ARQUIVO Escolhas Expresso

Critica de cinema de 27 de Fevereiro a 5 de Março de 2010

Danos colaterais 

A Guerra do Iraque no corpo americano.

O Sargento Will Montgomery (Ben Foster) está em convalescença de múltiplos ferimentos da Guerra do Iraque e a namorada que deixou em casa arranjou outro - um tipo para casar -, embora dê uma escapadela, logo no início, e vá ter com ele para um último dia de sexo sem futuro. Ela, sem remorsos; ele, na pior. É então que lhe dão uma missão: integrar a unidade dos que estão disponíveis 24 horas por dia na tarefa de anunciar à família a morte dos seus entes queridos, lá longe, em combate. A seu lado, um já veterano no serviço, Stone (Woody Harrelson), o capitão que sabe todos os procedimentos, truques e possíveis reacções. E eles lá vão, dia após dia, mensageiros do sofrimento - e logo ali, nessas cenas desconcertantes, se verá que "O Mensageiro" é filme afinadamente escrito (está, aliás, nomeado para os Óscares). Veremos o gabarito dos actores e que a realização sabe o que é o tempo e o espaço para as emoções.

Mas há uma cena neste filme que, se mais não houvesse, já justificava que o víssemos. É a cena na cozinha, quando o sargento Montgomery, náufrago sentimental e sobrevivente do Iraque, onde terá sido herói (mas ele acha que não), se encontra pela decisiva vez com Olivia (Samantha Morton), viúva de um marido que tinha fugido para a guerra e ela sentido alívio na partida. Agora, a fazer vários lutos, eles parecem à beira de se fundir na última das intimidades, mas ela não é capaz - e, então, falam. Essa cena, filmada quase toda em plano-sequência, a deixar os actores crescer e os personagens dizer de sua justiça, é qualquer coisa de perfeito, tanto mais que condensa as principais linhas de força com que se cose o argumento. É de uma subtileza e de uma sabedoria que desfazem a hipótese de cedência ao melodrama ou à desmontagem anímica que parece ser o destino dos personagens centrais (como se uma bomba os estilhaçasse e pedaços de cada um deles se incrustassem no corpo do espectador, parafraseando Montgomery numa das últimas cenas do filme). Mas nada disso chega a ocorrer. Como Montgomery conta ao seu parceiro e superior hierárquico, é possível uma pessoa não se suicidar só porque, entretanto, o sol nasce. Este filme muito lúgubre, a falar dos danos colaterais no corpo americano da Guerra do Iraque, não acaba em desespero nem a pedir socorro. Pode haver lágrimas, pode-se estar órfão de tudo, mas vai-se em frente. E pode ser que Will e Olivia se escrevam e se voltem a encontrar. Jorge Leitão Ramos

de Oren Moverman

(EUA)

com Ben Foster, Woody Harrelson, Samantha Morton

Drama

M/12

A sul de nenhum norte

"Western" na neve com humor em ponto morto

A primeira ficção de Rune Denstad Langlo abre com uma sequência que define o seu timbre: a sós no topo de um teleférico desactivado, com uma ficha eléctrica na mão, um homem de 30 anos fita, atónito, a paisagem à sua frente, parecendo esperar por revelação que não há meio de chegar; depois, uma criança chama por ele, o homem sai do seu torpor, reactiva o teleférico e, quando julgávamos o impasse superado, diz: "Preciso de dormir" (enquanto se ouvem banjos e violinos dignos de um western). As sequências seguintes, em plano fixo, limitam-se a pôr os pontos nos is: estamos numa estância de esqui na Noruega, e o homem que víamos é um tal Jomar Henriksen - um loser prototípico que, entre duas cervejas e/ou dois cigarros, vai vivendo de biscates e subsídios estatais... até ao dia em que o melhor amigo lhe bate à porta e, depois de se desculpar por lhe ter roubado a namorada, acrescenta: "Ela teve um filho teu." Aqui começa, infelizmente, um road movie minimalista norteado pelo motivo clássico da família perdida e que, vá-se lá saber porquê, quer à viva força flirtar com a memória do western. Com efeito, assim que o protagonista recebe guia de marcha e é obrigado a abandonar o estupor letárgico, a mise-en-scène de Langlo deixa, também ela, os planos fixos; e de súbito damos por nós numa espécie de western pathetic onde o cavalo é substituído pela mota de neve, as montanhas rochosas pelas montanhas nevadas, os índios por reformados, etc. E, perante esta lógica de trocadilhos instantâneos, ficamos como o pobre Jomar do início: atónitos, fitando a paisagem.Vasco Baptista Marques

de Rune D. Langlo

(Noruega)

com Anders Baasmo Christiansen

Comédia

M/12

ESTREIAS

de Claire Simon

(França/Bélgica)

com Nicole Garcia, Isabelle Carré, Nathalie Baye

Drama

M/12

Recriação de casos reais registados nos centros de planeamento familiar franceses.

