendak, escritor e ilustrador que esteve no centro de um documentário realizado no ano passado por Jonze ("Tell Them Anything You Want: A Portrait of Maurice Sendak"). Espécie de drama pueril em três actos (evasão-deriva-regresso) sobre um rapazito de dez anos (Max Records) que foge de casa da mãe (Catherine Keener) para procurar refúgio numa ilha imaginária habitada por um grupo de monstros que mais não são do que caixas de ressonância das suas próprias emoções, o segredo do filme consiste, em desdobrar no espaço as etapas de um itinerário que - percebemo-lo depressa - se desenvolve apenas no imaginário do seu protagonista.

O problema, aqui como nos filmes de Kaufman e Gondry (que, tal como Jonze, começou por flirtar com a publicidade e com os videoclips antes de abraçar o cinema), é que, uma vez esgotado o efeito-surpresa inicial, aquilo que para nós fica é mais ou menos isto: um percurso pelo imaginário de uma criança hiperactiva que, entediando-se com os jogos aos quais se entrega, só pensa em passar de imagem em imagem na esperança de encontrar qualquer coisa que seja capaz de reter a sua atenção. No final, fica a pergunta: "O Sítio das Coisas Selvagens" é um filme para crianças ou o filme de uma criança? Vasco Baptista Marques

de Spike Jonze

(EUA)

com Max Records, Catherine Keener, Mark Ruffalo

Aventura/Fantástico

M/6

Um efeito justo

A ascensão social de um 'Zé-Ninguém' no mundo do crime.

Durante a rodagem de "Nos Meus Lábios", "eu já não aguentava ver a Panavision em cima de um charriot, disse-nos Audiard. A câmara era uma 35mm à qual Audiard se mantém fiel em tempos de digital HD. E o 35mm começou a mexer. O scope foi para o ombro de um chef-op inspirado, Stéphane Fontaine, e desta aposta na frontalidade, deste efeito realista 'colado' às personagens, retira o filme o seu maior triunfo. "Um Profeta" torna-se quase uma resposta europeia aos grandes épicos individualistas de um cinema americano de autor que tem hoje em Michael Mann o seu expoente máximo.

O filme conta a história da ascensão social de um SDF (sans domicile fixe), Malik (Tahar Rahim, na foto). Árabe e analfabeto, ele vai parar a uma prisão dominada pela máfia corsa, e será dentro de quatro paredes que passa de zé-ninguém a padrinho do tráfico de droga e do crime organizado. Podia falar-se do contorno psicológico de tal situação; de uma reacção sociológica ("um racismo latente") a que Audiard já se referiu nestas páginas; ou de um filme que, ficcionando tudo à sua volta naquela prisão de estúdio, consegue ser retrato do tecido social francês contemporâneo como poucos o foram. Mas o que mais impressiona não são estas consequências. Nem a história de Malik em si. Muito menos aqueles fantasmas (o árabe morto por Malik), que são a parte mais frágil da narrativa e quase a deixam na fronteira do grotesco. O que mais impressiona em "Um Profeta" é a permeabilidade operática que tudo aquilo atinge, e logo num filme que, curiosamente, e tal como todos os de Audiard, volta a dar provas da sua modéstia. Porque "Um Profeta", no fundo, jamais se coloca acima da realidade que está à sua frente. Tem uma fidelidade incondicional por esse princípio. Francisco Ferreira

de Jacques Audiard

(França/Itália)

com Tahar Rahim, Niels Arestrup, Hichem Yacoubi

Drama

M/12

ESTREIAS

de Tatia Rosenthal

(Israel-Austrália)

com vozes de Geoffrey Rush, Anthony LaPaglia, Ben Mendelsohn, Tom Budge

Animação

M/12

Um desempregado interroga-se sobre o sentido e o absurdo do dia-a-dia. Um velho, um 'anjo da guarda' e uma mulher, bem como outras personagens que aparecem, vivem com ele outros acontecimentos e todos procuram uma fantasia.

