ARQUIVO Escolhas Expresso

Crítica de cinema de 23 a 29 de Janeiro de 2010

Sem estrelas no céu 

Clooney é notável nesta comédia romântica em tempos de crise. mas o filme não o acompanha.

Não é frequente encontrar um filme mainstream como "Nas Nuvens" centrado num estupor. Hollywood franze cada vez mais o sobrolho a personagens negativas. O estupor, de resto, não é dado a comoções. Nem a remorsos. Estamos a falar de um fulano que as empresas em dificuldades contratam para despedir sumariamente os seus funcionários, muitos com décadas de trabalho na casa, com o mínimo possível de custos. Não é fácil fazê-lo: as 'vítimas' estão à nossa frente, do outro lado da secretária, em grande plano. Uns refilam, outros choram e há mesmo quem parta para atitudes extremas, mas para todos o estupor tem resposta na ponta da língua - antes de mandá-los para o desemprego. "Nas Nuvens" passa-se nos EUA de hoje. Num país em crise, em tempo de crise. E quem se encarrega de vestir a pele do abutre, que se chama Ryan Bingham e enriquece com a desgraça alheia, é o 'Mr. Lonely' George Clooney. O papel, que é difícil, abrange todas as gamas da ignomínia e dá a Clooney, que tem tudo no sítio certo, um trabalho de alto nível.

Contudo, para que a coisa pegue, é preciso humanizar a criatura. Jason Reitman começa por apresentar-nos ao quotidiano de Ryan - e o homem, apesar de simpático, é uma pedra. Solteiro, sem filhos, sem compromissos, 'vive em aviões', para o trabalho. Mal consegue por os pés no seu frugal T1. Por toda a América viaja, pois não há cidade remota que não tenha agora empresas com gente para despedir. O hobby deste especialista em aeroportos? Acumular milhas, up in the air. Triste vida, dirão. Entram em cena duas mulheres: Alex (Vera Farmiga), outra viajante compulsiva por quem Ryan cai de quatro, e Natalie (Anna Kendrick), sua colega de profissão com técnicas radicais na 'arte de despedir'. E 'a coisa pega', de facto, porque Reitman, nesta altura, já lançou o filme e o trio de personagens para o terreno de uma comédia romântica, admiravelmente escrita. A primeira hora, sem exageros, é um prodígio.

Reitman, contudo, não conseguirá manter a excelência a partir do momento em que Ryan regressa à sua cidade natal para o casamento da irmã. Adivinha-se o problema: Ryan, Alex e Natalie não poderão ficar eterna e literalmente 'nas nuvens'. É preciso que voltem a pôr os pés na Terra, à mesma escala realista dos desempregados, tratados como uma massa anónima, que se alinham, um a um, naquele confessionário de Big Brother. Só que comédia e desemprego são coisas que não colam facilmente - e Reitman não é um Lubitsch. A prova? Às tantas, o filme desata a passar uma camada de honestidade sobre o cinismo da sua pintura. E começa a pedalar para trás a partir de um twist absurdo (a revelação do segredo de Alex) que desafia qualquer lógica racional, Reitman torna-se então num justiceiro das suas personagens. Pior: acaba por abandoná-las à sua sorte. "Nas Nuvens" ainda dá um ar de sua graça e decide escapar ao happy end programado pelas convenções de Hollywood. Talvez a fuga às normas seja final que dê Óscares. Mas soa a falsidade e a manipulação. Francisco Ferreira

de Jason Reitman

(EUA)

com George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick

Comédia Romântica

M/12

ESTREIAS

de James DeMonaco

(França/EUA)

com Ethan Hawke, Vincent d'Onofrio, Seymour Cassel

Thriller

M/12

A história de três personagens que se cruzam num bairro pobre de Nova Iorque.

Sully Halverson (Ethan Hawke) ganha a vida a desentupir fossas sépticas e teme pelo futuro do seu filho, prestes a nascer. Está disposto a tudo. Em simultâneo, Jasper Sabiano (Seymour Cassel), modesto lojista, tem uma qualidade fundamental aos olhos da Mafia para quem ele trabalha contrariado: é surdo-mudo. Ao mesmo tempo, Parmie Tarzo, dono da loja em que Jasper trabalha e chefe da Mafia local, está morto por eliminar a concorrência. Todos eles vivem em frente a Manhattan, na zona pobre de Staten Island, que foi desde sempre casulo para o crime organizado.

CONTINUAM

de James Cameron

(EUA/Reino Unido)

com Sam Worthington, Zoe Saldaña, Sigourney Weaver

Ficção Científica/Acção

M/6

Em 2154, um marine paraplégico é enviado para o planeta Pandora onde o espera uma missão que só ele pode levar a cabo.

