O digital liberta?
O cinema prepara-se para enfrentar uma transformação tecnológica e económica profunda.
Não é possível, até porque a memória ainda está bem viva, falar do ano cinematográfico de 2009 sem passar pelo fenómeno "Avatar". Fala-se de um 'cinema do futuro' a propósito deste novo 3D em relevo que obriga o espectador a usar aqueles óculos de massa e de 'design Clark Kent' - e não é que, na sala, todos nós parecemos agora os "Homens de Negro", de Barry Sonnenfeld? Diz-se que a nova invenção só é comparável na história do cinema às passagens do mudo para o sonoro e do preto e branco para a cor - e quem fez a comparação, francamente, não exagerou. Sublinha-se ainda que esta revolução tecnológica (ah, milagre!) vai forçar um regresso em força dos espectadores às salas, já que é, por enquanto, impermeável à pirataria. Na projecção (digital e a 3D) de "Avatar" para a imprensa, no passado dia 15 (apenas dois dias antes da estreia), o filme de Cameron terá sido 'virtualmente enviado' dos EUA pelos computadores da Fox e descarregado horas antes em Lisboa, através de códigos de segurança e palavras-passe que se imaginam dignas de um Sherlock Holmes. Tudo isto é excitante, thrillesco e, aparentemente, optimista: ver os estúdios e os piratas a combaterem no mesmo terreno. Só que o optimismo, apesar de James Cameron sempre ter tido alta estima nestas páginas, desfaleceu. "Avatar", que não é um blockbuster qualquer feito por um cineasta qualquer, também não é um grande filme. E levantou a questão mais importante que, lá no fundo, não tem piada alguma: o 3D em relevo, afinal, nasce por razões criativas ou económicas? Hipótese pessimista (que, perante este cenário, ninguém deseja): e se "Avatar" fracassasse no box-office? E se aquelas mesmas salas que também nos mostram Tarantino, Coppola, Haneke, Oliveira e Pedro Costa fechassem as portas? Em tempos de desespero para o sector cinematográfico, que tenta resistir à crise e está à beira do colapso em toda a sua estrutura, da produção à exibição, estar dependente de uma só aposta, de um tiro no escuro que é um tudo ou nada, só pode ser desconfortável. "O Wrestler" e aquele extraordinário Mickey Rourke recauchutado não nos falou de outra coisa.
Talvez esta 'revolução' seja demasiado brusca, demasiado perigosa, e a alternativa se encontre pelo tempo natural que exige uma passagem de testemunho entre gerações. Ora, esta não é mais do que a história do magnífico "Gran Torino". Também para estes problemas que agora se colocam ao cinema, o filme de Clint Eastwood foi exemplo e lição. Não menos ambicioso, mas no que toca a uma verdadeira autenticidade e evolução das ideias e das formas, foi o cinema digital de Michael Mann em "Inimigos Públicos" - aqui, é a técnica que serve um projecto que sabe vir do passado e da origem do cinema. "Up - Altamente!", resultado, também ele tecnológico e económico, de uma fusão feliz (a da Pixar com a Disney), deixou uma esperança imensa ao campo da animação pelas suas qualidades não só cinematográficas mas também humanas. E o que dizer da ousadia digital de Soderbergh, de peito aberto à experimentação nas duas partes de "Che", do não menos experimental "Milk", de Gus Van Sant, e sobretudo do digital 'p&b' de Coppola, ele que já esteve no topo do mundo e voltou para desafiar os elefantes brancos de Hollywood, desta vez com um 'filme pequeno', rodado sem vedetas, na Argentina ("Tetro")? Todos estes acabam por ser, por portas e travessas, alternativas à 'avatar-dependência' e a tudo o que ela representa. Francisco Ferreira
Um grande e horrível crime
2009 teve alguns dos mais execráveis filmes portugueses de sempre.
Com dezanove longas-metragens em estreia nas salas, 2009 teve uma produtividade fantástica. Com Pedro Costa a tornar-se uma coqueluche internacional (retrospectivas na Tate Modern, em Londres e em Madrid, as principais revistas internacionais a dedicarem-lhe desusada atenção, edições em DVD em Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, aplausos vigorosos em Cannes para "Ne Change Rien"), dir-se-ia que só temos motivos para regozijo. Com Oliveira, sempre, no primeiro plano das atenções dos meios intelectuais do cinema mundial (foi capa nos "Cahiers du Cinéma" e quinto entre os melhores filmes do ano na eleição pelos redactores da revista), será que nos podemos queixar? Com uma Palma de Ouro em Cannes no campo das curtas-metragens ("Arena", de João Salaviza), não é de acreditar no futuro da nossa cinematografia?