Diga-se, desde já, que este filme poderá deixar o espectador habitual de animação muito desorientado. É que, com o tempo e com uma frequente exposição aos filmes do género, esse espectador encontra-se aqui perante algo que o surpreende nem corresponde de todo ao estilo a que está habituado: animação de aventuras, de comédias, de fantasia, etc. Este é um trabalho que explora principalmente um estilo sofisticado, nesse meio da animação que entretanto se tornou uma verdadeira indústria. O estranho "$9.99" rompe com as fórmulas mais conhecidas. E os bonecos aqui explorados ligam-se, antes de mais, a um modelo antigo e clássico que a animação parece ter posto de parte. Mas, mais singular, os desenhos são aquilo que representam as personagens mais vulgares, gente que conhecemos do dia a dia, com quem vivemos lado a lado, procurando uma espécie de fantasia geral na vida de todos. Este filme trata-se da primeira longa-metragem da jovem israelita Tatia Rosenthal. E é de uma forma muito singular que ela aqui nos mostra a animação de várias histórias escritas por um dos mais importantes autores e poetas de Israel, Etgar Keret (muito pouco conhecido entre nós). O encontro é uma grande e insólita surpresa. Manuel Cintra Ferreira

de Carlos Sorin

(Argentina/Espanha)

com Juan Coco Villegas, Walter Donado, Rosa Valsecchi, Mariela Díaz

Comédia/Drama

M/12

A vida de um desempregado da Patagónia é alterado quando este resolve adoptar um cão.

O que levará uma nova distribuidora portuguesa (chama-se Bosque Secreto: seja benvinda) a estrear agora um filme do veterano argentino Carlos Sorin, realizado em... 2004? Há mistérios inexplicáveis e lógicas de mercado que parecem contradizer qualquer lógica... Ou talvez tudo venha de uma paixão pela Patagónia, pois foi lá que Sorin, que os portugueses conhecem de "Histórias Mínimas", filmou há 5 anos este simpático perro, que foi um êxito de bilheteira. Esta é a história de um empregado de uma remota gasolinera que perde o seu emprego e ganha novo alento para a vida quando lhe cai nos braços como prenda um cachorro com o seu quê de heróico. O cachorro, de resto, chama-se Gregorio na vida real, deve ser profissional e é o melhor do filme. Estamos perante um cinema metafórico, atento aos pormenores mais comezinhos da vida e de sorrisos nos lábios, ao potencial de um tecido social pictoresco, a uma certa estranheza provinciana. Vagamente neo-realista, rodeado de boas intenções e de empatia pelas suas criaturas, o cinema de Sorin, se comparado com a nova geração de cineastas argentinos que hoje dá cartas pelo mundo fora, é o seu oposto anedótico e quase reaccionário. Em complemento é exibida a curta-metragem portuguesa "A Rua", de José Filipe Costa. F.F.

nte

de Jane Campion

(Reino Unido/Austrália/França)

com Ben Whishaw, Abbie Cornish, Paul Schneider, Thomas Sangster

Drama

M/12

A história do romance entre o poeta John Keats e Frances 'Fanny' Brawne, a sua musa.

Continuamos à espera que Jane Campion, que já não dava notícias há seis anos, consiga escapar daquele modelo de autora internacional chique que a ela se colou desde o triunfo de "O Piano" em Cannes, nos anos 90. Campion tem lá para trás um óptimo "Sweetie" de boa memória e, para se dizer a verdade, nunca mais o seu fogo feminino conseguiu voltar a esse nível. Regressa agora com um filme, estreado em competição no último Festival de Cannes, e que deveria ter sido o da sua maturidade como artista. Mas ainda não é desta que a neo-zelandesa consegue sair daquele universo académico e conservador; de um classicismo confortável que, de tanto querer ter tudo no sítio, no final, só acaba por gerar desconforto. E o facto de Campion apostar aqui em mais um filme de época com fôlego romanesco oitocentista só vem sublinhar ainda mais o problema. Filmado no Reino Unido com uma nova cara australiana no elenco, Abbie Cornish (de resto, o elenco é de perfeição sem mácula), "Bright Star - Estrela Cintilante" aborda a secreta relação amorosa entre o poeta John Keats (Ben Whishaw), que uma tuberculose cedo levou, e a sua vizinha e musa, Fanny Brawne, na Londres do início do século XIX. Independente e quase insolente, Fanny, que desafia as convenções sociais do seu tempo, é uma personagem típica de Campion por inteiro. Mas não há muito mais a dizer: na sua fórmula de 'telefilme BBC', mesmo nos seus rasgos de beleza, aqui e ali, pré-programados ao milímetro, "Bright Star - Estrela Cintilante" é competente. E já foi feito mil vezes... F.F.