É muito raro poder dizer com verdade que um filme nos mostra coisas que nunca víramos. Aconteceu há quarenta anos com "2001 - Uma Odisseia no Espaço", há trinta com "Apocalypse Now", há quase vinte com "Parque Jurássico". E embora, convenhamos, "Avatar" não seja exactamente do mesmo calibre, a verdade é que ocorre aqui esse fenómeno precioso - por causa do 3D, mas não exclusivamente. Cameron inventa um mundo de fio a pavio e com um grau de maravilhoso absolutamente extraordinário. E inventa uma raça de humanóides em comunhão com a Natureza - os Na'vi - que são um pouco o que gostaríamos de ser se não fôssemos como somos. "Avatar" já ganhou o Globo de Ouro como melhor filme dramático e perfila-se como um dos favoritos para os Óscares, em Março. Jorge Leitão Ramos

de Michael Haneke

(Áustria/Alemanha/França/Itália)

com Christian Friedel, Burghart Klaußner, Leonie Benesch

Drama

M/12

Entre 1913 e 1914, numa pequena vila no norte da Alemanha, uma série de misteriosos crimes ocorre sem que ninguém consiga encontrar o(s) culpado(s).

Sempre que pensamos no cinema de Michael Haneke, a primeira imagem que nos vem à cabeça é a de um cirurgião de olhar analítico e glacial que, de bisturi e escalpelo na mão, retalharia os seus pacientes sem anestesia para descobrir o óbvio: que as entranhas reagem mal quando em contacto com o metal (e basta ver um único episódio de CSI para saber que até numa dissecação pode haver voyeurismo). Mas, se a nossa relação com Haneke, não sendo indiferente, nunca foi das melhores, é justo dizer que o seu cinema parece encontrar neste inesperado drama de época um fôlego romanesco e uma distância óptima a respeito das personagens (introduzida, sem dúvida, por aquela "extemporânea" narração em off) que lhe permite construir um ponto de vista mais humano sobre o tema central de toda a sua obra: a génese e o desenvolvimento do mal. Uma boa surpresa. Vasco Baptista Marques

de Rob Marshall

(EUA/Itália)

com Daniel Day-Lewis, Marion Cotillard, Penélope Cruz

Musical

M/12

Guido Contini, realizador italiano, está a braços com um bloqueio de inspiração para o novo filme que se aproxima.

Em 1982, a fama estelar de Fellini e, sobretudo, o seu mítico "8 1/2" deram origem a um musical da Broadway de que o cinema, por excelentes razões (não era particularmente inspirado, nomeadamente a nível de música) nunca se aproximou. Abeirou-se agora, com Rob Marshall e os irmãos Weinstein de olhos postos em "Chicago" que o primeiro realizara e os segundos haviam produzido - com o sucesso que se sabe. Mas o material de "Nove" não é da mesma categoria e o filme resulta menos energético e inspirado. Para os que conhecem bem "8 1/2", o exercício de ir fazendo paralelos entre os dois filmes vai sustentando o prazer, à míngua de grandes canções e de uma realização que nos deixasse ver as coreografias e não cortasse os planos cada cinco segundos. Mas Daniel Day-Lewis é muito bom, Penélope Cruz muito boa, Marion Cotillard uma metamorfose, Nicole Kidman uma aparição, Judi Dench um esplendor, Sophia Loren uma memória - e todos juntos nos levam filme fora. J. L. R.

de Spike Jonze

(EUA)

com Max Records, Catherine Keener, Mark Ruffalo

Fantasia/Aventura

M/6

Max, um miúdo, foge para uma ilha selvagem repleta pelas estranhas criaturas da sua imaginação

Adaptado de um livro de aventuras de Maurice Sendak, Spike Jonze atira-se para o seu filme mais efabulado e 'burtoniano', permeável às possibilidades expressivas da imaginação e da aventura. A história arranca com Max, miúdo problemático e de imaginação fértil que odeia o mundo à sua volta. Uma disputa com amigos, uma discussão com a mãe e o mais que provável trauma da ausência paterna transformam-no num poço de angústia e levam-no a 'passar para o outro lado do espelho', como em tantos filmes de terror sobre a infância, e a descobrir um mundo de monstros que recordam Os Marretas, colossos freaks de pêlo abundante e olhos meigos. Os montros tornar-se-ão amigos do pequeno herói nesse mundo de imaginação em que ele será rei. A parte mais conseguida do filme está no início, naquela viagem imaginária de Max que não se anuncia ao espectador: tal como na infância, os jogos e a fantasia adquirem uma espessura real que o filme segue com fervor e com fidelidade ao desenho de Sendak. A parte final perde em poesia e tende a sentimentalizar a aventura com o regresso do pequeno ao lar. Mas a viagem, sempre virtuosa, vale a pena. Abre um mundo novo de criatividade a Spike Jonze, ele que, nos últimos tempos, parecia estar já a rodar sobre si próprio e o facto de ter que ser original à força. Francisco Ferreira