E, todavia, quando olho para o panorama dos dezanove filmes longos que os meus olhos viram no ano que ora se fina, lembro-me pouco de entusiasmos e muito de desgostos. Eu acho que o que se está a fazer no cinema português é mesmo um grande e horrível crime. Finalmente, pode-se avaliar o que o Fundo de Investimento para o Cinema e o Audiovisual (FICA) está a derramar. Lembram-se daquele filme que não sabia articular dois planos e que desconhecia por inteiro a gramática da linguagem fílmica ("Second Life")? Isso é FICA. E se soubermos que a empresa que o perpetrou já recebeu mais de cinco milhões de euros de financiamento - isso é FICA exponencialmente. Lembram-se de Salazar libidinoso nas teias de Soraia Chaves - com Diogo Morgado a fazer o papel mais ridículo da sua vida ("Salazar - A Vida Privada")? Isso é FICA. Lembram-se de Joaquim Leitão a perder-se nas teias do oportunismo numa fita com um argumento indigente? Isso é FICA, a abafar o único cineasta que não pertence à geração do Cinema Novo e que sabia fazer filmes comerciais com um toque de autorismo. E aquela coisa luso-qualquer-coisa com Romeu, Julieta e futebol de fazer corar qualquer um de vergonha ("Star Crossed")? Isso é FICA, a armar ao internacional... Com tudo isto, o ano saldou-se por uma misérrima colheita de espectadores - ou seja, os filmes para o mercado não serviram mercado algum. E, perante a debandada geral de espectadores que assola o cinema português, ninguém parece ter digna solução para mudar as coisas.
Assim sendo, eu acho que me quedo com o pouco que pude amar: o estremecimento de uma actriz-revelação num filme perturbantemente convulso - Margarida Carvalho no "Veneno Cura", de Raquel Freire (não era um grande filme, só tinha verdade a jorrar por todo o lado); Catarina Wallenstein no belíssimo "Um Amor de Perdição", de Mário Barroso, que bem merecia ter tido melhor sorte; o corajoso "Morrer como Um Homem", de João Pedro Rodrigues, a pôr em cena a identidade de género - um dos melhores filmes do ano; Rui Simões a filmar os que vivem nas margens da cidade - com os olhos secos e toda a perplexidade ("Ruas da Amargura"); Manuel Mozos cheio de autenticidade e ternura a falhar um filme ("4 Copas") - mas que bonito era aqui e ali; Fernando Lopes com humor no desespero ("Os Sorrisos do Destino"); a Balibar a cantar 'Johnny Guitar' no "Ne Change Rien". E disse. Jorge Leitão Ramos
Os anos passam e é cada vez mais difícil trazer a estas listas um 'cinema novo', um novo nome que dê alento e se imponha verdadeiramente como descoberta. Ao nível do cinema europeu, o catalão Albert Serra ("O Canto dos Pássaros") consegue ser excepção, enquanto o israelita Ari Folman, embora não seja nenhuma criança, deu ao cinema de animação ("A Valsa com Bashir") o espanto de uma primeira vez. Tarantino, Eastwood, Mann e Gus Van Sant evoluíram os seus processos artísticos, e Ferrara deu um toque de sarcasmo ao cinema americano, sempre feito de grandezas e misérias. O ano português impôs-se por Oliveira, Pedro Costa e João Pedro Rodrigues. Já o destemido Straub manteve a fidelidade aos seus princípios com as três versões de uma curta-metragem de 20 minutos. "Corneille-Brecht", no seu conjunto, mantém intacto o desejo da revolução.
Sacanas sem Lei
de Quentin Tarantino
(EUA/França/Alemanha)
Gran Torino
de Clint Eastwood
(EUA/Alemanha/Austrália)
O Canto dos Pássaros
de Albert Serra
(Espanha)
Inimigos Públicos
de Michael Mann
(EUA)
Histórias de Cabaret
de Abel Ferrara
(Itália/EUA)
Ne Change Rien
de Pedro Costa
(Portugal/França)
A Valsa com Bashir
de Ari Folman
(Israel/Alemanha/França/EUA/Finlândia/Suíça/Bélgica/Austrália)
Singularidades de uma Rapariga Loira
de Manoel de Oliveira
(Portugal/França/Espanha)
Milk
de Gus Van Sant
(EUA)
Corneille-Brecht
de Cornelia Geiser e Jean-Marie Straub
(França, inédito)
O cinema de Hollywood mostra-nos, mais uma vez, que recupera a força perante alguns (breves) tempos de desânimo, afirmando-se com frequência com a sua força e, este ano, com quatro soberbos filmes marcados pela energia pletórica de autores que, mais do que mestres, se mostram apaixonados pelo cinema: Eastwood, Mann, Tarantino e Bigelow. Coppola é outro americano, mas algo diferente, com um dos seus melhores trabalhos. A boa surpresa do ano é que Portugal se impõe com três filmes (que João Bénard da Costa gostaria de ter descoberto), do 'primitivo' incomparável Oliveira ao austero e absoluto Pedro Costa. A estes junta-se uma surpresa: um Fernando Lopes, com o seu filme mais irónico. E a estes mestres só temos, por atrasos, uma francesa, Varda. À margem destes celebre-se a belíssima animação do japonês Miyazaki.