de Fanny Ardant

(França/Roménia/Portugal)

com Ronit Elkabetz, Abraham Belaga, Marc Ruchmann

Drama

M/12

Há dez anos exilada do seu país, desde o assassinato do marido, Judith decide voltar à Roménia para celebrar o casamento de uma prima. Mas este regresso não será pacífico...

É uma história de clãs familiares, de códigos de honra traçados a fio de navalha, de rituais antigos que parecem tão enraizados no tecido social que dir-se-ia ser impossível removê-los. É um filme atento ao desejo dos homens e ao murmúrio das árvores, das pedras, dos bichos, da névoa que amortalha o espaço como um lençol que não acaba nunca. Fanny Ardant, estreando-se como realizadora e argumentista, consegue um filme palpitante, afortunadamente estilhaçando as coordenadas seguras em que o cinema francês médio se costuma acantonar. Jorge Leitão Ramos

de John Hillcoat

(EUA)

com Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee, Charlize Theron

Drama

M/12

Um pai e o seu pequeno filho percorrem as paisagens de um mundo pós-apocalíptico na simples esperança de conseguirem sobreviver até ao dia seguinte.

Depois de uma interessante incursão pelo western ("Escolha Mortal"), o australiano John Hillcoat emigrou para os EUA para abraçar um projecto difícil: a adaptação do notável romance homónimo de Cormac McCarthy, no qual um pai (Mortensen) e um filho (Smit-McPhee) percorrem as paisagens de um mundo pós-apocalíptico na simples esperança de sobreviverem até ao dia seguinte. O resultado da empresa é desigual. De facto, embora a fotografia de Javier Aguirresarobe consiga instalar-nos no ambiente distópico do romance pela sua inteligente gestão de uma paleta de cores quase sempre reduzida aos brancos, cinzas e sépias, o filme parece esgotar toda a sua criatividade na recriação de um décor e na tradução visual de alguns dos episódios mais marcantes do romance, mitigando assim o espírito reflexivo que, na prosa de McCarthy, vivifica esse décor e esses episódios. Em suma: gostámos mais do embrulho do que da prenda.Vasco Baptista Marques

CONTINUAM

de Rebecca Miller

(EUA)

com Robin Wright Penn, Alan Arkin, Keenu Reeves, Winona Ryder

Drama

M/12

Pippa Lee é uma mulher gentil e delicada para a família e o marido, um brilhante editor. Mas as coisas agravam-se e o futuro é uma incógnita.

"As Vidas Privadas de Pippa Lee" confirma definitivamente a importância de uma realizadora, Rebecca Miller, que a pouco e pouco o espectador interessado foi descobrindo. E de forma peculiar já que é esse o modo como Miller aborda a realidade. O cinéfilo, necessariamente, já sabe que se trata da filha do grande dramaturgo Arthur Miller, e que a sua obra como argumentista e realizadora segue as mesmas fórmulas intelectuais, como provam as suas obras anteriores: "Velocidade Pessoal" (2002) e "A Balada de Jack e Rosie" (2005). Neste último já dirigira Daniel Day-Lewis, com quem é casada. Em "As Vidas Privadas de Pippa Lee", Rebecca Miller junta um elenco admirável onde Robin Wright Penn, na figura de uma frágil, simpática e delicada mulher de família, irá inesperadamente encontrar formas de um possível futuro tranquilo e feliz depois dos problemas que a família se habituou a viver. À sua volta há uma companhia de nomes de prestígio bem conhecidos como Alan Arkin, Keenu Reeves e um grupo de convidadas, que vão de Winona Ryder e Maria Bello à italiana Monica Bellucci, entre outras 'clássicas' como Shirley Knight. Um desfile perfeito assim como o elenco. M.C.F.