Quase dois anos depois da sua estreia em Cannes, chega a Portugal a sexta longa-metragem de Claire Simon, francesa habituada a mover-se entre a ficção e o documentário. Ora, aqui, essa dupla filiação do seu cinema é qualquer coisa que salta à vista. De facto, explorando uma série de questões relacionadas com a sexualidade feminina (o aborto, a contracepção, etc.) a partir da recriação in loco de casos reais registados nos centros de planeamento familiar, o filme parece constituir uma espécie de híbrido 'à la Cantet', onde a mistura de actrizes e não actrizes e a aposta na câmara ao ombro e no plano-sequência obrigam a ficção a piscar o olho ao documentário. Infelizmente, neste caso, a realidade documentada à qual a ficção deseja regressar deixa-se petrificar por um esquema operativo de mise-en-scène que invariavelmente faz suceder às consultas de planeamento familiar um breve epílogo que as comenta (de forma mais ou menos explicativa e pedagógica). Daí as nossas reservas. V.B.M.

de Louie Psihoyos

(EUA)

Documentário

M/12

Activistas ambientais tentam chegar à cidade japonesa de Taijii para dar conta de um morticínio de golfinhos.

Produzido pela Oceanic Preservation Society, este primeiro filme do fotógrafo Louie Psihoyos parece ser menos um trabalho concebido para o grande ecrã do que uma reportagem televisiva articulada a partir das mais variadas fontes de imagem (câmaras de infravermelhos, câmaras subaquáticas, imagens de arquivo, etc.) e destinada à denúncia de um escândalo ecológico específico: o morticínio de golfinhos que todos os anos tem lugar ao largo da cidade japonesa de Taijii. E, se nada nos move contra a mensagem ecológica do documentário de Psihoyos, não podemos deixar de nos perguntar se o lugar natural da sua transmissão não é o pequeno ecrã (a cujas normas estéticas obedece). V.B.M.

CONTINUAM

de Bruno de Almeida

(Portugal)

com Bobby Cassidy

Documentário

M/12

Filme sobre um pugilista americano das décadas de 60 a 80.

Bobby Cassidy é, conforme este filme dá a ver, um homem de muitas vidas, combates e lugares, da infância da qual não guarda recordação decente ao mundo do boxe, onde foi - quase, quase - um grande campeão, ao descaminho posterior, cobrador de dívidas por conta do submundo, que o conduziu à cadeia. E, depois, a redenção, por amor dos filhos, que o ajudaram a ficar com a vida direita outra vez. Percurso a pedir uma câmara que o contasse, mais do que um documentário, ficção com verdade dentro. Bruno de Almeida recolheu o depoimento, a entrevista, mas pouco mais fez do que encontrar uma figura fabulosa. Falta a este filme uma estrutura mais firme, talvez mais trabalho no cruzamento de depoimentos, documentos, por aí fora. O cineasta que fez a espantosa série "Amália - Uma Estranha Forma de Vida" sabe perfeitamente do que estou a falar. J.L.R.

de Ethan e Joel Cohen (EUA/Reino Unido/França)

com Michael Stuhlbarg, Richard Kind, Fred Melamed

Comédia

M/12

O mundo de Larry Gopnik, professor, pai de família e judeu praticante, está a ruir. Acaso ou provação divina?

Estamos no final dos anos 60 (dá para reconhecer pelas canções que o miúdo ouve à socapa nas aulas), numa cidade do Midwest, no seio de uma comunidade judia. Deste tempo e deste espaço não saímos. Isto interessa? Sim, aparentemente. Judeus (os Coen) a satirizar judeus, dirão. Na realidade, não. Fossem as personagens budistas dos anos 20 e julgamos que lá iríamos dar à mesma cápsula. Antes, prelúdio de fábula delirante e em sépia de cinema mudo. E um conselho: "Recebe com simplicidade tudo o que te acontecer." Larry Gopnik não faz outra coisa, mas tudo à sua volta é complexo. Homem sério (quase santo) que só os pesadelos transtornam - e já o mundo lhe caiu em cima -, a sua passividade irrita: é um achado de anti-herói. Não vale a pena falar mais sobre ele: quando o filme começa de facto a contar alguma coisa, acaba. Até lá, é um caos molecular que se diverte a gozar com a vontade (a de Larry, a do cinema, a nossa) de encontrar um sentido para a explicação dos signos e das coisas. Tudo pode acontecer quando a incerteza é um princípio. Filme abstracto que se compraz na sua abstracção? Pode ser. É esse o estilo do exercício. E o tempo não se deu por perdido. Francisco Ferreira

de Tom Ford

(EUA)

com Colin Firth, Julianne Moore, Nicholas Hoult

Drama

M/12

Na Los Angeles de 1962, um professor homossexual dilacerado pela morte do seu amante planeia suicidar-se.

Há neste primeiro filme do designer de moda Tom Ford - que aqui adapta o romance homónimo de Christopher Isherwood - um esmero na composição interna de cada plano, um trabalho sobre a cor como elemento expressivo, um desejo de formalismo, em suma, que é ao mesmo tempo uma força e um defeito. Um defeito - quando o designer se perde em efeitos de mise-en-scène que só pretendem chamar a atenção para si mesmos (as recorrentes variações de tonalidade no interior de um mesmo plano); uma força - quando o cineasta se encontra em imagens disruptivas que elevam os sentimentos das suas personagens (como naquele plano radicalmente antinaturalista em que a personagem de Colin Firth se deixa comentar pelo rosto da Janet Leigh do "Psico", de Hitchcock, sob os auspícios de uma luz rosa que parece sinalizar a última tentação de um suicida). V.B.M.