Gran Torino
de Clint Eastwood
(EUA/Alemanha/Austrália)
Inimigos Públicos
de Michael Mann
(EUA)
Sacanas sem Lei
de Quentin Tarantino
(EUA/França/Alemanha)
Estado de Guerra
de Kathryn Bigelow
(EUA)
Tetro
de Francis Ford Coppola
(EUA/Itália/Espanha/Argentina)
Ne Change Rien
de Pedro Costa
(Portugal/França)
Singularidades de uma Rapariga Loira
de Manoel de Oliveira
(Portugal/França/Espanha)
Os Sorrisos do Destino
de Fernando Lopes
(Portugal)
As Praias de Agnès
de Agnès Varda
(França)
Ponyo à Beira Mar
de Hayao Miyazaki
(Japão)
A média etária dos autores dos melhores filmes de 2009 está perto dos 60 anos. Nenhum tem menos de 40, e há três filmes dirigidos por homens que já dobraram o cabo dos 70. Se não contarmos com Pete Docter - que trabalha no campo muito particular do cinema de animação -, o mais jovem é o português João Pedro Rodrigues. Há nisto algo de geracional? Talvez. O autor desta lista e destas linhas está nos 57, sendo, portanto, apenas ligeiramente mais jovem do que a média etária dos realizadores dos filmes que ama. Mas, mais do que uma questão de idade, é uma questão de tipo de cinema. Gosto dos filmes narrativos e romanescos - com grandes histórias - que os mais jovens ainda não sabem fazer. Mas nada de cinema velho: se houve em 2009 filme mais ousado, moderno e desafiador que "Tetro", haja alguém que o nomeie!
Abraços Desfeitos
de Pedro Almodóvar
(Espanha)
Avatar
de James Cameron
(EUA)
Estado de Guerra
de Kathryn Bigelow
(EUA)
O Estranho Caso de Benjamin Button
de David Fincher
(EUA)
Gran Torino
de Clint Eastwood
(EUA/Alemanha/Austrália)
Morrer Como um Homem
de João Pedro Rodrigues
(Portugal/França)
Sacanas sem Lei
de Quentin Tarantino
(EUA/França/Alemanha)
Tetro
de Francis Ford Coppola
(EUA/Itália/Espanha/Argentina)
A Troca
de Clint Eastwood
(EUA)
UP - Altamente!
de Pete Docter e Bob Peterson
(EUA)
Num ano marcado pelo regresso em força do relevo (a incursão de James Cameron pelo 3D foi, para todos os efeitos, o grande acontecimento mediático de 2009), mas igualmente pela proliferação do irrelevante, importa relevar, pelo segundo ano consecutivo, um filme que as salas nacionais não quiseram (ou não souberam) acolher. Falamos, claro está, de "Sonata de Tóquio", de Kiyoshi Kurosawa, um magnífico estudo sobre a decomposição e recomposição de uma família japonesa, que, entre nós, só conheceu divulgação em formato DVD. Posto isto, diga-se, em abono da verdade, que a colheita americana foi, em 2009, particularmente pródiga. E, nesse quadro, o nosso destaque não pode deixar de ir, por inteiro, para Clint Eastwood, que, com o seu "Gran Torino", encerrou em beleza (e em apropriada pose crística) a sua mitológica carreira de actor. Para o ano há mais.
Gran Torino
de Clint Eastwood
(EUA/Alemanha/Austrália)
Sonata de Tóquio
de Kiyoshi Kurosawa
(Japão/Holanda/Hong Kong)
A Valsa com Bashir
de Ari Folman
(Israel/Alemanha/França/EUA/Finlândia/Suíça/Bélgica/Austrália)
Ne Change Rien
de Pedro Costa
(Portugal/França)
Estado de Guerra
de Kathryn Bigelow
(EUA)
O Wrestler
de Darren Aronofsky
(EUA/França)
O Canto dos Pássaros
de Albert Serra
(Espanha)
Inimigos Públicos
de Michael Mann
(EUA)
Milk
de Gus Van Sant
(EUA)
Andando
de Hirokazu Koreeda
(Japão)